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SOBRE O CARÁTER ANTIDEMOCRÁTICO DO POPULISMO

Os(as) autores(as) do populismo afirmam que embora sejam experiências historicamente distintas, há em comum a todos os populismos um apelo político a uma ideia popular de nação, independentemente das diferenças quanto aos conteúdos políticos desse apelo. Colocado apenas nesses termos, a existência de uma política de “apelo à nação” não parece imediatamente um problema. Afinal, faria sentido que uma das fontes de legitimidade do Estado como entidade política nacional se desse por meio de políticas governamentais e formas de representação voltadas para seu respectivo “povo”. Movimentos sociais “populistas” seriam, portanto, inclusive desejáveis como forma de construir uma política nacional.

Entretanto, como destaca Wolkenstein (2016), é comum o meio acadêmico considerar o populismo como um fenômeno político-econômico problemático ou até mesmo como uma

48 “To accept the advance of capitalist industrialism is thus considered normal to the extent that it obeys the laws of rational social and political evolution”.

sombra recorrente das democracias (CANOVAN, 1999; MÜLLER, 2016). Nesse sentido, entende-se como “populista” formas de ação política que negam os aspectos básicos de uma democracia (liberal): o pluralismo e o procedimentalismo políticos. Isso significa que movimentos sociais desse tipo ao justificarem publicamente uma política para o “povo” rejeitariam ao mesmo tempo qualquer possibilidade de inclusão para além desse “povo” (antipluralismo). Ainda, de acordo com os críticos liberais do “populismo”, tal justificativa desfavorece a mediação representativa entre governo e população de modo a enfraquecer o sistema democrático multipartidário (antiprocedimentalismo).

Urbinati; Saffon (2013) são exemplo claro dessa visão pejorativa em termos políticos no que tange à relação entre populismo e democracia. Ainda que as autoras reconheçam potencial contestatório oferecido por movimentos considerados populistas, “entretanto, populismo pode também ter efeitos bastante negativos sobre a democracia se – como geralmente ocorre – ele traduz-se numa proposta para substituição de instituições representativas com mais formas de participação direta ou plebiscitária” (URBINATI; SAFFON, 2013, p. 12, tradução própria)49. Isso porque, de acordo com a perspectiva das

autoras, o “populismo” tende a estabelecer uma identificação perfeita entre povo e líder de modo a trazer para a cena política o conteúdo propriamente democrático da política.

É interessante notar que os(as) críticos(as) do que é considerado “populista” em virtude de sua suposta negação do procedimentalismo político decorre do fato de considerarem a liberdade política de participação individual como condição necessária e suficiente para a democracia. A teoria política, desse modo, assemelha-se às abordagens econômicas neoclássicas, pois julga a realidade a partir de sua adequação ao modelo teórico que a concebe. Se são respeitados os princípios democráticos estabelecidos a priori, então se tem democracia. Os problemas decorrem de “imperfeições” que afetam o pleno funcionamento do modelo (liberal) democrático plural e procedimental.

Uma consulta ao Google Acadêmico evidencia esse viés pejorativo existente nas ciências sociais – especialmente publicada em inglês – sobre o que se designa como “populismo”. Entre as publicações de 1870 a 2016 disponíveis online, há aproximadamente 68700 resultados para o termo “populism50”. Classificado por relevância51, dos 10 primeiros

49 “However, populism can also have quite negative effects on democracy if – as it often does – it translates into a proposal for replacing representative institutions with more direct of plebiscitarian forms of participation”. 50 Já “populismo” aparece em cerca de 26500 resultados, envolvendo publicações em português, espanhol e

resultados, apenas Canovan (1981; 1999) e Laclau (1977) fogem à regra. Os outros 7 são trabalhos em que o “populismo” é compreendido como um problema para as democracias (liberais), como uma consequência problemática para as mesmas ou incerto52. Em ambos os

casos “populismo” e “democracia” emergem como incompatíveis ou irreconciliáveis.

Tabela 3 – Populismo online: citações mais relevantes de obras entre 1870 e 2016 contendo o termo populism.

Relevância Referências Citações

1 Dornbusch; Edwards (1991) 3653 2 Riker (1982) - apresentação 1366 3 Taggart (2000) 646 4 Canovan (1981) 665 5 Laclau (1977) 1811 6 Panizza (2005) 247 7 Riker (1982) 1468 8 Betz (1994) 1355 9 Canovan (1999) 915 10 Ionescu; Gellner (1969) 350

Fonte: Google Acadêmico. Elaboração própria, nov/2016.

Entre as informações da Tabela 2, uma que salta aos olhos – especialmente para os estudos latino-americanos – é a referência mais relevante e citada sobre populismo. Dornbusch; Edwards (1991) pode ser visto como um dos primeiros trabalhos em inglês onde o conceito de “populismo econômico” foi aplicado para interpretar a relação entre política e economia no desenvolvimento latino-americano. Evidentemente de maneira pejorativa, embora não-inédita. Isso porque os formuladores do “populismo latino-americano” em sua versão mais conservadora em termos de ciência econômica podem ser vistos como herdeiros intelectuais de uma tradição bastante influente no pensamento social da região a partir dos anos 1950 e 1960: a teoria da modernização53.

51 Dentro da metodologia utilizada pelo Google Acadêmico, a relevância de um resultado é calculada a partir do impacto que ele tem no meio acadêmico. É por isso que entre as 10 publicações mais relevantes não segue necessariamente uma linha descendente em termos de citações, pois onde foi citado importa.

52 (...) [o] populismo não é nem a mais alta forma de democracia nem seu inimigo, mas um espelho no qual [a] democracia pode se contemplar. ([…] populism is neither the highest form of democracy nor its enemy, but a mirror in which democracy can contemplate itself) (PANIZZA, 2005, p. 30, acréscimo próprio). Vale lembrar que, no livro em questão, Mouffe (2005) compreende o populismo como uma tentativa de buscar a essência democrática por meio da soberania popular, mesmo por trás do discurso da extrema-direita europeia, que é seu foco de análise.

53 A teoria da modernização talvez seja mais explícita nos seus propósitos sobre a América Latina se compreendida como uma teoria da ocidentalização. Para uma apreciação crítica desse arcabouço teórico, ver, por exemplo, Machado (1970) e Bernstein (1971). A clássica crítica de Said ([1978] 2003) sobre a idealização que o ocidente faz a respeito do mundo não-ocidental também se insere nesse contexto, ao menos em termos gerais.

2.5. POPULISMO, ATRASO ECONÔMICO E INTERPRETAÇÕES DA AMÉRICA