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NFLEXÕES DA ESTRUTURA NA PSICANÁLISE

2.4. Modos de articulação da estrutura

Dizer que esse campo virtual que é o inconsciente se articula como cadeia é, senão um pleonasmo, uma observação estritamente analítica. No pensamento da estrutura, significante, articulação e cadeia são termos não apenas interdependentes, mas à beira da sinonímia, de modo que não há articulação que não seja articulação de significantes – “No início, é como significante que se articula o que quer que seja, nem

que seja uma cadeia de pêlos.” (Lacan, 1959-60/1986, p. 268) Não há significante sem

constituição de uma cadeia cujos eixos de organização são dois, e apenas dois, um vertical e outro horizontal:

"(...) não há cadeia senão de significantes; não há organização de significantes a não ser em cadeia. Daí, enfim, a metáfora e a metonímia: sobre uma cadeia significante, essas duas relações e somente elas podem ser definidas; reciprocamente, uma cadeia significante é um conjunto sobre o qual podemos definir as relações de metáfora e metonímia, e somente elas. Isso exige, evidentemente, que essas relações, descobertas nas línguas, não sejam próprias às línguas, mas extensíveis a toda espécie de cadeia." (Milner, 2002, p. 144-5)

21 Trata-se de uma tese caracteristicamente estruturalista, cuja força é patente tanto em Lévi- Strauss (como já vimos), quanto em Saussure.

da cadeia em um eixo de contigüidade ou com o significante que poderia vir a ocupar o seu lugar, substituindo-o em função, sem que isso gere, obviamente, a anulação de suas diferenças. Por que esses dois eixos? Porque a atualização dos elementos estruturais sugere simultaneamente a formação da série e a remissão ao conjunto dos elementos, ao sistema como um todo. Já vimos acima que a estrutura como totalidade dá origem à discriminação de seus componentes, e não o contrário. Por outro lado, a atualização de uma diferença significante reclama a próxima, se presumido o dinamismo como característica da estrutura22.

2.5. Realidade

Ou ligação com o sistema ou ligação com o significante seguinte no fluxo da atualização. A isso se resumem as referências cabíveis à unidade estrutural mínima. Ela determina o significado e, desdobrando uma incidência perlocucionária, cria "uma

ordem de ser nova" (Lacan, 1953-1954/1975, p. 263), mas sua única forma de relação

com a realidade se restringe ao modo da negação. Lacan se baseia em Santo Agostinho para desenvolver a idéia de que uma significação só remete a outra significação:

“(...) para tudo que é propriamente da linguagem, enquanto ela é humana, isto é, utilizável na fala, não há nunca univocidade do símbolo. Todo semantema possui sempre vários sentidos.

Donde desembocamos nesta verdade absolutamente manifesta na nossa experiência, e que os lingüistas bem conhecem, de que toda significação não faz nada mais do que reenviar a uma outra significação.” (1953-1954/1975, p. 272)23

22 A ênfase no caráter dinâmico do sistema/estrutura é mais mérito de Jakobson do que de Saussure (Ver Dosse 1991a/1993, pp. 75-81), bem como cabe ao primeiro a associação dos dois vetores com as figuras da retórica e ainda a indicação de suas relações com mecanismos descritos por Freud na Interpretação dos Sonhos. (V. Jakobson, 1954/1999)

realidade não é um ato capaz, por si mesmo, de garantir exatamente o que está sendo apontado. Mesmo quando nos empenhamos em ligar, com o gesto indicador, um nome a um espaço discreto do real, não escapamos da ambigüidade própria tanto ao nome quanto ao ato da indicação, que exigem, ambos, a referência à totalidade da linguagem, pois a ela compete a discriminação de seus respectivos lugares estruturais. Não há indicação em estado bruto: ela já surge de um mapeamento lingüístico que abre o contexto do espaço do objeto como objeto a ser re-conhecido (conforme o desejo inconsciente). Não há objeto em estado bruto: a linguagem, quando "atinge a realidade"24, já encontra nela algo de sua própria natureza:

“(...) o que é apreensível no nível do discurso concreto sempre se apresenta, em relação ao engendramento do sentido, numa posição de ambigüidade, dado que a linguagem volta-se para objetos que já incluem em si mesmos alguma coisa da criação que receberam da própria linguagem.” (Lacan, 1957-58/1998, p. 50)

Não existe uma significação que se reduza a uma indicação purificada da realidade porque “há uma propriedade original do discurso com relação à indicação.” (Lacan, 1955-1956/1981, p. 155) Uma significação só significa por remeter a todas as outras; uma indicação qualquer já pressupõe os objetos ascendidos à linguagem: “O sistema da

linguagem, em qualquer ponto em que vocês o tomem, não atinge jamais um indicador diretamente dirigido a um ponto da realidade; é toda a realidade que é recoberta pelo conjunto da rede da linguagem.” (Lacan, 1955-1956/1981, p. 43) Essa exigência da

presença virtual de toda a estrutura em qualquer atualização significante, essa idéia de que "(...) a significação só se realiza a partir de uma captação das coisas que é global” (Lacan 1955b/1966, p. 414), é o primeiro passo que outorga ao conceito de Outro o caráter de ponto necessário no desenvolvimento da teoria.

Jamais designando diretamente um referente na realidade, a existência da linguagem possui um teor de fatalidade porque cava um fosso entre o homem e as coisas sensíveis, abolindo estruturalmente qualquer possibilidade de imanência: "(...) os

significantes só manifestam a presença da diferença como tal e nada além disso. Logo, a primeira coisa que ele implica é que a relação do signo à coisa seja apagada." (Lacan, 1961-62, p. 58) Mediadora incontornável, não é possível passar à

em cadeia sob a forma de sua ausência que é, afinal, a sua verdadeira forma de existência: "É o mundo das palavras que cria o mundo das coisas, inicialmente

confundidas no hic et nunc do todo em devir, dando seu ser concreto à essência delas (...)." (Lacan, 1953c/1966, p. 276) Lacan aplica a esse contexto o conceito de castração,

chamando a atenção para “(...) o que tem de castrado tudo o que, do ser vivo, tenta se

aproximar do ser vivo tal como ele é evocado pela linguagem” (1958-59a, p. 131),

movimento teórico que, aliás, se encontra com a teoria freudiana do objeto do desejo como algo essencialmente perdido.

Nesse sentido, o isolamento do significante com relação ao significado garante a permanência de uma ordem explicativa do desejo radicalmente divorciada de um trato realista.

2.6. Verdade

Tal distância entre realidade e discurso é forte ponto de conjunção com o pensamento de Kojève, com o momento em que ele procede a uma identificação entre erro e verdade:

“A verdade é mais do que uma realidade: é uma realidade revelada; é a realidade mais a revelação da realidade pelo discurso. Há, portanto, no seio da verdade, uma diferença entre o real e o discurso que revela. Mas uma diferença se atualiza sob a forma de uma oposição, e um discurso

oposto ao real é, precisamente, um erro. Só há, portanto, realmente uma verdade lá onde tenha havido um erro.” (Kojève, 1947, p. 463)

A verdade é o próprio descompasso entre realidade e discurso. É, portanto, de outro ângulo, a verdade da impossibilidade da verdade porque nada da "realidade" terá lugar na linguagem. Dessa forma, a verdade, cuja forma é necessariamente discursiva – como tal, recoberta pela inépcia própria a qualquer discurso –, não se distingue do erro. Esse é, por sinal, o raciocínio que subjaz à declaração de que a verdade possui estrutura de ficção. Aproximando verdade e poesia ao comentar a obra de Gide, Lacan observa: “Há

operação poética deve nos deter, antes, neste traço que se esquece em toda verdade, a saber, que ela se mostra numa estrutura de ficção.” (Lacan, 1958c/1966, p. 741-2) O

discurso, tal como a consciência em Hegel, não possui meios de sair de si mesmo; não podemos dar as costas à linguagem para "ver" o que há por detrás. Essa visão é estruturalmente impossível. Mas, ainda que fosse postulada sua possibilidade, o visto não se descolaria de uma nova nomeação. O para-além da cortina, caso não encontrasse outro nome, seria ainda minimamente indicado exatamente por esta expressão "o para- além da cortina" como único resto acessível à razão e desligado do imediato da sensação ou do sentimento. Encontrar-se capturado pelas tramas do discurso implica que a relação com o mundo das coisas seja a relação com um mundo perdido. Dizer que

“(...) o ser da linguagem é o não-ser dos objetos (...)” (Lacan, 1958d/1966, p. 627) é

expressar a verdadeira significação da barra no esquema do signo apresentado por Lacan. Ela materializa, em última instância, essa idéia, de inspiração kojèviana, de que a verdade reside no erro. Por outro lado, a crença enganadora no domínio das coisas como mundo de fato é um resultado dessa mesma linguagem castradora: "(...) é claro que a

linguagem não é feita para designar as coisas. Mas esse logro é estrutural na linguagem humana e, em certo sentido, é sobre ele que está fundada a verificação de toda verdade." (Lacan, 1953-1954/1975, p. 272) A noção de mundo se reduz, assim, à

reiteração, na estrutura, de uma potência para ser dito. Faz parte da própria estrutura da linguagem coagir o sujeito a acreditar no objeto como imagem de um mundo real e acessível, o que é apenas outra forma de dizer que o significante determina o significado, que o simbólico determina o imaginário. É o que explica Bairrão na seguinte passagem:

“Não é que o homem recorra aos contornos das coisas perdidas para fazer letras. Ficciona as coisas como perdidas a partir do princípio do significante. É de lá que o traço, mera matéria bruta da letra, é retroativamente significado como cópia de parte destacada do mundo.” (2003, p. 242)

O que seria, então, o erro se tomarmos essa palavra no sentido tradicional de oposição ao caminho da verdade, de atitude mal orientada? Essa idéia não deixa de apresentar certo valor operatório quando passa a corresponder à tentativa de fixar o sujeito, à guisa de conhecimento, em forma positiva e objetivante.

deslocamento no sentido de que as possibilidades do conhecimento ganham uma radicalização da valoração negativa que já possuíam com a qualificação de fenômeno paranóico: devido à incidência do funcionamento inconsciente, todo conhecimento só pode ser desconhecimento – como o objeto poderia ser acessível ao pensamento se nem o pensamento é acessível a si mesmo? 25 –, o que lega à teoria a necessidade de redefinir seus objetivos e talvez de redefinir a própria noção de teoria e sua relação com o ideal de ciência. Tanto que este sofre oscilações. Notadamente no Seminário 2, constituindo mais um ponto a defini-lo como um momento da elaboração teórica cujos contornos ainda se apresentam visivelmente mal definidos. Aí, o autor primeiramente associa a noção de libido ao ideal da física, no que diz respeito à sua função de unificação da disciplina psicanalítica, para em seguida separar os dois domínios teóricos com a justificativa de que a psicanálise se opõe à perspectiva de ligação lógica entre passado e futuro que não deixa margem para a ação no sentido de uma realização que implica o novo. De seu ponto de vista, a física cala os astros ao transpô-los para um regime matemático construindo um saber fundamentado no objetivo de formalização. Para a psicanálise, a situação não é análoga porque não pode ambicionar a simbolização de seu objeto se esta tem por efeito torná-lo silente. É visível que a reflexão subjacente a estas considerações é um questionar-se quanto aos impasses gerados pela intensa aproximação, que então tem lugar, com o ideal de ciência presente no estruturalismo. Por estar imbuído da experimentação crítica desses impasses é que Lacan anuncia e desenvolve tal aproximação ao mesmo tempo em que se debate com suas conseqüências, chegando a mencionar apenas no condicional a localização da psicanálise no âmbito científico: "Se estivéssemos operando no mundo da ciência, se

bastasse mudar as condições objetivas para obter efeitos diferentes, se o desejo sexual seguisse ciclos objetivados, só nos restaria abandonar a análise." (1954-55/1978, p.

263, grifo nosso) Tal questionamento não desaloja o ideal de ciência, mas, no ano seguinte, o repõe mais decididamente inserido no estruturalismo. Nesse momento –

Seminário 3 –, o desejo de ciência é depositado na busca pela estrutura; fazer ciência é

desconfiar do fenômeno ainda que procurando nele mesmo a estrutura que o

25 O desenvolvimento detalhado dessa questão é o eixo principal dos livros de Bairrão (2003 e 2004).

pela simples razão de que nossa démarche é científica e de que o ponto de partida da ciência moderna é não fiar-se nos fenômenos e procurar por trás algo de mais subsistente que os explique [leia-se: a estrutura simbólica].” (Lacan, 1955-1956/1981,

p. 163) A realidade do fenômeno é expressão do caráter racional da estrutura. Retorna, assim, um parentesco entre psicanálise e física pelo viés anti-empirista da equivalência da lei com uma fórmula que, por se constituir de significantes, encontra-se descolada da significação: “Extrair uma lei natural é extrair uma fórmula insignificante. Menos ela

significa alguma coisa, mais contentes ficamos.” (Lacan, 1955-1956/1981, p. 208) A

psicanálise preserva, no entanto, sua distinção porque encontra-se envolvida, a partir da matematização da série responsável por tornar "pensável" (Lacan, 1955-1956/1981, p. 270) o que disse Freud, com a consideração necessária da presença da subjetividade no real. As fórmulas significantes que lhe interessam são aquelas que, ao contrário da física, não apenas não excluem a pergunta "quem fala?", mas são as únicas capazes de responder pela estrutura desse sujeito. Trata-se aqui de mais um momento de aprofundamento do conflito determinação versus subjetividade: “A psicanálise deveria

ser a ciência da linguagem habitada pelo sujeito.” (Lacan, 1955-1956/1981, p. 276) Ela

ocupa, então, a estranheza de um lugar que simultaneamente se inscreve no científico e o questiona. Cabe a tal estranheza o encargo pelas constantes ressignificações do assunto ao longo da obra. Sem poder ser uma "ciência humana" – cujo objetivo se debate com a tendência a fazer do homem uma coisa (Lacan, 1957-58/1998, p. 356), substancializando algo cuja essência é descrita pelo não-substancializável –, não lhe convém optar pela doxa: “(...) nosso discurso deve ser um discurso científico. Dito isso,

parece que, para atingir esse fim, os caminhos não são muito fáceis quando se trata de nosso objeto.” (Lacan, 1957-58/1998, p. 251) Assim, o pensar psicanalítico deve

diferenciar-se da compreensão porque esta se atém ao fenômeno, abordando-o pela intuição como instrumento psicológico. Trata-se do privilégio do lógico da explicação em oposição à vivência da empatia:

“Vocês conhecem a pretendida oposição do Erklarën e do Verstehen. Nisso, devemos sustentar que só há estrutura científica onde há Erklarën. O Verstehen é a abertura para todas as confusões. O Erklarën não implica de forma alguma uma significação mecânica, nem coisas dessa ordem. A natureza do Erklarën é o recurso ao significante como único

Mas ela também deve se diferenciar da física porque esta, apesar de buscar a razão inaparente do fenômeno, cala o sujeito elegendo o sujeito do conhecimento, correlato presumido de seu objeto ingenuamente tomado por puro. A difícil tarefa da psicanálise no meio desse engodo é então procurar a razão do fenômeno (sendo ciência) no caso em que o fenômeno é o sujeito que fala (não sendo ciência nos moldes da física).

Em todo caso, física ou psicanálise, a ciência, produção de fórmulas significantes, descarta o realismo como ponto de partida:

“Não se trata, portanto, do que se chama vagamente de realidade, como se fosse a mesma coisa que a realidade das muralhas contra as quais nos chocamos; trata-se de uma realidade significante, que não nos apresenta simplesmente botaréus e obstáculos, mas uma verdade que se verifica e se instaura por si mesma como orientando esse mundo, e introduzindo nele os seres, para chamá-los por seu nome.” (Lacan, 1955-1956/1981, p. 229-230)

Tendo em vista o fato de que o objeto é constituído por referência ao funcionamento totalizado da linguagem e não a pontos discretos que ela atingisse no real, seria, à primeira vista, plausível supor a presença de uma concepção pragmática da verdade. Com efeito, essa é a leitura de Dews, para quem Lacan interpretaria a verdade como (1) êxito pragmático de crenças compartilhadas lingüisticamente sem, no entanto, ser reduzida a um valor instrumental porque (2) tal êxito estaria submetido a uma irredutibilidade transcendental que o impede de ser regulado por um acordo tácito entre falantes. Quanto ao primeiro ponto, Dews o distingue por contraposição a Derrida: diante da origem lingüística do objeto, não fica implicado

“(...) que a referida distinção entre linguagem e realidade seja em última instância indefensável, como sugere o conceito de ‘texto geral’ de Derrida, visto que o sentido presumido de quaisquer termos particulares não pode ser inteiramente separado do êxito pragmático das crenças partilhadas por uma comunidade lingüística. Noutras palavras, há uma interação contínua entre saber e sentido, em que novas descobertas – embora jamais sejam encontros não mediados com o real – podem desestabilizar interpretações existentes.” (2003, p. 78)

contrastado com a posição habermasiana:

“(...) para Lacan, a norma de afirmação da verdade possui um estatuto não empírico, apriorístico. Ela não é o resultado de um acordo entre parceiros envolvidos na comunicação, pois o estabelecimento de tal acordo pressupõe previamente a função da linguagem como enunciação da verdade.” (2003, p. 82)

Sustentaremos, com Dews, o eixo transcendental da verdade em Lacan, mas não o eixo pragmático, pois, nesse contexto, ele tem mais a ver com a realidade do que com a verdade, ponto que impede uma aproximação mais certeira com as filosofias pragmáticas. O conceito lacaniano de verdade não possui tom pragmático porque, em sua perspectiva, a concepção de linguagem é sempre recoberta por diretrizes kojèvianas responsáveis por indicar os rumos de tal conceito. Que o objeto seja construído a partir da linguagem – ainda que, nesse momento, ela também se traduza na dimensão da intersubjetividade – não significa que os vetores dessa constituição sejam os usos compartilhados desse objeto, mas, antes, sua relação com a negatividade do desejo orientada pelos direcionamentos autônomos e arbitrários (do ponto de vista do sujeito falante) do significante. O problema na interpretação de Dews parece ser a ausência da indicação de que este nível epistemológico em Lacan é inseparável do funcionamento do desejo e que, nisso, a verdade é sempre algo de negativo. Assim, ela não pode sofrer redução pragmática. É pela via dessa abordagem específica, mas não necessária, do uso que Lacan faz do termo "verdade" que Dews realiza uma aproximação, improvável, entre a teoria lacaniana e um tipo de discurso pautado na convenção (sustentado por referência a Apel)26. A realidade pode ser vista como o produto de um uso

26 Isso fica claro quando o autor comenta a tensão, descrita por Lacan, entre o ato de mentir e seu necessário acompanhamento por um horizonte de verdade. Ele diz:: “(...) um universo

social no qual a maior parte dos integrantes mente seria impossível sob fundamentos transcendentais: a expectativa universal de mendacidade seria simplesmente dissipada em uma revisão dos schemata interpretativos destinados à maximização da verdade. Desse modo, Lacan salienta aqui uma assimetria elementar entre verdade e falsidade, pois uma mentira funciona somente no interior de uma relação intersubjetiva estruturada pela assunção normativa elementar de que a finalidade da comunicação lingüística consiste em dizer a verdade. Se uma declaração considerada verdadeira em determinado momento é uma declaração cuja exigência de verdade tenha sido (provisoriamente) acolhida ou sustentada, uma mentira não é uma exigência de falsidade que tenha sido igualmente validada, mas antes uma declaração feita com a intenção de criar uma ilegítima exigência de verdade. Assim sendo, a possibilidade da mentira

pressupõe uma convenção segundo a qual a finalidade da linguagem consiste em dizer a verdade, enquanto nenhuma convenção é exigida para o sucesso de uma finta ou de uma

seu valor simbólico próprio, indissociável da idéia de negação e da efetividade do inconsciente que imediatamente ameaçam a manutenção tanto da noção de "compartilhamento" quanto da de "uso". Nesse sentido, a verdade não tem a ver diretamente com a realidade, embora ambas devam sua constituição ao funcionamento simbólico. Porém, de lados opostos: a realidade como produto imaginário, sempre devedora da ilusão de completude secretada pela imagem especular; a verdade como essência negativa do simbólico.

Avançando um pouco mais sobre a relação entre linguagem e realidade, tudo isso significa que esta é secretada como realidade perdida pelo funcionamento da primeira. Não é algo cuja existência prévia ofereceria resistência a uma linguagem cujo projeto de assimilação estaria fadado ao fracasso. Se este fosse o ponto de partida, seríamos obrigados a concordar com a crítica de Merquior:

“O pressuposto subjacente é que o que chamamos ingenuamente de correspondência à realidade repousa apenas numa língua compartilhada, que impõe às coisas um ajuste conformista a significados sociais manipulados ou inconscientes em vez de compreender sua verdadeira natureza (que é, em todo caso, apenas função das nossas ‘interpretações ativas’). O problema é que não se pode dizer ‘não há mímese’ a partir dessa premissa.” (1991, p. 281)

Ou seja, o problema passaria a ser: como posso afirmar que não há correspondência (ou imitação) entre linguagem e coisa se não tenho como compará-las, se não há nenhum ponto de referência, nenhum acesso à realidade através da linguagem? Realmente, se não podemos sair da linguagem, é impossível, por princípio, formular uma hipótese sobre a existência da realidade que lhe seja externa. Não teríamos acesso a nenhum termo de comparação que, exterior à linguagem, fosse capaz