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CRÍTICA DE LUCAS E DESPOLITIZAÇÃO DA POLÍTICA ECONÔMICA DESDE

O casamento teórico antes mencionado não pode ser observado em seu sentido interpretativo sem que se analise a nova forma de se compreender a ação econômica de Estado no contexto de crise do mercado mundial a partir dos anos 1970. E nesse aspecto, a emergência de um novo paradigma econômico – o dos novos-clássicos – adquire significativa importância histórica.

A partir da década de 1970, o acordo de Bretton Woods inicia seu colapso à medida em que novas tecnologias de informação, processamento e comunicação potencializaram o movimento de fluxos financeiros internacionais. Estes retomavam sua dinâmica desde meados dos anos 1960, após o período de guerra e reconstrução europeia e japonesa (EICHENGREEN, 2008, p. 134-135). Não obstante, em agosto de 1971, por meio de Richard Nixon, o dólar estadunidense deixou de ser conversível tanto em ouro quanto outras moedas estrangeiras, e em abril de 1978 a Segunda Emenda dos Artigos do Acordo de Bretton Woods (Second Amendment of the Articles of Agreement) se tornou efetiva, legalizando a flutuação cambial e forçando os países signatários a se adequarem (GOLD, 1978; EICHENGREEN, 2008, p. 138).

As consequências dessa nova dinâmica de fluxos financeiros internacionais foi que, ao contrário do que ocorria desde 1945, a partir dos anos 1960 ganhou peso o financiamento externo privado na América Latina (BÉRTOLA; OCAMPO, 2013, p. 247). Nesse sentido, o

sistema de taxas de câmbio flutuantes inaugurado91 “oficialmente” pelo FMI em 1978 e os

choques do petróleo em 1973 e 1979 impuseram limites externos para a continuidade dos processos de industrialização dos países da região.

Os efeitos dessa reestruturação do mercado mundial se fizeram notar não apenas do ponto de vista econômico e político, mas também em termos ideológicos. Não por acaso que em meio a uma nova crise de proporções internacionais, cuja solução passa a dar o tom dos debates, emergiu um paradigma econômico que oferecia uma reinterpretação teórica neoliberal para as formas de ação econômica estatal92. Na perspectiva novo-clássica, o

controle dos preços macroeconômicos deve ser o sentido da política econômica. Qualquer intencionalidade para além disso será antecipada pelos agentes, produzindo desequilíbrios fiscais e monetários, que, no longo prazo atrapalhariam o desenvolvimento econômico.

A macroeconomia novo-clássica ganha força na crise do keynesianismo dos anos 1970, especialmente em virtude do contexto histórico adverso, da incapacidade dos modelos keynesianos de previsão e do debate em torno das expectativas. Nesse sentido, Muth (1961), Lucas (1972; 1976) e Sargent; Wallace (1976) constituem os fundamentos teóricos do pensamento econômico novo-clássico, o qual argumenta que o comportamento do setor privado depende das expectativas que os agentes formam sobre as ações do governo, tanto no passado quanto no futuro.

Seguindo a modelagem proposta em Lucas (1976, p. 106)), temos uma economia hipotética e caracterizada pela equação 𝑦 = 𝑓(𝑦 , 𝑥 , 𝜖 ), onde t corresponde ao período de tempo, yt um vetor de variáveis relacionadas à ação estatal, xt um vetor de variáveis exógenas

e arbitrárias, e ϵt um vetor de variáveis independentes no tempo. A estimação por parte do(a)

econometrista se dá por meio de 𝐹 = (𝑦, 𝑥, 𝛳, 𝜖), em que ϴ corresponde a um vetor de parâmetro fixo. Nesse sentido, Lucas (1976, p. 111, tradução própria) é explícito, pois “assumir estabilidade de (F,ϴ) sob regras alternativas de política é, portanto, assumir que as

91 Em agosto de 1971, os EUA sob Richard Nixon suspenderam a livre convertibilidade do dólar estadunidense em ouro monetário ou outros ativos. Como reconhece o próprio documento do FMI (GOLD, 1978, p. 2), essa mudança unilateral por parte do governo estadunidense, o qual foi o principal fiador do acordo original de Bretton Woods, pressionou decisivamente para que o sistema monetário internacional vigente fosse revisto. É curioso, no entanto, que para manutenção de um sistema estável, “[os] membros estão sujeitos a certas obrigações em relação à suas políticas externa e doméstica, e o Fundo é requisitado para manter vigilância do cumprimento de membros com suas obrigações” (GOLD, 1978, p. 9, acréscimo e tradução própria) ([...] members are subject to certain obligations in relation to their external and domestic policies, and the Fund is required to maintain surveillance of the compliance of members with their obligations). Um claro sinal dos tempos vindouros, em que cada vez mais a liberdade só existe por meio da força.

92 Para uma análise histórica desses desenvolvimentos teóricos, ver Screpanti; Zamagni (2005, p. 340-351) e Backhouse (2007, p. 350-354).

visões dos agentes sobre o comportamento de choques do sistema são invariantes sob mudanças no verdadeiro comportamento desses choques”93. Isso porque, como defende

Sargent; Wallace (1976, p. 179, tradução própria), “os coeficientes sobre expectativas são geralmente subidentificados econometricamente94”.

Além disso, os novos-clássicos entendem que a moeda é neutra seja no curto ou longo prazos e a capacidade de autorregulação dos mercados independe da ação governamental, pois os agentes econômicos são racionais e antecipam quaisquer ações discricionárias por parte do governo. Sendo assim, apenas choques exógenos de oferta têm condições de afetar o produto real, de modo que a macroeconomia novo-clássica se constitui como uma extensão agregada da microeconomia marginalista.

Esses autores, no entanto, estão cientes das dificuldades impostas pelo pressuposto das expectativas racionais para a construção de modelos dinâmicos de política econômica. Não por acaso seus os desdobramentos teóricos no que diz respeito à ação estatal se deu a partir de conceitos como legitimidade, credibilidade, reputação e compromisso governamentais (BARRO, 1986). Assim sendo, a reputação histórica dos fazedores de política econômica condiciona sua capacidade de estabelecer compromissos legítimos e críveis por parte das forças de mercado.

Parece notória a adequação teórica dessa perspectiva para legitimar um cenário econômico cada vez mais dominado por interesses privados. Afinal, para a livre circulação de capitais o que se requer é um conjunto de regras claras e consistentes, as quais não sofrem ameaças de alterações discricionárias. A Crítica de Lucas – como ficou conhecida no pensamento econômico contemporâneo – se dá diretamente à “antiga” teoria de política econômica e às previsões econométricas relacionadas, exemplificada no trabalho de Tinbergen (1952), o qual ainda compreende papel ativo para a ação estatal para além dos preços macroeconômicos fundamentais. Trata-se, na verdade, de uma crítica às possibilidades de planejamento econômico com vistas à transformação estrutural, pois, se as expectativas econômicas dos agentes são perfeitamente racionais, a ação econômica de Estado deve respeitar os fundamentos microeconômicos do modelo.

Mais do que isso, dada as incertezas quanto aos choques sobre a economia, o melhor a fazer para o longo prazo seria buscar a estabilização dos preços macroeconômicos

93 “To assume stability of (F,ϴ) under alternative policy rules is thus to assume that agents’ views about the behavior of shocks to the system are invariant under changes in the true behavior of these shocks”.

fundamentais que os agentes utilizam na formação de suas expectativas. Isto é, inflação, juros e câmbio. Qualquer tentativa de ação pública sobre investimentos, tecnologia e empregos, por exemplo, resultaria em desestabilização e detonação de crises.

Essa despolitização da política econômica pode ser vista como condição necessária para a emergência das interpretações econômicas do populismo, e no contexto histórico em que ocorre, também suficiente. Saindo da esfera estritamente teórica e entrando em áreas “aplicadas”, a análise novo-clássica de política econômica reafirmou um olhar sobre o fenômeno da ação estatal que a entende em relação ao modelo marginalista que a concebe. Dessa forma, experiências políticas concretas passaram a ser avaliadas com base na aplicação do modelo teórico de política econômica novo-clássico, cujo caráter normativo reside, em última instância, na definição a priori de regras de política econômica que sejam condizentes com os instrumentos de ação por parte das autoridades.

Nessa perspectiva, o desenvolvimento ocorre quase que naturalmente através do setor privado a despeito da intencionalidade governamental. Sua “mecânica” depende fundamentalmente da acumulação de “capital humano” inclusive para os fluxos internacionais (LUCAS, 1988; 1990). Parece claro, portanto, que um conceito formulado historicamente de maneira pejorativa tal qual é o de populismo encontraria campo fértil de aplicação a partir de uma teoria da ação econômica de Estado que naturaliza relações mercantis não apenas do ponto de vista econômico, mas também em termos psicológicos. Assim sendo, o populismo como um conceito já formulado pejorativamente desde as críticas às experiências russa com os Narodniki e estadunidense oriunda da Farmer’s Alliance e do People’s Party, passa a ser paulatinamente fagocitado pela economia marginalista novo-clássica de modo a conceber sua dimensão econômica como sendo danosas ações estatais.

A partir da Crítica de Lucas e suas implicações para a análise de política econômica, a ação estatal passa a ser julgada como problemática e oriunda de momentos históricos em que o balanço político da relação de força entre as classes sociais se mostrou favorável a um intervencionismo pró-classe trabalhadora. Nesse sentido, o debate sobre desenvolvimento que colocava ativo papel ao Estado planejando e atuando na transformação estrutural é substituído pela noção de que a acumulação de capital e o desenvolvimento das forças produtivas ocorre quase que naturalmente, desde que os fundamentos microeconômicos sejam respeitados. Portanto, ao governo caberia papel de estabilizador dos preços fundamentais que orientariam os agentes econômicos.

Esse procedimento metodológico atende aos critérios marginalistas da análise positiva da produção e distribuição material da vida, isto é, de que o modelo teórico deve ser avaliado em função da sua capacidade preditiva (HOLLIS; NELL, 1977, p. 29). Porém, ainda que se possa prever situações futuras com base no conceito de populismo econômico, ao se despolitizar artificialmente a política econômica essas interpretações deixam de lado a importância da determinação estrutural das classes sociais e as assimetrias de poder que constituem as relações sociais de produção em sociedades capitalistas e que se sintetizam nas ações econômicas de Estado.

Com isso, justificam as reações políticas das classes dominantes em conjunturas que a aliança popular-trabalhadora avançou seus interesses na cena política. Na visão dessas interpretações econômicas do populismo, dado que a política econômica dessas alianças tende a ser de tipo populista – quer dizer, “errada” ou economicamente irracional –, logo se percebe que no fundo o que tais interpretações estão fazendo é legitimar o status quo e a violência da acumulação. Isto é, distribuição econômica pró-trabalhadores deveria acompanhar o crescimento do grau médio de destreza dos mesmos, que por sua vez tende a reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário (TTSN)95 para a produção e, assim, não compete com os

lucros.

Dito de outra forma, em um circuito fechado, como o modelo de fluxo circular da renda dos marginalistas onde os lucros são compreendidos como justo pagamento aos capitalistas pelos serviços do fator de produção capital, o conflito distributivo visto da ótica de mercado perde seu caráter de exploração e violência. Torna-se artificialmente um mero problema de maximização da função de bem-estar social, como se a hierarquizada relação capital-trabalho se transformasse numa simples troca entre equivalentes.

Parece evidente que essa perspectiva teórica ao despolitizar a política econômica e reduzir o papel do Estado a mero agente maximizador da função de bem-estar social parece bastante favorável aos interesses das classes dominantes. Assim, a política se torna um meio

95 A respeito do conceito de TTSN, ver Marx ([1867] 2013, livro I, p. 116-119). Sobre a relação entre a produtividade do trabalho e a geração de valor a partir do conceito de TTSN vale a reflexão sobre a seguinte passagem: “Assim, a grandeza de valor de uma mercadoria permanece constante se permanece igualmente constante o tempo de trabalho requerido para sua produção. Mas este muda com cada mudança na força produtiva do trabalho. Essa força produtiva do trabalho é determinada por múltiplas circunstâncias, dentre outras pelo grau médio de destreza dos trabalhadores, o grau de desenvolvimento da ciência e de sua aplicabilidade tecnológica, a organização do processo de produção, o volume e a eficácia dos meios de produção e as condições naturais” (p. 118).

para garantir a liberdade da acumulação de capital em vez de ser a arena de disputa sobre o sentido do desenvolvimento econômico.