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MERCADO MUNDIAL E RELAÇÕES DE CLASSE NA AMÉRICA LATINA

Observada de perto, as experiências concretas consideradas como “populistas” evidentemente não são iguais. Essa constatação, aliás, é um dos grandes desafios pelos quais as interpretações do “populismo” tentam lidar, ainda que de maneira extremamente ambígua (DE LA TORRE, 1992). Porém, permeia na maior parte dessas experiências relações de classe em torno de projetos políticos inclusivos para as classes populares. Frente a isso, uma questão que emerge diz respeito à origem dessa dinâmica de luta de classes entre os países da região.

Já é bastante conhecido o processo de inserção externa por parte das economias latino- americanas, notadamente a partir da segunda metade do século XIX em meio à consolidação do mercado mundial capitalista (CARDOSO; PÉREZ-BRIGNOLI, 1980, p. 228-285; FURTADO, 2007, p. 89-111). Trata-se de um padrão de especialização produtiva distinto ao das nações desenvolvidas à medida que as diferentes linhas de expansão capitalista para a periferia constituíram uma divisão internacional do trabalho que logrou às sociedades latino- americanas a condição de economias primário-exportadoras (BÉRTOLA; OCAMPO, 2013, p. 107-119).

A tabela 10 dá uma ideia, do ponto de vista comercial, desse processo de integração econômica internacional ao longo da chamada primeira globalização. É possível perceber que entre as principais economias latino-americanas no período 1870-1929 as exportações foram elásticas ao aumento da renda dos outros países. À exceção do Brasil, essa elasticidade positiva teve impactos significativos na variação percentual das exportações per capita entre os países em questão.

Tabela 10 – Elasticidade-renda da demanda de exportações por parte do mundo e taxa de crescimento das exportações per capita em países selecionados, 1870-1929

ϵ* X (%)** Argentina 3,65 1,7 Brasil 2,38 0,5 Colômbia 1,43 4,1 México 0,9 3,1 Venezuela 2,19 3,9

Fonte: Bértola; Ocampo (2013, p. 108-109 e 126). Elaboração própria. * Elasticidade-renda da demanda de exportações por parte do mundo. ** Taxa de crescimento das exportações per capita.

Em contrapartida, os fluxos de investimento externo direcionados aos países latino- americanos não alcançaram percentuais elevados. Observando o período entre 1900 e 1929, a participação de investimentos externos na região sequer alcançou 1% do total mundial (TAYLOR, 2006, p. 92). Vale notar, como destaca Esteves (2006, p. 31, tabela 4), entre 1883 e 1914 as exportações de capitais ingleses e alemães se deram fundamentalmente para a

construção de ferrovias e financiamentos governamentais, cujos valores somados o autor calcula, respectivamente, como sendo 64,6% e 85,7% do total exportado por esses países.

Essa conformação histórica do mercado mundial capitalista e a inserção latino- americana nesse processo trouxe consequências para a constituição das relações entre as classes sociais na região. Em virtude dessa dinâmica, uma primeira olhada sobre isso pode ser feita a partir da concentração da propriedade da terra. De acordo com cálculos fornecidos por Bertola; Ocampo (2013, p. 151), entre 1880 e 1990 o índice de Gini da propriedade de terra na América Latina corresponde a 0,799. Além disso, como destacou Furtado (2007, p. 137) para os anos 1950 e 1960, predominava entre as estruturas agrárias latino-americanas a polarização entre minifúndios e latifúndios, evidenciada na tabela 11.

Tabela 11 – Minifúndio e latifúndio na estrutura agrária de países latino-americanos, 1950-1960

Minifúndio Latifúndio

% das explorações % das terras % das explorações % das terras

Argentina 43,2 3,4 0,8 36,9 Brasil 22,5 0,5 4,7 59,5 Colômbia 64 4,9 1,3 49,5 Chile 36,9 0,2 6,9 81,3 Equador 89,9 16,6 0,4 45,1 Guatemala 88,4 14,3 0,1 40,8 Peru 88 7,4 1,1 82,4 Fonte: Furtado (2007, p. 137).

Como mostra o relatório da Oxfam (2016, p. 23-25), o percentual de terras manejadas pelos latifúndios corresponde, em média para os países da região, cerca de 51% da superfície agrícola. Ademais, segundo o mesmo estudo, “no total, na região, as pequenas propriedades [agrícolas] utilizam menos de 13% da terra produtiva e sua superfície média é de 9 hectares na América do Sul e 1,3 hectares na América Central” (OXFAM, 2016, p. 26, acréscimo e tradução próprios). Números que evidenciam a permanência histórica dessa concentração de terras e poder entre os países do subcontinente latino-americano oriunda do colonialismo.

Essa dinâmica de desenvolvimento acarretou consequências marcantes para a construção do capitalismo en nuestra América, de modo a acentuar suas especificidades

históricas oriundas do passado colonial, da escravidão e da sistemática negação do(a) Outro(a) que sobredeterminam195 de diferentes modos as formações sociais, porém com

características comuns e centradas na enorme desigualdade social. Nesse sentido, a inserção externa, especialmente entre 1870 e 1929, marca uma acentuação dessa tendência, como pode ser visto a partir dos índices de salários de paridade de poder de compra entre vários países latino-americanos. Tendo o índice britânico em 1905 como referência (= 100), entre Colômbia, México, Brasil, Cuba, Chile, Argentina e Uruguai, apenas os dois últimos apresentaram índices superiores aos britânicos e somente entre 1925 e 1929 (respectivamente 113 e 109) (BÉRTOLA; OCAMPO, 2013, p. 137).

Vale destacar que a abolição da escravidão se deu tardiamente e de maneira diferenciada na América Latina, sendo Cuba (em 1886) e Brasil (em 1888) os últimos países a decretarem o fim da escravatura (BÉRTOLA; OCAMPO, 2013, p. 96). Contudo, a abolição sem respectiva reforma agrária e outros instrumentos de inclusão social produziu uma massa de seres humanos juridicamente livres, mas extremamente marginalizados socialmente. Não por acaso o índice de salários anteriormente comentado seja tão mais baixo em países com significativa população negra, como Colômbia, Brasil e Cuba, em comparação com a Grã- Bretanha, e mesmo naqueles cuja herança escravista tenha sido menor, porém relevante, como são os casos de Argentina e Uruguai.

A propagação desigual do progresso técnico é um aspecto central para se compreender o processo de constituição do subdesenvolvimento. Não se trata, portanto, de uma etapa pela qual as nações necessariamente passam ao longo de suas histórias, mas de um imperativo da expansão industrial moderna (FURTADO, 1983, p. 141-143). Por esse ângulo, é preciso ressaltar que não há um único modo pelo qual esse processo avançou na determinação das transformações dos sistemas produtivos nacionais.

A violência da conquista europeia e todas as suas consequências econômicas, políticas e ideológicas sobre os territórios que contemporaneamente se designa como América Latina corresponde a um episódio sem precedentes na história. Nisso reside a origem da heterogeneidade estrutural, que combinada à difusão desigual da Revolução Industrial caracteriza a especificidade do subdesenvolvimento dos países latino-americanos. Como afirma Maria da Conceição Tavares,

195 “Na medida em que a superestrutura política é o nível sobredeterminante dos níveis da estrutura, concentrando as suas contradições e reflectindo a sua relação, a luta política de classe é o nível sobredeterminante do domínio das lutas de classe – das relações sociais –, concentrando as suas contradições e reflectindo as relações dos outros níveis de luta de classe” (POULANTZAS, 1971, vol. I, p. 86).

No caso dos países desenvolvidos, não havia, como não há, uma separação nítida entre a capacidade produtiva destinada a atender aos mercados interno e externo. [...] Ao contrário, para a maioria dos países da América Latina, há uma divisão nítida do trabalho social, entre os setores externo e interno da economia (TAVARES, 1973, p. 31).

Essa característica dual das economias latino-americanas forjou a dinâmica do desenvolvimento das forças produtivas na região, constituindo, assim, a especificidade econômica de determinação do modo-de-produção capitalista nas Américas ao sul da atual fronteira México-Estados Unidos. Afinal, foram nessas terras que o colonialismo, a escravidão e a negação do(a) Outro(a) se estruturaram para a construção interna às diferentes formações sociais, de relações de produção que, embora dominantemente capitalistas, expressam essa especificidade na práxis de suas forças sociais. “Isto é, aliás, a consequência do facto de que uma classe social indica, já no modo-de-produção ‘puro’, o efeito do conjunto das estruturas sobre os suportes” (POULANTZAS, 1971, vol. I, p. 88).

Um dos aspectos aparentes mais visíveis dessa especificidade diz respeito à enorme desigualdade social que, por exemplo, distingue a América Latina. Nela, evidenciam-se demarcadas questões raciais e de gênero que se mantém não apenas dependentes da trajetória superestrutural – ou cultural, como genericamente North (1994, p. 364) chama –, mas fundamentalmente estrutural. Quer dizer, uma história determinada em última instância pelas relações sociais de produção dominantes.

Tabela 12 – Taxas de pobreza entre negros(as), não-negros(as), indígenas e não indígenas entre países latino-americanos, 2014

Negros(as) Não-Negros(as) ou Indígenas Indígenas Não-Indígenas

Bolívia - - 42% 34% Brasil 22% 10% 35% 10% Chile - - 10% 8% Equador 42% 27% 42% 27% Guatemala - - 72% 59% México - - 50% 37% Paraguay - - 61% 30% Peru 21% 14% 26% 14% Uruguai 11% 4% 7% 4%

A tabela 12 ilustra o tamanho da desigualdade social em 2014 por meio de um recorte racial em nove países latino-americanos a respeito das taxas de pobreza. Na amostra, Brasil, Equador, Peru e Uruguai correspondem a países historicamente com significativa população negra em virtude do significado da escravidão na formação do mercado de trabalho nesses países. Em todos é notório que entre negros e indígenas as taxas de pobreza são superiores do que a dos não-negros e não-indígenas. Isto é, a violência racista da conquista ainda se faz presente, haja visto que embora em diferentes proporções, parece razoável inferir que entre os países latino-americanos a probabilidade dos mais pobres serem negros(as) ou indígenas é bastante superior à da população branca.

Observando por gênero, o relatório da Cepal (2016) evidencia outro aspecto da especificidade nas formações sociais latino-americanas. A média simples de anos de estudo entre homens negros (6,7 anos) e mulheres negras (7,7 anos) é menor do que a de homens não-negros ou indígenas (9,1 anos) e mulheres não-negras ou indígenas (9,7 anos) (CEPAL, 2016, p. 35). Ainda no quesito educação, além do percentual de adolescentes da população total que não frequentam escolas entre mulheres indígenas (21,5%) ser maior do que entre os homens indígenas (18,7%), também existe notória diferença se é feita comparação com as populações não-negra ou indígena. Apenas 10% dos(as) adolescentes não-negros(as) ou indígenas não frequentavam escolas em 2014 (CEPAL, 2016, p. 45). Ainda que essa diferença seja observada mais no meio rural do que urbano, isso sugere que a probabilidade das mulheres negras ou indígenas estudarem é menor do que as demais, o que apenas corrobora com a permanência do colonialismo, da escravidão e da negação do(a) Outro(a) como traços distintivos do subdesenvolvimento na América Latina.

Se a crise de 1929 inaugurou a possibilidade histórica de afirmação do setor interno sobre o externo, avançando no sentido de superação de um desenvolvimento das forças produtivas que não fosse dependente da expansão internacional da demanda por suas exportações e, assim, propiciar uma transformação igualitária nas relações sociais de produção, a partir da restruturação sistêmica dos anos 1970, essa possibilidade foi limitada, pois permitiu às forças sociais ligadas à economia exportadora se rearticularem. Isso explica a tendência de golpes de Estado e ditaduras cívico-militares nos países latino-americanos, as quais mesmo que em alguns casos esboçassem alguma orientação desenvolvimentista, seus modos de incorporação política das classes populares foram marcadamente elitistas.

Nesse sentido, as especificidades que forjaram as relações de classe e o desenvolvimento da América Latina – colonialismo, escravidão e negação do(a) Outro(a) –

são aspectos próprios da consolidação das sociedades de mercado com grande diferenciação entre as capacidades produtivas dos setores interno e externo. Dado a resignada aceitação neoliberal do discurso antipopulista, este se configura, portanto, como uma legitimação teórico-intelectual contemporânea de dominação da classe burguesa, a qual se origina a partir das classes dominantes que fundaram as modernas nações latino-americanas e, por isso, trata- se de um discurso acentuadamente elitista.