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Crítica da compreensão e dissociação entre conhecimento e verdade A conseqüência epistemológica vem de par com uma insistente crítica da

NFLEXÕES DA ESTRUTURA NA PSICANÁLISE

2.7. Crítica da compreensão e dissociação entre conhecimento e verdade A conseqüência epistemológica vem de par com uma insistente crítica da

atitude de compreensão, inaugurando, quanto a este ponto, um caminho exatamente oposto ao de sua tese de doutorado, quando Lacan se esforçava para afastá-la do espiritualismo de Jaspers e para incluí-la num quadro de abordagem objetiva da personalidade. Contra Dilthey, providenciar-se-ia sua explicação mediante a discriminação das relações de compreensão. Sabemos que nenhum passo da teoria lacaniana é indiferente a uma reflexão epistemológica. Aqui, a concepção de linguagem abraçada denuncia a compreensão como equívoco do apego à segurança imaginária e a uma precipitação intelectual distanciadora da verdade; por isso "(...) cada vez que vocês

compreendem, é aí que começa o perigo." (Lacan, 1958-59a, p. 6) É preciso sublinhar a

importância dessa modificação no pensamento lacaniano: antes havia um total recobrimento entre paranóia e verdade/conhecimento, toda abordagem de objeto tendo origem na rivalidade narcísica –; já o ponto de vista do simbólico anuncia uma dimensão discursiva não-delirante, desde que ceifada a vontade de compreender: "(...) o

importante não é compreender, é atingir o verdadeiro. (...) [compreender] prova que temos todos alguma coisinha de comum com os delirantes." (Lacan, 1955-1956/1981, p.

para a verdade, um espaço não contaminado pelo delírio, a conseqüência sendo sua imediata dissociação do conhecimento e uma lucidez paroxística quanto ao resultado da irredutibilidade da psicanálise enquanto disciplina teórica – um saber só pode se erigir em conhecimento se denegar a hipótese do inconsciente27. A origem do objeto, como produção imaginária, continua a mesma. Mas a psicanálise, com a sustentação do inconsciente reformulado em termos de estrutura simbólica, abre um novo espaço para a verdade que, enquanto verdade acessível, está além do espaço do objeto e do fenômeno. Tal estratégia precisa, então, ressituar a descoberta freudiana não mais como objeto de um conhecimento, mas de um testemunho:

“(...) o isto que ele [Freud] nos propõe atingir não é isso que possa ser o objeto de um conhecimento, mas isso (....) que constitui meu ser, e sobre o qual ele nos ensina que eu testemunho tanto e mais em meus caprichos, em minhas aberrações, em minhas fobias e em meus fetiches, quanto em meu personagem vagamente policiado.” (Lacan, 1957/1966, p. 526)

Testemunho: verdade sujeita a uma constatação em que o agente se encontra implicado, tanto como quem empreende a ação de constatar, quanto, indo além do sentido estrito do termo, como quem reconhece tratar-se ali de uma verdade que, de alguma forma, lhe diz respeito. Vale, para a teoria psicanalítica, o mesmo que vale para qualquer teoria: a desvinculação entre linguagem e coisa que transforma o objeto em algo irrepresentável desautoriza a construção de uma teoria se entendida como acúmulo de conhecimentos:

“O que interdita a possibilidade do conhecimento é a falta de um dos seus pilares: o objeto enquanto tal está em falta no psiquismo humano, e faltando introduz uma falta na própria possibilidade de definir o estudo do psiquismo como objeto (de uma ciência).” (Bairrão, 2003, p. 106) Eis aí o ponto que verdadeiramente afasta Lacan da

psicologia como vontade de produção de conhecimento acerca do psiquismo e que traduz, do ponto de vista do conhecimento, um certo grau de pessimismo teórico bem alheio a Freud.

Esse movimento é extremamente reiterado durante toda a década de 50. Nele, a dissociação entre conhecimento e verdade parece indicar uma dissociação entre conhecimento e ciência. O ideal de ciência continua presente de uma maneira muito forte – investido nas leis do significante –, mas o conhecimento é rechaçado como

a separação sujeito/objeto necessária à ciência no plano metodológico, passa a ser alvo do próprio saber científico; a conseqüência sendo a necessidade de questionar tal separação: “Freud, com sua descoberta, colocou dentro do círculo da ciência esta

fronteira entre o objeto e o ser que parecia marcar seu limite.” (Lacan, 1957/1966, p.

527) Em outros termos: o "conhecimento" psicanalítico implica a pergunta: o que é conhecer? Lacan insiste, a partir daí, na distinção entre sujeito da fala e sujeito do conhecimento28. O sujeito que a psicanálise dá a ver não é “(...) o sujeito do

conhecimento, o olho frente ao mundo real, mas o sujeito da fala, isto é, tal como ele emerge na dimensão da verdade.” (1958b/2003, p. 182) Nessa insistência, ele

demonstra, em fidelidade à perspectiva do concreto, que seu repúdio ao realismo ingênuo não lhe conduz a um apego ao idealismo, pelo contrário. Pois um dos motivos para nos atermos ao sujeito que fala em detrimento do sujeito que conhece é que este é visto como ideal e problemático na medida em que apenas suposto como sombra e duplo dos objetos, ao passo que o sujeito da fala impõe-se necessariamente a partir da constatação direta do discurso, sem intermediações metafísicas. O objeto, se tomado como existente por-si, como embuste; o conhecer posto em xeque pela revelação da posição secundária da realidade diante do desejo: “(...) Freud fez apagar-se para

sempre o bom sujeito do conhecimento filosófico, aquele que encontrava no objeto um status de toda confiança, diante do mau sujeito do desejo e de suas imposturas.”

(Lacan, 1959/1966, p. 716)

Não compreender torna-se questão de método29 e evitar ser compreendido torna-se questão de estilo:

"(...) se eu me preparasse para ser muito facilmente compreendido, ou seja, para que vocês tenham por inteiro a certeza de entender, pois bem, em função mesmo de minhas premissas concernentes ao discurso inter- humano, o mal-entendido seria irremediável. Ao contrário, dada a maneira como acredito dever abordar os problemas, há sempre para vocês a possibilidade de estarem abertos a uma revisão do que é dito." (Lacan, 1955-1956/1981, p. 184)

28 Por exemplo, em 1957-1958/1998, p. 394 e p. 476; 1958-59b, p. 146 e 173; por toda parte no

Seminário 6, especialmente, pp. 6 e 12.

exatamente ao desejo implicado no ato de falar não lhe pode ser indiferente. Se o inconsciente se expressa na fala, o falar da fala deve estar advertido de sua presença, seja como estrutura subjetiva do desejo ou como modulação do desejo de transmissão, não constituindo um discurso pretensamente eximido das condições que ele próprio profere:

“(...) meu estilo é o que é. (...) há também, nas dificuldades desse estilo (...), algo que responde ao próprio objeto de que se trata. Uma vez que se trata, com efeito, de falar de maneira válida das funções criadoras que o significante exerce sobre o significado – ou seja, não simplesmente de falar da fala, mas de falar no fio da fala, se podemos dizê-lo –, para evocar suas próprias funções, talvez haja necessidades internas de estilo que se impõem (...).” (Lacan 1957-1958/1998, p. 30)

Entre tais necessidades são citadas a concisão, a alusão e a ironia, as quais podemos imaginar, respectivamente, veículos da condensação, do deslocamento e da essência equívoca da linguagem em um de seus aspectos (aquele em que um dizer expressa o contrário do que pretende). São todas formas de privilegiar os possíveis encadeamentos virtuais entre os elementos da estrutura. No campo psicanalítico, insistir na fixação de um saber em conceitos corresponde a desconhecer o caráter fluido do inconsciente como virtualidade simbólica de infinitas, porém não aleatórias, vinculações entre significantes como nome da diferença estruturalizada. Assim, “os eixos deste

estilo serão articulados através da tentativa de formalizar a discordância entre saber e ser. Um estilo que quer escrever uma discordância. É por isto que a clareza euclideana é estrangeira ao pensamento lacaniano.” (Safatle, 2002b, p. 275) O estilo do discurso

lacaniano deve ser apropriado à expressão da divergência sugerida pelo desacordo entre dito e sensibilidade, pelo inconsciente como um fora radical, absolutamente não sujeito a processos de conscientização, uma vez que resulta do fato da fala, das condições de que ela precisa para existir, indicando um espaço transcendental que sempre se desloca diante de qualquer enunciação, inclusive (e principalmente) no caso em que esta o toma por alvo. Para Lacan, uma formação pautada em uma "aprendizagem de conceitos" salvaguardados por uma suposta clareza de expressão passa necessariamente ao largo daquilo que mais interessa no campo psicanalítico: a confrontação do sujeito com seu desejo. Trata-se aí, por exemplo, da via pela qual Foucault, em uma entrevista

"Penso que o hermetismo de Lacan é devido ao fato de ele querer que a leitura de seus textos não fosse simplesmente uma 'tomada de consciência' de suas idéias. Ele queria que o leitor se descobrisse, ele próprio, como sujeito de desejo, através dessa leitura. Lacan queria que a obscuridade de seus Escritos fosse a própria complexidade do assunto, e que o trabalho necessário para compreendê-lo fosse um trabalho a ser realizado sobre si mesmo." (Foucault, 1981/1999, p. 299, tradução modificada)

Assim, em contrapartida, é no nível do estilo que se transmite algo justamente daquilo que se perde subjetivamente com a presença do significante30. Falar do inconsciente é caminhar no limite do dizível, é encontrar-se condenado a aludir conhecendo o descontrole da alusão.

Retorna aqui, com outra camada de sentido, o acossamento do conceito pelo significante, emparelhado pela crítica da relação entre psicanálise e ciência. Neste ponto de passagem da lingüística à psicanálise, é preciso envergar preceitos aristotélicos com o disparate de reter a ciência ainda que se trate do particular (ou do "individual"): “(...)

tudo o que é da ordem do inconsciente estruturado pela linguagem coloca-nos diante do seguinte fenômeno – não é nem o gênero nem a classe, mas somente o exemplo particular que nos permite apreender as propriedades mais significativas.” (Lacan

1956-1957/1998, p. 65)

Grosso modo, para Aristóteles, o conhecimento do particular, adquirido pela

sensação, sofre de três deficiências interdependentes: não provê a causa, não se adéqua à tarefa demonstrativa, não é extensível a diversos particulares. No final do Livro I dos

Analíticos posteriores, lemos, por exemplo, que não há

"(...) arte demonstrativa do conhecimento adquirido por sensação. Mesmo que a sensação tenha por objeto uma qualidade, e não apenas uma qüididade, temos de sentir pelo menos necessariamente tal coisa determinada, num lugar, e num tempo definidos. Mas o que é universal, o que se aplica a todos os casos, é impossível de perceber, pois o universal não é, nem algo de determinado, nem um tempo determinado,

que é sempre e em toda parte. Como as demonstrações universais, e como as noções universais não são sensíveis, é evidente não haver ciência de sensação." (1987, p. 98)

Há ainda um outro motivo que impede a ciência do particular, seu caráter aberto, assim descrito por Chauí: "(...) não há como delimitar e definir completamente um particular

que (...) é um termo cuja compreensão é infinita, adquirindo e perdendo incessantemente predicados ou propriedades." (1994/2002, p. 377) Enfim, é condição

de ciência (demonstrativa) a ordem do necessário, algo, por essência alheio ao particular (e, tanto mais, ao individual).

Em sentido contrário ao de tais direcionamentos, o que há no estruturalismo é um determinação necessária do individual (isto é, da diferença individualizada, mas, claro, não submetida a uma identidade) pela estrutura, determinação que diz, em sua totalidade, o que a diferença "é". A psicanálise não se descreve nem pela opinião nem pela ciência do universal: “Opinião verdadeira não é ciência. E consciência, sem

ciência, não passa de cumplicidade de ignorância. Nossa ciência só se transmite ao articular oportunamente o particular.” (Lacan 1958d/1966, p. 632) O estilo é o

desdobramento de um fato universal: a relação impreterível do homem com a linguagem. Mas é um desdobramento absolutamente inapreensível por tal via pois generalizar jamais se furta ao malogro quanto à hecceidade. Porém, se neste caso fazer ciência é encontrar a razão de ligação entre significantes, e se o significante nada é senão a colocação em estrutura de uma diferença, então, no estruturalismo, pelo menos tal como aparece em Lacan, o genuíno da ciência é direcionar-se ao particular – o que, no caso, significa buscar a necessária presença do sujeito concomitante à diferença. Não que escamoteá-la, como na física, seja passo ilegítimo. Mas restringe o valor de ciência, por não levar o fundamento às suas últimas conseqüências. Sob esse ângulo, e tendo em vista as tensões existentes entre conhecer e fazer ciência, o conhecimento do particular não apenas é inútil para gerar conhecimento de outro particular; é inútil para gerar

conhecimento. Simplesmente porque conhecer é considerado, diante da assunção da

hipótese do inconsciente, uma tarefa impossível. Dado que se encontra salvaguardada a possibilidade da ciência, seria um erro enxergar apressadamente nesse contexto uma inflexão do ceticismo. Mais uma vez, trata-se de saber: que a verdade do desejo possa ser expressa no significante, movimento ao qual se supõe uma estrutura porque o

de ciência, embora não seja, de forma alguma, uma solução, se entendida como absoluta, como dissolução dos impasses. Pois o problema é que, enquanto essa relação entre significante e sujeito for pensada como relação de determinação totalizada do primeiro sobre o segundo, o caminho continuará restaurando, com novas cores, o paradoxo envolvido na questão. Em que pese tal observação, há um ponto que se manterá firme: a travessia do estruturalismo deixa a herança sólida da “(...) necessidade

de passar por uma outra forma que não a da apreensão conceitual.” (Lacan, 1957-

1958/1998, p. 65) Ora, não seria o conceito justamente o instrumento da passagem malsucedida do particular ao universal? Não seria ele cúmplice da ilusão de compreensão? Assim, “Tendo em vista o terreno em que nós nos deslocamos, mais do

que pelo uso do conceito, é por uma deturpação do conceito que somos obrigados a proceder. Isso em razão do campo onde se movem as estruturações de que se trata.”

(Lacan, 1957-1958/1998, p. 65)

Convém marcar ainda um detalhe talvez esclarecedor. A originalidade apresentada em semelhante equacionamento das questões epistemológicas possibilitado pela racionalidade estruturalista torna a psicanálise lacaniana imune à crítica direcionada por Althusser ao projeto politzeriano para a construção de uma psicologia concreta. Formulada em Ler o capital, sua argumentação incide, de acordo com Bernard (1973/1974), sobre este ponto preciso: a perspectiva do concreto, ao sobrepor "ser" e "conhecer", terminaria por reproduzir exatamente a ideologia de que busca se desvencilhar uma vez que propor objetos em nível discursivo distinto daquele ao qual pertence o relato imediato, mesmo quando se tem em vista a descrição de situações, não é, por princípio, extirpável da definição mesma de qualquer empreendimento científico. Tratar-se-ia de um resultado inevitável ao próprio espírito da ciência, sem o que ela não teria razão de existir. Na exposição fornecida por Bernard, lemos que:

"De fato, o projeto científico implica uma construção de objetos que se revelam perfeitamente estranhos ao dado 'concreto' fornecido pela percepção: o conhecimento só existe 'na abstração de conceitos'. Ao querer voltar ao concreto, Politzer condenou-se à esterilidade: seu projeto de 'psicologia concreta' jamais pôde realizar-se. A virtude do termo 'concreto' esgota-se em seu uso crítico sem poder dar origem a um conhecimento propriamente dito." (1973/1974, p.42, grifo nosso)

uma idéia ingênua de abstração não atribuível a Politzer31. Em seguida, apresenta as diretrizes gerais da obra de Lucien Sève como aquela que se atribui exatamente a tarefa de, dando continuidade às pesquisas de Politzer, atestar a fertilidade de seu direcionamento, desafiando o parecer de Althusser. Contudo, apesar da impertinência, a crítica de Althusser serve muito bem aqui para iluminar, a contra-exemplo, o que acontece com o questionamento lacaniano da ciência nesse momento. Pelas observações colocadas no parágrafo anterior, percebemos que a nova caracterização da ciência da qual Lacan participa – e para cuja problematização contribui – exige uma disposição diferenciada dos termos "abstrato" e "concreto". Suas localizações e suas referências recíprocas aí são tais que a discussão pode ser conduzida a um terreno no qual a oposição entre os níveis do conceito e do particular – por razões outras que as da razão dialética – não é mais natural ou necessária. Essa análise é curiosa porque o uso explicativo do significante, sendo uma abstração no sentido politzeriano, não o é no sentido utilizado por Althusser para criticar Politzer. E, nessa aposta, o estruturalismo requer, de fato, um distanciamento relativamente ao segundo na medida em que, em seus termos, o caminho de uma "ciência do particular" não é o da primeira pessoa, mas o caminho da diferença formalizada.

"Falar no fio da fala" é, portanto, atitude na qual convergem: um afastamento da ilusão de compreender, uma coerência com a idéia da co-pertinência entre verdade e erro, um esforço de manifestação do estilo como revelador da estrutura subjetiva tal como articulada pela psicanálise, um exercício de pensar para além do conceito ou no seu limite. Tudo isso encontra-se condensado na diferenciação entre teoria do signo e teoria do significante: a linguagem, na dimensão que interessa – a do significante –, não significa mais, como nos textos anteriores, para alguém, mas para outro significante.

É a introdução do simbólico que permite o estabelecimento de um ponto de vista diferenciado quanto à constituição concomitante do grupo sujeito-objeto-outro- realidade. Tal como no artigo sobre a família, de 1938, ela continua a ser defendida, mas a colocação em segundo plano do crivo dualista em favor da efetividade da estrutura garante agora uma saída epistemológica mais interessante. Voltando a criticar indiretamente suas próprias posições anteriores ao criticar diretamente outros autores, Lacan comenta, no Seminário 5, uma distância com relação a Melanie Klein por trás da qual se encontra a revisão de sua antiga tese de equiparação entre fenômeno de conhecimento e fenômeno paranóico. Klein, ao perceber, ainda que de modo exemplar, a complexidade da relação da criança com o desejo do outro, teria permanecido alheia à imposição do desejo do Outro. Ao formular o movimento de constituição do desejo

"(...) simplesmente no confronto da criança com o personagem materno, ela desembocou numa relação especular (...)" (Lacan, 1957-58/1998, p. 271-2), sem meios

de sair do nível superficial e perigosamente psicológico da projeção que situaria a realidade como delírio subjetivo:

"No final das contas, nada nessa dialética pode nos retirar de um mecanismo de projeção ilusória, de uma construção do mundo a partir de uma espécie de autogênese de fantasias primordiais. A gênese do exterior enquanto lugar do ruim permanece puramente artificial e submete todo o acesso posterior à realidade a uma pura dialética fantasiosa." (Lacan, 1957-58/1998, p. 272)

Chamar a atenção nesse momento para a presença primordial do pai, figura do terceiro e da lei, traduz, nesse sentido, a necessidade de um campo transcendental para que seja possível pensar a formação da realidade sem resvalar nos pólos opostos do realismo e do idealismo; sem a verificação de objetividades ingênuas, sem a atribuição de caráter psicológico à realidade. Esta, perspectivada em função da linguagem, não deixa de ser o resultado de um processo racional extra-psicológico. Da mesma forma, de outro ângulo, embora a verdade habite o erro, retirando daí seu caráter negativo, esse erro é produto de um processo cuja estrutura pode ser definida. Mais tarde, em entrevista, Lacan confirmaria o seguinte comentário de Caruso:

todos os seus escritos) sobre procurar uma saída que não seja somente um empiria, como no caso das investigações de Melanie Klein, e que, ao mesmo tempo, não seja o logos separado da empiria. Para dar um exemplo, pensei na música, que é simultaneamente som e estrutura (…) e naquilo a que Kant se referia com a noção de esquema transcendental." (1966b, pp. 113-4)

A analogia com a música já havia sido assinalada por Lévi-Strauss32: articulando dois tempos, um reversível (sincrônico) e outro irreversível (diacrônico), a partitura musical33, pela interdependência que mostra existir entre harmonia e melodia, é reveladora da relação entre a estrutura e sua atualização. Ela bem se presta a esclarecer o valor transcendental da saída encontrada por Lacan a partir do estruturalismo. Trata-se de estimar o esquema, tido por racionalidade do significante, sem, no entanto, desprezar a experiência que, no caso, é a clínica:

“Por certo, admito que busquemos referências gerais para o que descrevemos; devemos mesmo fazê-lo a todo instante. Mas sempre sublinhei a necessidade de perseguirmos a própria experiência de tão perto quanto possível. É apenas sob esta condição que temos a oportunidade de fazer progredirem os conceitos da experiência analítica e seu manejo.” (Lacan, 1956-57/1994, p. 391)

Na verdade, essa fonte que é a experiência possui, na psicanálise lacaniana, relações muito singulares com a teoria, relações que, em diversos pontos, as tornam indiscerníveis, uma vez que aquilo que se oferece na experiência não é objeto externo à teoria, senão a própria fala que a constitui em discurso exibidor da estrutura da fala. Tal como na partitura, a fala, atualização da estrutura, não é exterior à estrutura. Dessa forma, a epistemologia lacaniana, baseada no transcendental da estrutura concreta,