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NFLEXÕES DA ESTRUTURA NA PSICANÁLISE

2.9. Ontologização do significante?

Em todo esse desdobramento da relação linguagem/coisa já se acham sugeridas as conseqüências de cunho ontológico, em parte, diretamente herdeiras do conceito saussuriano de valor. É, de fato, patente o quanto o caminho estruturalista corre o risco de ontologizar o simbólico. Para Roustang (1986/1988), esse teria sido o

não sendo suportado por nada.” (p. 26) Essa tendência à ontologização do simbólico,

ao contrário do que diz Roustang na continuidade de seu texto, se faz presente em Lévi- Strauss de forma explícita e configurou talvez a tensão interna mais importante de seu pensamento. Teria ele percebido, em sua teoria da estrutura, o encaminhamento rumo a uma espécie de, digamos assim, platonismo do significante, e procurado corrigir esse resultado tornando novamente coextensivas a natureza e a cultura34 – na contramão do primeiro capítulo d’As estruturas elementares do parentesco que situava a posição paradoxal do incesto diante da oposição radical entre essas duas ordens35 –, chegando a afirmar que o único significado dos mitos é a própria mente que os produz a partir do mundo do qual também faz parte36. Dessa perspectiva, o livro de 1962 representa o ponto mais apurado. Lemos aí que

“O próprio do pensamento selvagem é ser intemporal, ele quer apreender o mundo, como totalização sincrônica e diacrônica ao mesmo tempo, e o conhecimento que dele toma se assemelha ao que oferecem num quarto espelhos fixos em paredes opostas e que se refletem um ao outro (assim como aos objetos colocados no espaço que os separa) mas sem serem rigorosamente paralelos. Forma-se simultaneamente uma multidão de imagens, nenhuma das quais é exatamente parecida com as outras; por conseguinte, cada uma delas traz apenas um conhecimento parcial da decoração e do mobiliário, mas seu agrupamento se caracteriza por propriedades invariantes que exprimem uma verdade. O pensamento selvagem aprofunda seu conhecimento com o auxílio de imagines mundi. Ele constrói edifícios mentais que lhe facilitam a inteligência do mundo

34 Dizendo agora que a diferença se restringe ao plano metodológico. (Lévi-Strauss, 1962/1997, p. 275)

35 Aí se lê, por exemplo: “É que a cultura não pode ser considerada nem simplesmente

justaposta nem simplesmente superposta à vida. Em certo sentido substitui-se à vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma síntese de nova ordem.” (Lévi-Strauss,

1947/1976, p. 42)

36 Daí a afirmação de que a etnologia é, antes de tudo, uma psicologia. Cf. Lévi-Strauss, 1962/1997, p. 150. Advertidos que estamos quanto à forma pela qual Lévi-Strauss entendia o funcionamento psíquico, sabemos que tal observação não remete a uma interioridade psicológica. Trata-se de uma psicologia formal: refere-se a esquemas conceituais universalizados de apreensão do mundo, como se o próprio mundo conhecesse a si mesmo através dos esquemas mentais do ser humano.

grifo nosso)

Ou seja, para Lévi-Strauss, nesse momento do desenvolvimento de sua reflexão, o pensamento selvagem – o pensamento humano, podemos dizer, já que o livro procura suplantar a tese de que haveria um “pensamento primitivo” distinto do civilizado (em termos de operações lógicas) e a ele inferior, estipulando que a forma do raciocínio é, em qualquer caso, a mesma quando aplicada a um universo que, além das propriedades físicas, reconhece propriedades semânticas (Lévi-Strauss, 1962/1997, p. 296) – é um espelho da natureza e as distorções que impõe ao seu reflexo não atrapalham em nada a repetição da estrutura, haja em vista a identificação entre espírito e mundo: “Como o

espírito também é uma coisa, o funcionamento dessa coisa nos instrui sobre a natureza das coisas: mesmo a reflexão pura se resume em uma interiorização do cosmos.”

(Lévi-Strauss, 1962/1997, p. 276)

Quanto a Lacan, desde cedo estava bastante ciente desse direcionamento – e inclusive de seu próprio posicionamento rigorosamente oposto –, como vemos no seguinte relato, referenciado a seus diálogos pessoais com o antropólogo:

“Lévi-Strauss está recuando diante da bipartição muito categórica que faz entre a natureza e o símbolo, e cujo valor criativo ele no entanto bem percebe, pois é um método que permite distinguir os registros e, ao mesmo tempo, as ordens de fatos. Ele oscila, e por uma razão que pode parecer-lhes surpreendente, mas que é perfeitamente confessada por ele – teme que, sob a forma da autonomia do registro simbólico, reapareça mascarada uma transcendência pela qual, em suas afinidades, em sua sensibilidade pessoal, ele só sente temor e aversão. Noutros termos, teme que depois de termos feito Deus sair por uma porta, o façamos entrar pela outra. Não quer que o símbolo, mesmo sob a forma extremamente depurada com a qual ele mesmo no-lo apresenta, seja apenas uma reaparição de Deus sob uma máscara.” (1954-55/1978, p. 48)

Se Lacan, por seu turno, não pensa que o símbolo seja um reaparecimento de Deus pela porta dos fundos é porque, fazendo valer a permanência de suas diretrizes politzerianas, pretende atingir o campo concreto e imediato da linguagem, tomando a estrutura pela lógica (inaparente, mediata) de seu funcionamento na medida, inclusive, em que essa estratégia lhe permite manter a distinção radical entre natureza (biologia, acima de tudo) e cultura (o simbólico como o campo do sentido essencialmente

causalidade não pode conduzir a um novo reducionismo ontológico. Diante da mesma questão, Lévi-Strauss regride, daquela caracterização fornecida por Ricoeur37 e do objetivo de “(...) evitar a queda numa espécie de Naturphilosophie (...)” (Prado Jr., 1990a, p. 55), a um naturalismo que supõe a identidade entre as formas da natureza e a razão humana, uma vez que essa se deve a um organismo que também compõe esse mundo natural; um naturalismo que, sob essa indiferenciação entre sujeito e objeto, não se distingue de um idealismo, subentendendo da mesma forma uma metafísica, apesar do empenho em evitá-la. Vê-se bem que uma nova ontologia não é, então, poupada, sendo somente deslocada do símbolo para a natureza no estabelecimento de uma equivalência, no nível da isomorfia de estrutura, entre espírito e biologia. Já sabemos que talvez não houvesse nada que Lacan quisesse mais evitar do que um retorno, desse vulto, à biologia e, sendo assim, critica essa inflexão do pensamento de Lévi-Strauss exatamente como queda em um materialismo ingênuo:

"Este mundo tal como é, eis o que concerne à razão analítica, aquela à qual o discurso de Claude Lévi-Strauss tende a atribuir primazia. Com essa primazia, ele também lhe confere uma homogeneidade, no final das contas, singular, que é exatamente o que choca e perturba os mais lúcidos dentre vocês. Estes não podem deixar de discernir o que isso comporta de retorno ao que poderíamos chamar de materialismo primário, na medida em que, no limite desse discurso, o funcionamento da estrutura, aquele da combinatória tão poderosamente articulada pelo discurso de Claude Lévi-Strauss, só faria se aproximar da própria estrutura do cérebro, por exemplo, ou mesmo da matéria, e não representaria, segundo a forma dita materialista no sentido do século XVIII, nada além de sua parelha [doublet] – nem sequer seu substituto [doublure]." (1962- 63/2004, p. 43)

Esse materialismo culmina na identificação entre leis do mundo e leis do significante, como tal, impossível do ponto de vista de Lacan38. Ele então caminha, desta feita distanciando-se de forma decidida do antropólogo, para a continuação do desenvolvimento, não desprovido de problemas, do ponto de vista transcendental,

37 Lembremo-la: um kantismo sem sujeito transcendental. 38 Ver Seminário 10, pp. 42-3.

pode, porém, ser sem sujeito – nem transcendental (um sujeito como pura condição lógica da geração do sentido das representações), nem empírico (como sujeito ao

pathos)39.

Ao contrário do que afirma Roustang (1986/1988, p. 26), o simbólico, para Lacan, não pode, assim, deixar de ter relação com o social ou com a determinação do sujeito pelo outro e pelo Outro. Quando este explica que a relação que interessa não é a do homem com a linguagem qua fenômeno social (Lacan, 1958/1966, p. 689), está querendo enfatizar justamente a precedência da estrutura sobre o fenômeno – lembramos aqui, mais uma vez a crítica de Lévi-Strauss a Marcel Mauss: "(...) Mauss

crê ainda possível elaborar uma teoria sociológica do simbolismo, quando a verdade é que é evidentemente necessário procurar uma origem simbólica da sociedade." (Lévi-

Strauss, 1950/s/d, p. 161) Mas isso não significa excluir o social da teoria. Pelo contrário, trata-se, como vimos no primeiro capítulo, de sublinhar um panorama externalista no qual a intersubjetividade é trabalhada noutro plano que não o da aparência, o qual se restringe ao nível do imaginário. Dessa forma, mediante o estruturalismo lévi-straussiano, Lacan pode substituir aquele paralelismo de sua tese de doutorado – o que se passava entre o plano do psíquico e o do social –, não por um novo paralelismo que tivesse lugar entre, de um lado, o psíquico e o social e, de outro, a estrutura simbólica; mas por uma determinação de mão única no sentido da estrutura sobre aquelas duas ordens representativas do domínio da aparência. Como explica Ogilvie, o antropólogo faz valer uma idéia de tradução conforme a qual a psicologia e a sociologia seriam inflexões externas de uma só realidade, da única realidade, a da estrutura: “(...) Lévi-Strauss formula o termo ‘tradução’, para fazer valer a idéia de que

o psiquismo individual e a estrutura sociológica são duas expressões de uma só realidade.” (1987/1991, p. 67)

Não há, assim, na teoria lacaniana, ontologização do significante. Lacan já mostrava, aliás, em sua crítica ao associacionismo40, que estava bem ciente da capacidade que uma teoria filosoficamente desprevenida possui para a produção de monstros especulativos – mesmo, e talvez principalmente, quando se pretende empírica. Os “seres de linguagem” não se acham imbuídos de uma existência substancial como

39 Retornaremos a esta questão no capítulo 3. 40 V. Lacan, 1936/1966.

diretrizes ontológicas são postas em sua dependência. O ser é secundário ao significante. Citávamos acima: o significante cria "uma ordem de ser nova". (Lacan, 1953-1954/1975, p. 263) Ou seja, o ser não é o significante – este, como diferença pura, a rigor, não pode mesmo se substanciar em sujeito verbal de uma conjugação "é" –, mas o que por este é produzido, ou melhor, o que adquire presença (embora negada) como resto de sua operação. Com efeito, como chamar de “ser” algo em função do que tudo o que existe é? O ser é o que é, não a condição do que é. Assim, o significante regula a própria existência da ontologia como campo de reflexão. Tal regulação não procede por via de representação de uma realidade que possuísse estatuto ontológico42, mas pelo fato de que sua articulação produz imediatamente duas idéias: a própria idéia de realidade (do lado imaginário, dos entes) e a de um campo exterior à linguagem (do lado real, do ser). Dito de outro modo, a interdependência ente/ser não é imediata, mas sujeita à presença primordial do significante.

Cassin, discutindo a efetividade do verbo nos sofistas e afirmando: "é o

'logos' que faz os objetos serem, que dá a consistência e a existência (...)" (2005, §31),

fala, a este propósito, de "contra-ontologização". No entanto, os pontos em que a teoria lacaniana toca a ontologia mais se referem ao real como aquilo que insiste de fora (ex- siste) do que ao nível dos objetos. O que é: o campo que acossa a linguagem graças ao fato de que o significante institui seus próprios limites, o não-dizível constituído pelo dito como ameaça de inexistência do sujeito43. O discurso pára no nível do ser quando atinge, para além da significação, o significante no real44. O simbólico tem notícia desse campo quando se confronta com as margens que ele mesmo produz45. Guardada esta observação, a contra-ontologia ou a pré-ontologia46 que encontramos em Lacan nesse

41 Lacan, 1955-1956/1981, p. 199.

42 É o que observa Stein: a subversão lacaniana da linguagem "(...) consiste basicamente no

seguinte: recusar a concepção da linguagem como representação de uma latente ontologia e expor a linguagem univocamente como articulação.” (1997, p. 30)

43 Mais tarde: o gozo, nome que recebe esse campo quando a referência é o sujeito. 44 Cf. Lacan, 1955-1956/1981, p. 157.

45 A beleza de Antígona, discutida no seminário sobre a ética, seria um exemplo desse fenômeno.

46

Baas & Zaloszyc (1988, p. 28-9) trabalham essa expressão (pré-ontologia).Balmès (1999), na mesma direção, defende que Lacan mobiliza seqüências ontológicas sem chegar a delimitar propriamente uma ontologia.

plano secundário, dependente – em sua instauração no nível da questão – da estrutura sem substância que, ao mesmo tempo, a nega47. Lacan expôs um pouco esse posicionamento no Seminário 11. Ele diz aí que:

"(...) é mesmo de uma função ontológica que se trata nessa hiância48 pela qual acreditei dever introduzir, como lhe sendo a mais essencial, a função do inconsciente.

A hiância do inconsciente, poderíamos dizê-la pré-ontológica. Insisti nesse caráter demasiadamente esquecido – esquecido de uma forma que não é desprovida de significação – da primeira emergência do inconsciente, que é de não se prestar à ontologia. O que, com efeito, se mostrou inicialmente a Freud, aos descobridores (...) – o que se mostra ainda a quem quer que na análise acomode um pouco seu olhar àquilo que é propriamente da ordem do inconsciente – é que ele não é nem ser nem não-ser, mas algo de não-realizado." (Lacan, 1964/1973, pp. 31-2)

O hiato do inconsciente é o pré-ontológico que desempenha função ontológica. Quer dizer, o inconsciente organiza o campo em que se torna possível um discurso "sobre" o ser que, dessa forma, jamais será realmente sobre ele.

Não sendo "res" de ordem alguma, o curioso – e fecundo – é que o significante possui materialidade49. A matéria, aquilo que produz efeito de verdade,

Wirklichkeit, reside no campo do significante. No nível das coisas, objetos, há apenas

imagens e o ser não comparece em seu registro. Quanto a esta função, a palavra não

47 "(...) a linguagem introduz essa dimensão do ser e, ao mesmo tempo, esconde-a dele." (Lacan, 1958-59a, p. 148)

48 Optamos aqui pelo neologismo comumente utilizado nas traduções brasileiras para "béance" por acreditarmos que, ao substantivar o adjetivo "hiante", ele bem se aproxima do termo utilizado por Lacan que significa: estado daquilo que é largamente aberto. (v. Merlet, 2006, p. 151) Vejamos a definição: "Hiante: 1. frm. Com fenda ou buraco muito grandes. 2 fig. Com

muita fome, faminto, esfomeado. ETIM.Lat. hians, antis, 'que tem a boca aberta; boquiaberto; aberto, fundido, rachado; ávido, part. pres. do lat. hĭo, as, āví, ātum, āre' abrir a boca; fender- se, rachar-se; desejar (...)." (Houaiss & Villar, 2001, p. 1526) Além disso, o termo hiância

favorece, em alguns trechos, a preservação da estrutura original da sentença. Na frase que dá seqüência à citação, por exemplo, temos "la béance de l'inconscient". Vertê-la por "a abertura do inconsciente" não deixaria de remeter ao gesto de abrir algo que se encontraria previamente fechado, o que não é o caso. Já a opção por "o intervalo do inconsciente" corre o risco de sugerir tempos alheios à incidência do inconsciente.

49 A ênfase sobre esse aspecto conduzirá Lacan a, posteriormente, desenvolver mais a noção de "letra" sobre a de significante.

coagular em existência positiva50.

Nesse sentido, a introdução do registro simbólico significa a verificação de uma "descompressão ontológica" de segundo grau. Comentando a passagem do biológico ao imaginário na obra lacaniana, Prado Jr. pondera:

“Tudo se passa como se o instinto sexual – ou seja, uma estrutura ainda puramente biológica – provocasse uma espécie de descompressão

ontológica, responsável pela produção de fissuras (pensemos no sujeito

que se projeta de ‘mil maneiras’, através do real, em direção a sua própria imagem especular) na superfície até então lisa do Ser de Parmênides, transformando-o num imenso espelho infinitamente fraturado.” (1990a, p. 66)

Remeter o espelho a uma fissura anterior, porque constituinte, diminui, ainda mais, a pressão que supostamente exigiria a sobreposição de um teor ontológico à biologia. A operação de vácuo ontológico efetuada pelo simbólico é dupla e tende ao nada: descomprime a biologia e descomprime a imagem sem condensar, a partir disso, o ser em qualquer coisa positivada, quer no significante, quer na realidade.