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II. Medusa ao Reverso: O Caminhar

II.2. Recontando o Recontar de Histórias: Diário de Criação

II.2.5. Oposições e os Dedos da Morte

Figura 22 – Jovem com Nenúfares, Hamadríade ou Ofélia Camille Claudel

Figura 23 – Estudo para Hamadríade Camille Claudel

Hoje adentrou meu processo criativo com paradoxal força e sutileza a Ofélia.

Relutei um pouco em deixá-la entrar, mas seu doce canto, sua oferenda de flores...

Seja bem-vinda e vejamos até quando e como estará conosco. (Diário de Criação de Kamilla Mesquita, dia 26 de agosto de 2014)

A Morte de Ofélia

(Adaptação da paráfrase de autoria de Machado de Assis) Junto ao Plácido rio, que entre margens de relva murmura e serpenteia.

Havia o sombrio e melancólico tronco de um salgueiro. Alí, a triste Ofélia foi sentar-se um dia.

Enchiam-lhe o regaço umas capelas de várias flores belas por suas mãos tecidas

Pálidas Margaridas, e essas outras flores, as quais dá feio nome o povo rude – Dedos da Morte.

O olhar celeste alevantado aos ramos do salgueiro quis alí pendurar sua oferenda peregrina;

Quando, rompendo o apoio escasso, a pálida menina resvalou; Foram com ela os seus Dedos da Morte e as margaridas. [...] (Diário de Criação de Kamilla Mesquita, dia 26 de agosto de 2014)

Entre os meses de agosto e setembro de 2014, foi realizado o estudo do tema corporal oposições, que está diretamente relacionado ao estudo do Processo de Vetores (abordado mais adiante neste trabalho). É por meio da vivência das oposições que nos sensibilizamos para a conquista da consciência dos direcionamentos ósseos. Conforme Vianna (2005, p. 78), “duas forças opostas geram um conflito que gera o movimento. Este, ao surgir, se sustenta, reflete e projeta sua intenção para o exterior, no espaço”.

Embora de maneiras sutis, nossos ossos podem ser direcionados para frente, para trás, para cima, para baixo e para os lados, acionando musculaturas específicas que organizam e tornam autônomo o corpo que pesquisa e descobre em si a sua própria dança. É “desse equilíbrio de forças opostas e complementares que nasce a minha dança” (VIANNA, 2005, p. 118).

Em minha opinião de pesquisadora e artista nada é mais mítico que o tema corporal oposições. Nada traduz melhor a essência mítica do que esse jogo de forças que se opõem e, por meio dessa oposição, geram o movimento. É assim que se dá o ciclo de morte e vida; o surgimento das noites e dos dias; as alternâncias e uniões entre o cheio e o vazio; velho e novo; o masculino e o feminino. Pelo jogo de oposições é que se faz o movimento

contínuo da vida. O corpo humano o revive permanentemente, e é esse o elemento que o faz mover-se.

Temos de criar espaço para as alternâncias. Uma ideia de elevação não é transmitida somente, por exemplo, pela elevação contínua dos braços. Essa ideia pode conter um jogo de opostos – posso conduzir meus braços (assim como as pernas, o tronco) também para baixo, sem deixar de transmitir a ideia de elevação (porque a queda também faz parte da elevação, uma não existe sem a outra). Na ida de um gesto está contida também a vinda: é o que chamo de intenção e contra-intenção muscular. (VIANNA, 2005, p. 81)

Pelo trabalho com as oposições, o corpo dilata-se e ganha tridimensionalidade, além de conquistar espaços nas articulações por meio do jogo de forças opostas, como por exemplo, a oposição entre sacro e crânio, que expande os espaços intervertebrais fazendo “crescer” a coluna, ou ainda a oposição entre as duas escápulas, favorecendo a expansão das costas e a maior amplitude dos movimentos dos braços. Enfim, quando utilizamos esse tema corporal, o corpo torna-se mais dilatado, influindo, também, na utilização do espaço cênico e nas nuances de tônus do movimento. Tudo isso gera novas possibilidades expressivas. E dentre estas novas expressões, aqueles movimentos animalescos e um tanto grotescos advindos dos laboratórios anteriores ganham uma paradoxal leveza.

Embora os movimentos se ampliassem pelo espaço, as imagens escultóricas que adentraram o processo nesse momento são, mais uma vez, bustos, os quais, com seus olhares e bocas entreabertas, me levaram a descobrir equivalências de pernas e braços que flutuam e se expandem por um espaço sempre em oposições. Jovem com Nenúfares, Hamadríade ou Ofélia: três nomes distintos para um intrigante rosto de menina repleto de capelas floridas, olhos alucinados e cânticos de ninfa.

Esta obra em gesso foi frequentemente batizada com o nome de Cabeça de Menino. Encontra-se no artigo de l”Art Décoratif de 1913 sob o título de “Estudo, bronze, propriedade de M. Henri Lerolle”. As feições desta cabeça, com seus olhos alucinados e sua boca entreaberta, como estupefata, ressaltam uma perturbadora semelhança com a Jovem com Nenúfares, também chamada A Hamadríade ou Ofélia, cujo perfil conhecemos pelo mesmo artigo, o que data a obra de 1897, ano em que foi exposta. Este gesso constitui o estudo do rosto da jovem sem nenhum tratamento da cabeleira, que na Hamadríade terá a exuberância dos nenúfares de Ofélia. Mas já a expressão ao mesmo tempo juvenil e trágica da amante de Hamlet pode ser reconhecida neste olhar desesperado onde vaga a loucura à espreita, antes do naufrágio final. Esta extrema fragilidade, de um ser que parece descobrir pela primeira vez o negror de um destino, incitou os comentadores a ver nessa obra uma cabeça de criança. (CHAPELLE, 1998, p. 134)

As hamadríades são ninfas cujo destino dependia de certas árvores com as quais elas nasciam e morriam. Eram de rara beleza e, ao anoitecer, dançavam ao redor das árvores

às quais eram consagradas21. Esses seres híbridos, meio árvores meio mulheres, levaram-me a uma fatal relação com a personagem shakespeariana Ofélia, que também é um dos títulos dados à obra Hamadríade pela própria Camille Claudel, assídua leitora do dramaturgo inglês.

A Ofélia da obra Hamlet tem uma aura mítica que eu ousaria afirmar ser um misto de hamadríade e sereia. Afinal, na busca de alcançar aos ramos do salgueiro, já com a cabeça enfeitada de flores, resvala nas águas homicidas e, ao invés de se debater e relutar, aceita de maneira passiva e enamorada aquele novo meio; agrega-se às águas e solta pelos ares seu canto de sereia, seu canto de morte, ainda que seja a própria morte.

Um Salgueiro reflete na ribeira cristalina sua copa acinzentada. Para aí foi Ofélia sobraçando

Grinaldas esquisitas de rainúnculas,

Margaridas, urtigas e de flores de púrpura, alongadas, A que nossos campônios chamam nome bem grosseiro, E as nossas jovens “dedos de defunto”.

Ao tentar pendurar suas coroas

Nos galhos inclinados, um dos ramos invejosos quebrou, Lançando na água chorosa seus troféus de ervas e a ela própria. Seus vestidos se abriram, sustentando-a por algum tempo, Qual a uma sereia, enquanto ela cantava antigos trechos, Sem revelar consciência da desgraça,

Como criatura ali nascida e feita para aquele elemento.

Muito tempo, porém, não demorou, sem que os vestidos se tornassem pesados de tanta água.

E que seus cantares arrancassem a infeliz para a morte lamacenta. (SHAKESPEARE, 2000, s/p)

O trecho acima é o texto original shakespeariano, quando a Rainha Gertrudes descreve a trágica morte de Ofélia. No entanto, o texto que habitava minha memória durante os laboratórios era uma paráfrase de Shakespeare, de autoria de Machado de Assis. Eu havia tido meu primeiro contato com a versão machadiana há quase dez anos e, mesmo assim, durante um dos laboratórios, tive o ímpeto de declamar o texto e, curiosamente, lembrava-me de grandes partes, escritas de imediato em meu diário.

A paráfrase na íntegra é bastante longa. Os trechos transcritos no início deste subtópico são apenas aqueles contidos em minha memória e ativados pelos movimentos suaves de uma hamadríade dançando entre as árvores. A título de curiosidade, transcrevo a seguir a paráfrase de Machado de Assis de maneira integral.

21

A morte de Ofélia

Junto ao plácido rio que entre margens de relva e fina areia murmura e serpenteia, O tronco melancólico e sombrio de um salgueiro.

Uma fresca e branda aragem ali suspira e canta,

Abraçando-se à trêmula folhagem que se espelha na onda voluptuosa. Ali a desditosa, a triste Ofélia foi sentar-se um dia.

Enchiam-lhe o regaço umas capelas por suas mãos tecidas de várias flores belas, Pálidas margaridas, e rainúnculos, e essas outras flores a que dá feio nome o povo rude,

E a casta juventude chama – dedos da morte –

O olhar celeste alevantando aos ramos do salgueiro quis ali pendurar a of'renda agreste.

Num galho traiçoeiro firmara os lindos pés, e já seu braço, os ramos alcançando, Ia depor a of'renda peregrina de suas flores, quando rompendo o apoio escasso, A pálida menina nas águas resvalou;

Foram com ela os seus dedos da morte – e as margaridas, As vestes estendidas algum tempo a tiveram sobre as águas, Como sereia bela, que abraça ternamente a onda amiga.

Então, abrindo a voz harmoniosa, não por chorar as suas fundas mágoas, Mas por soltar a nota deliciosa de uma canção antiga,

A pobre naufragada de alegres sons enchia os ares tristes, Como se ali não visse a sepultura, ou fosse ali criada. Mas de súbito as roupas embebidas da linfa calma e pura Levam-lhe o corpo ao fundo da corrente,

Cortando-lhe no lábio a voz e o canto. As águas homicidas,

Como a laje de um túmulo recente, Fecharam-se, e sobre elas,

Triste emblema de dor e de saudade, Foram nadando as últimas capelas. (ASSIS, 1870, p.67)

Não posso negar a pungência desse texto em minha criação. Todavia, é importante ressaltar que a introdução vocal do texto aconteceu depois de criadas as movimentações coreográficas. Mas, aos poucos, algumas simbologias emanadas dos meus gestos foram se casando perfeitamente àquelas emanadas pelas palavras e, assim, fui construindo essa minha “paráfrase corporal”.

Além disso, o texto de Machado de Assis foi trabalhado e retrabalhado diversas vezes ao longo do processo. Em um primeiro momento, eu falava a paráfrase quase que na íntegra, até mesmo por um “apego estético” ao texto. Entretanto, com o tempo, fui tentando me desapegar, elegendo alguns trechos que fossem mais potentes no encontro com a minha movimentação. Também fui tentando abrir mão das projeções vocais e entonações declamativas do texto, bem como da preocupação de que o mesmo fosse totalmente inteligível ao público. O texto havia surgido como uma necessidade em dado momento do processo, porém, durante um longo tempo, fui seduzida pela beleza daqueles versos, deixando que se sobrepusessem ao meu corpo. Foi desafiador reencontrar a consonância da paráfrase com o

movimento, deixando que as palavras saíssem não somente das cordas vocais, mas também dos meus pés, das minhas vísceras, das minhas capelas floridas, dos meus dedos-da-morte. Reintegrar corpo-voz-texto não foi uma tarefa fácil.

Nesse processo, fui recebendo generosas sugestões de colaboradores (em especial da Professora Jussara Miller e das colegas do Curso de Processo Criativo) e uma dessas sugestões foi tentar “borrar” as palavras a partir das sonoridades animalescas com as quais o tema corporal apoio já havia me presenteado. E, assim, fui conquistando aos poucos uma sonoridade parte bicho parte humana, que se integrou à minha movimentação.

Figura 24 – Cena de Medusa ao Reverso – Foto de Léo Lin

Além das movimentações habitadas por essa ninfa-sereia com devir animal, alguns trechos textuais passaram a se relacionar diretamente com determinadas posturas ou gestos. Um exemplo é a expressão “dedos-da-morte” que, intuitivamente, foi se relacionando com a postura da banhista da Onda, com sua mão direita flutuando no vazio como verdadeiros “dedos da morte”.

[...] Esses dedos cor de rosa que se transmutam nos dedos da morte de Ofélia e os dedos que tanto me pungem na Banhista da Onda, numa tentativa vã de segurar-se a outra banhista e assim salvar-se da morte iminente, da Onda avassaladora.

Não! Não há dúvidas quanto à morte e quanto à queda que se aproxima. (Diário de Criação de Kamilla Mesquita, dia 17 de setembro de 2014)

Outro dado sincrônico que atravessa meu processo de criação: na mesma época em que trabalhava na introdução deste texto, vi, em mais de um lugar (supermercados, floriculturas etc.), belíssimas flores-de-maio, como são conhecidas no Brasil os dedos-de- defunto ou dedos-da-morte europeus.

[...] E qual não foi a minha surpresa ao deparar-me, em finados de setembro, com belíssimas flores-de-maio. Talvez elas tenham vindo assim fora de época para, sincronicamente, me afirmarem que sim – que os dedos da morte são bem-vindos ao trabalho neste momento. Possivelmente esta seria a época destas flores no hemisfério norte, sendo que na Inglaterra o que para nós é conhecida como flor-de- maio, recebe dos ingleses o nome de dedos-de-defunto ou dedos-da- morte, pelo formato de suas folhas que lembram a forma de dedos cadavéricos. Na verdade, a forma das falanges de uma mão desencarnada.

“Flores tão belas, com um nome tão feio!”, já ouvi essas palavras da minha mãe! Mas confesso que gosto deste nome:

Dedos-da Morte Dedos de Aurora Dedos Cor-de-Rosa

Dedos que dedilham a flauta da Sereia Dedos que dançam...

Sim, meus dedos continuarão dançando... abrindo espaço na noite, para a passagem do carro do sol... abrindo espaço para vindouros momentos criativos.

Esses mesmos dedos que agora seguram a lapiseira e desenham estas letras, são os dedos que dançam... é como se a minha dança escrevesse esta escrita, e esta escrita inevitavelmente escreve a minha dança... ou dança a escrita...

ENFIM, O MEU CORPO PENSANTE, O MEU CORPO DANÇANTE E O MEU CORPO CRIATIVO SÃO INEVITAVELMENTE O MESMO CORPO.

O desenho e a frase em caixa alta escrita em meu diário traduzem de maneira sintética o que acredito ser um processo criativo de caráter somático: ao me conhecer, e conhecer minhas potencialidades expressivas, consigo me abrir a outros atravessamentos que potencializem a criação sem, no entanto, perder o foco de que todo o processo inicia-se no corpo, que é simultânea e indissossiávelmente mote, fonte e veículo desses vários afetos que o atravessam, seja na sala de trabalho, nos sonhos, nas memórias, nos estudos ou na vida.

O que não podemos esquecer é que as pernas com as quais danço são as mesmas com que ando, corro, caio ou brinco desde criança. Nesse sentido, a experiência de uma vida pode ser traduzida, por exemplo, no simples gesto de erguer um braço ou uma perna. Mas uma coisa é levantar a perna à custa de uma enorme tensão, o que, em lugar de exprimir uma ação ou sensação, revela apenas o esforço empregado para erguê-la cada vez mais alto em mera exibição de flexibilidade e perícia técnica. Outra coisa é fazer desse movimento a expressão exata daquilo que se busca atingir, seja um sentimento, uma emoção ou até mesmo um gesto abstrato. (VIANNA, 2005, p. 125)