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II. Medusa ao Reverso: O Caminhar

II.2. Recontando o Recontar de Histórias: Diário de Criação

II.2.11. Crânio: Morada da Deidade

Ao longo da história humana a cabeça tem sido caçada, preservada, venerada, oferecida como sacrifício e até como comida. Enquanto parte mais alta do corpo, ela contém o cérebro, olhos, ouvidos, nariz e boca, os elementos essenciais da consciência, inspiração e expressão humana. Os povos mais antigos localizam a alma, vitalidade, poder e um demônio ou gênio (espírito divino) na cabeça. Acredita- se universalmente que as cabeças contêm o espírito essencial de uma pessoa ou deidade. (MARTIN, 2012, p. 340)

Ao longo do mês de março de 2015, foi trabalhado o oitavo vetor – sétima vértebra cervical – que reverbera diretamente no posicionamento do crânio em relação ao eixo corporal e nas movimentações do pescoço. No entanto, o direcionamento desse vetor interfere em todo o corpo, além de provocar uma série de reações muito relevantes no âmbito expressivo, como o direcionamento do olhar e a liberação das cordas vocais. Assim, por reverberar diretamente no segmento da cabeça, esse é um vetor que influencia o olhar, a voz e a manutenção e flexibilização do eixo.

Para a complementação do trabalho com vetores, há o vetor que tratará do alinhamento final do corpo: o crânio. Ele é aplicado na sétima vértebra cervical, direcionando-a anteriormente pela ação do músculo longo do pescoço. Essa alavanca leva o crânio posteriormente, alinhando-o na linha gravitacional do eixo global. Este vetor proporciona a sustentação da cabeça e flexibilidade da coluna cervical. (MILLER, 2007, p. 86)

Neste meu trabalho, a utilização da voz foi algo muito presente e extremamente difícil para mim, pois, ao longo da minha formação como bailarina, a movimentação corporal sempre foi sobreposta à utilização da voz em cena. Mesmo por questões relativas à minha própria personalidade tímida e reservada, o uso da voz sempre foi muito desafiador. Dessa maneira, além do apoio dos pés, mencionado anteriormente, para a conquista de uma voz mais projetada e audível, a utilização do sétimo vetor também foi muito importante, visto que, pelo posicionamento do crânio, há um aumento significativo do espaço das cordas vocais, facilitando a projeção da voz. “Este vetor proporciona espaço na cavidade da traqueia, melhorando o uso das cordas vocais. Nota-se uma amplitude no campo visual, modificando a posição dos olhos com a direção do olhar, utilizando-o como apoio no espaço” (MILLER, 2007, p. 87).

A questão do olhar também é uma grande dificuldade pessoal, pois tenho uma tendência muito maior à exploração do olhar interno quando danço. Porém, percebo que, com o direcionamento do oitavo vetor, amplio as possibilidades de exploração dessa questão e me

sinto encorajada a explorar o foco direto. Um exemplo disso é a cena apelidada de “bote da górgona”, na qual miro diretamente as pessoas da plateia atacando-as com um olhar direto, tal qual o de Medusa ao mirar suas vítimas.

“Quem acreditaria que um espaço tão reduzido poderia conter as imagens de todo o universo? Que língua será capaz de desvendar tão grande maravilha?” (DA VINCI, ? apud MARTIN, 2012, p. 352). Os olhos são de fato continentes de imagens múltiplas, e tais explorações diferenciadas do olhar são muito potentes na cena. Os olhares das deidades claudelianas revelavam-me muitas imagens que guiaram o meu próprio olhar durante o trabalho. O olhar infantil de Aurora, que mira o infinito na diagonal ascendente (olhar este que influiu inclusive em escolhas espaciais durante o trabalho); o olhar flamejante do Gato, predominantemente encoberto pelas “pelugens” (cabelos); o olhar interno da flautista, que quase fecha os olhos para se embeber dos sons emanados da sua flauta; os olhos cerrados de Níobe, que na escuridão derrama eternas lágrimas por seus filhos mortos; ou ainda o olhar de Medusa que, por vezes, é um tanto estrábico, tal qual o da Medusa claudeliana, e, por outras, assertivo e direto, como o da Medusa mítica.

Assim, esses múltiplos olhares foram habitando o meu olhar durante o processo, e com o direcionamento do oitavo vetor, pude ter mais domínio da utilização de cada um deles. No entanto, além de olhos e voz, não poderia deixar de mencionar dois outros segmentos corporais localizados no crânio que tiveram um interessante papel expressivo neste trabalho: língua e cabelos.

A língua surge mais especificamente nos laboratórios do tema corporal apoio, que despertaram em mim o devir animal de um felino que, durante um breve repouso, se lambe tal qual um gato fazendo sua higiene vaidosa e voluptuosamente. Algo entre a ameaça e a sedução felina que, inevitavelmente, me faz pensar na sedução da própria figura de Medusa: ameaçadora, mas capaz de seduzir tantos guerreiros a atravessarem a longa jornada até a Gruta das Górgonas e, mesmo sabendo previamente de seu poder paralisante, eram irresistivelmente seduzidos a fixarem o olhar no dela, como presas hipnotizadas pelo predador.

Poucas imagens das páginas da mitologia grega estão mais profundamente gravadas na nossa memória moderna do que a Medusa, cuja cabeça cheia de serpentes ameaçava transformar em pedra todos os que olhassem para ela. Nós estamos ansiosos que Perseu a decapite para podermos virar a página. Profundas forças psicológicas forçam-nos a contemplar a sua imagem repelente porque os atributos animais destas “mães devoradoras” clarificam as suas origens naturais:

escondido na sua língua leonina está o seu poder arquetípico de nos destruir ou de nos nutrir. Tal como o médico divino Esculápio usou o sangue de Medusa para ressuscitar os mortos, também a sua larga língua recordava aos gregos antigos a leoa a lamber os seus recém-nascidos ou as vacas a protegerem as suas crias na altura do seu nascimento. (MOOKERJEE, 1988 apud MARTIN, 2012, p. 372)

O uso da língua em uma das cenas deste trabalho foi inusitado para mim, pois não é uma musculatura trabalhada em aulas técnicas de dança e, mesmo culturalmente, somos condicionados a sempre mantermos a língua dentro da boca. Todavia, achei muito interessante o fato desse contato com a corporalidade mais animalesca, despertada inicialmente pela vivência do tema apoio, tenha reverberado não somente no estado corporal de patas felinas que sustentam o corpo apoiado no chão, mas também na utilização expressiva de um segmento corporal tão inusitado na dança ocidental. A potência expressiva de suas nuances (ora mais agressiva, ora mais sedutora) foi sendo melhor trabalhada ao longo desse mês (março de 2015), buscando explorar sua consonância inclusive com a qualidade do olhar, tal qual a górgona que, ao mirar suas vítimas, lança a língua para fora do corpo em um ambíguo sinal de sedução e repulsão aterradora.

Enquanto a Medusa fixava os olhos na sua vítima aterrorizada, a sua língua escarlate surgia por entre as suas presas como uma Mãe Devoradora fazendo inesperadamente a passagem entre a vida e a morte intimamente úmida. [...]. Uma vez que nenhum outro órgão interno sai do corpo, é natural que a língua expresse o que está dentro de nós, seja cruel ou benevolente. (MARTIN, 2012, p. 372)

No que diz respeito ao uso dos cabelos em cena, não chegou a ser uma novidade para mim, pois já havia trabalhado com os cabelos soltos em outros processos criativos e sabia de seu grande poder expressivo. Devido, justamente, a essas experiências prévias, houve, de início, um receio em cair na repetição de trabalhos anteriores. Mas os próprios cabelos pareciam querer permanecer soltos nessa dança, pois, em vários laboratórios, por mais que estivessem previamente presos, em algum momento se soltavam. Então, resolvi assumir cenicamente os cabelos, a princípio presos em uma trança inspirada nos cabelos de Aurora. Ao longo da dança, pela própria movimentação corporal, em especial os movimentos do crânio, a trança se desfaz e o volume do cabelo vai aumentando até transformar-se em um grande manto que compõe esse meu corpo em cena.

Sem dúvida os cabelos me auxiliaram a conquistar diferentes qualidades expressivas na cena, desde uma criança de cabelos trançados e bem penteados, até um ser bestial com um amontoado caótico de fios enrolados no topo da cabeça.

O cabelo é incrivelmente poderoso. Os folículos da sua raiz, alimentados por minúsculos vasos sanguíneos, estão invisíveis sob a pele, associando o cabelo às fantasias interiores, pensamentos e desejos involuntários. O cabelo diz-nos algo sobre o estado da sua cabeça. (MARTIN, 2012, p. 346)

Entretanto, essa parte do corpo exige um domínio técnico dos movimentos. Isso acontece porque a cabeça fica mais pesada somada aos longos cabelos soltos, e estes exigem, em alguns momentos, maior impulsão dos movimentos para o deslocamento dos fios nas direções desejadas. Porém, os cabelos nem sempre obedecem totalmente esses comandos e, muitas vezes, oferecem ao trabalho um toque de acaso, auxiliando na manutenção constante da presença para lidar com eles, bem como com seu toque, seu peso, suas múltiplas e, muitas vezes, imprevisíveis posições.

Também podem funcionar, para mim, como uma espécie de máscara. É como se a textura dos cabelos sobre o rosto me auxiliasse a atingir determinados estados, em especial, o mais animalesco do ‘felino-górgona’, extremamente potencializado pela sensação da cortina de cabelos sobre o meu rosto.

Dessa maneira, a cabeça, com seus orifícios, cabelos, olhos e língua, é um segmento corporal extremamente instigante. Não sem motivos, os bustos claudelianos – em especial Aurora, Ofélia e a cabeça de Medusa na obra Perseu e Medusa – chamam tanto a minha atenção, sendo capazes de provocar movimentos ainda que sejam crânios sem corpos.

De maneira metafórica, vejo na arte de esculpir bustos uma analogia à prática da conservação de cabeças ou mesmo da decapitação, onde acreditava-se que a cabeça abrigava os poderes daquele indivíduo. Da mesma forma, a feitura dessas cabeças escultóricas é uma maneira artística de evocar e preservar os poderes e as essências dessas deidades. Seja a ingenuidade infantil de Aurora, a loucura sublime de Ofélia ou o poder paralisante de Medusa.

III

‘CORPANDO’ MITOS