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SOBRE O CARÁTER IRRACIONAL DO POPULISMO

Uma outra experiência adjetivada “populista” foi nos EUA com o People’s Party (Partido do Povo ou ainda conhecido como Partido Populista), entre 1891 e 1908. Esse partido é oriundo de uma série de movimentações políticas sulistas originadas no período pós- Guerra Civil estadunidense (1861-1865) em meio à situação econômica dos pequenos proprietários rurais, arrendatários de terras e trabalhadores (ZINN, 1980, p. 276).

Com o avanço da monocultura exportadora de algodão baseada no sul dos EUA – o chamado Black Belt (Cinturão Negro) –, os condados historicamente formados por pequenos fazendeiros produtores em uma economia local (yeomen) começaram a ser pressionados economicamente. Esses yeomen correspondem aos conquistadores do oeste estadunidense e seus descendentes, formados por imigrantes europeus e de outros estados do país, que buscavam assentar-se nas outrora terras indígenas Cherokee, Choctaw, Creek, entre outras nações41. Essas famílias de pequenos agricultores se organizavam de maneira independente e

41 Nunca é demais ressaltar o papel do Estado nesse processo. “Antes da virada do século dezenove, o Estado distribuiu terra sob o sistema headright, atribuindo 200 acres para cada cabeça da família, com um adicional de 50 acres por cada criança e escravo até o número de dez, assim estabelecendo a fundação para o surgimento de grandes propriedades. Com a cessão de uma faixa territorial Creek entre os rios Ocmulgee e Oconee em 1822 veio, entretanto, a loteria da terra” (Before the turno f the nineteenth century, the state distributed land under the headright system, alloting 200 acres to every family head, with an additional 50 acres for each child and slave up to the number of ten, thus laying the foundation for the emergence of large estates. With the Creek

com fortes laços comunitários, ainda que menos por escolha do que pela força das circunstâncias (HAHN, 1983; ATTACK; BATEMAN; PARKER, 2000, p. 245-246). Produziam a partir hábitos familiares de mutualismo entre si, fundando-se em uma economia de pequenos produtores independentes que ao longo do tempo foram constituindo relações de quase-dependência com os grandes proprietários do Black Belt (HAHN, 1983, p. 52-58).

À medida que agricultura escravista-exportadora de algodão se expandia pelo sul do país, essa relação fomentava a transformação da “economia moral” em “economia capitalista” de produção agrícola complementar à grande produção agroexportadora. Uma das consequências disso foi a ressignificação dos pequenos arrendatários de terras, os quais antes da Guerra Civil se assemelhavam economicamente aos pequenos proprietários rurais, e com os desdobramentos posteriores ao conflito passaram cada vez mais a se transformarem em proletários rurais (HAHN, 1983, p. 69). Como ilustra o gráfico 1, a disparidade em termos de percentual de terras arrendadas nos EUA em 1880 e 1920 sinaliza a situação pela qual foi convertendo arrendatários-yeomen em arrendatários-proletários rurais. Destacam-se as regiões do sul em que a “economia moral” se associava à “economia capitalista de exportação”.

cession of a strip of territory between the Ocmulgee and Oconee rivers in 1822, however, came the land lottery) (HAHN, 1983, p. 18-19, tradução e destaques próprios).

Gráfico 1 – Percentual de terras arrendadas por estado nos EUA, 1880 e 1920

Fonte: Attack; Bateman; Parker (2000, p. 316-317).

Em 1880, por exemplo, 44,9% das terras da Georgia eram arrendadas, ao passo que em 1920 esse percentual aumentou para 66,6%. No Missouri, saltou de 43,8% para 66,1%.

Dois fenômenos foram conjuntamente se constituindo pelo interior estadunidense. O primeiro deles já foi indicado e diz respeito ao processo de proletarização da força de trabalho no meio rural do país a partir do sistema de arrendamento de terras e colheitas futuras por

pequenos proprietários. Já o segundo está diretamente relacionado a isso, pois corresponde ao intenso crescimento do mercado monetário nos EUA desde a época da Guerra Civil. Apenas para se ter uma ideia desse processo, “entre 1864 e 1879, o número de bancos nacionais aumentou de alguns 500 para mais de 2000, e seu capital expandiu aproximadamente de $86 milhões para $454 milhões” (MARKHAM, 2002, vol. I, p. 282-283, tradução própria)42. Em

meio a essa transformação econômica do sul dos EUA, conflitos entre arrendatários e as frações comercial, financeira e industrial do capital foram se acentuando de modo que a organização política conjunta de trabalhadores, pequenos arrendatários e yeomen se impôs como necessidade.

Ainda assim, os anos pós-guerra deram a ‘tempos difíceis’ um novo e cada vez mais duradouro aspecto. Preços em queda para produção agrícola no mercado internacional, taxas de frete discriminatórias, a edificação de elevadas tarifas protecionistas, a desmonetização de prata e políticas fundiárias que favoreceram a absorção especulativa combinada à compressão dos fazendeiros ao longo dos Estados Unidos à medida que uma economia nacional era consolidada sob os auspícios do capital industrial e financeiro (HAHN, 1983, p. 168, tradução própria)43.

Entre os movimentos políticos rurais no sul do país que ganharam destaque nesse período podem ser elencados a Aliança de Fazendeiros (Farmer’s Alliance), a partir de 1875, os Cavaleiros de Trabalho (Knights of Labor), a partir de 1886, e o Sindicato Ferroviário Estadunidense (American Railway Union), em 1893 (ZINN, 1980, p. 268-276). Esse conjunto de movimentos populares foi paulatinamente se articulando ao longo dos anos, ainda que contradições e conflitos internos existissem, especialmente no que diz respeito a questões mercantis e raciais (HAHN, 1983, p. 271-285).

A situação econômica dos arrendatários-proletários rurais piorava à medida que a crise do mercado mundial, posteriormente conhecida como Longa Depressão, desde meados da década de 1870, se aprofundava. Pânicos financeiros, em 1873 e entre 1883 e 1887, somavam-se aos questionamentos dos fazendeiros quanto ao preço dos fretes cobrados pelas ferrovias e à desmonetização da prata, no bojo de afirmação do padrão-ouro como sistema monetário dominante (MARKHAM, 2000, vol. I, p. 293-309; EICHENGREEN, 2008, p. 12). Com a queda nos preços internacionais, intensificação da mecanização produtiva e

42 “Between 1864 and 1879, the number of national banks increased from some 500 to over 2,000, and their capital expanded from about $86 million to $454 million”.

43 “Yet, the postwar years gave "hard times" a new and increasingly enduring aspect. Falling prices for agricultural produce on the international market, discriminatory freight rates, the erection of high protective tariffs, the demonetization of silver, and land policies that favored speculative engrossment combined to squeeze farmers throughout the United States as a national economy was consolidated under the auspices of industrial and financial capital”.

desmonetização de prata dos greenbacks44, piorava a situação econômica dos pequenos

fazendeiros, arrendatários-proletários rurais e demais assalariados. Pois, por um lado, aumentava o exército industrial de reserva de modo a pressionar para baixo os rendimentos e, por outro, ao manter constante a base monetária em meio a uma explosão demográfica diminuía os rendimentos das colheitas, sendo que os custos hipotecários se mantinham nominalmente fixos. “É por isso que muito da fala de movimentos de fazendeiros naqueles dias tinha que ver com a colocação de mais dinheiro em circulação [...]” (ZINN, 1980, p. 278, tradução própria)45.

Em virtude dessa conjuntura econômica e política, formou-se a partir de 1890 o Partido do Povo (People’s Party), também conhecido em sua época como Partido Populista, a partir da articulação dos movimentos populares rurais e de trabalhadores. É notório o caráter crítico dos “populistas estadunidenses” aos financistas e banqueiros, como pode ser visto num trecho de discurso proferido por Mary Ellen Lease, na convenção do partido no Kansas em 1890:

Wall Street possui o país. Não é mais um governo do povo, pelo povo, e para o povo, mas um governo de Wall Street, por Wall Street e para Wall Street. [...] Nossas leis são a produção de um sistema no qual veste malandros em mantos e honestidade em trapos. [...] os políticos dizem que nós sofremos de superprodução. Superprodução, quando 10.000 criancinhas [...] morrem de fome todo ano nos EUA e mais de 100.000 garotas balconistas em Nova Iorque são forçadas a vender sua virtude por pão. [...] (ZINN, 1980, p. 282, tradução própria)46.

É interessante notar que o Partido se autoproclamou do Povo e é justamente sobre como o governo estadunidense não mais emanaria suas ações desse povo e para esse povo que justificaria a organização de seus interesses em termos políticos. Mas não seriam os banqueiros e financistas de Wall Street também parte do povo estadunidense? Sem dúvida, mas a questão fundamental era o resgate dos princípios fundamentais dos “pais fundadores” dos EUA, os quais estariam sendo corroídos pelos interesses capitalistas (ZINN, 1980, p.

44 Moedas de curso forçado nos EUA utilizadas entre 1861 e 1865 sob os nomes de Demand Notes (1861-1862) e United States Note (1862-1971), que propiciaram o incremento da base monetária no país como meio de financiamento dos exércitos da União contra os Confederados. A partir de 1971 foram substituídas pela Federal Reserve Notes. Vale lembrar que em 1900 os EUA oficializaram o padrão-ouro por meio do Gold Standard Act, pondo fim ao bimetalismo do sistema monetário estadunidense (EICHENGREEN, 2008, p. 21). 45 “That is why so much of the talk of farmers movements in those days had to do with putting more money in

circulation […]”.

46 “Wall Street owns the country. It is no longer a government of the people, by the people, and for the people, but a government of Wall Street, by Wall Street and for Wall Street. […] Our laws are the output of a system which clothes rascals in robes and honesty in rags. […] the politicians said we suffered from overproduction. Overproduction, when 10,000 little children […] starve to death every year in the U.S. and over 100,000 shop girls in New York are forced to sell their virtue for bread […]”.

283). Trata-se, portanto, de uma expressão concreta da luta de classes na conjuntura político- econômica dos EUA àquela época.

Em 1890 os apoiadores do bimetalismo monetário puderam ao menos comemorar a Lei Sherman de Aquisição de Prata (Sherman Silver Purchase Act), a qual aumentou as compras regulares de prata por parte do governo e autorizou a conversão monetária em ouro ou prata. Porém, em meio à Longa Depressão do mercado mundial, uma corrida ao ouro reduziu drasticamente as reservas monetárias do Tesouro estadunidense em 1893, cujas consequências trouxeram o fim da Lei aprovada três anos antes (GALBRAITH, 1977, p. 107). Nas eleições presidenciais de 1892, os populistas estadunidenses lançaram James Weaver como candidato e obtiveram 8,5% dos votos válidos (LINDNER; SCHULTZE, 2005, vol. I, p. 710). Já em 1896, os populistas se dividiram sobre a aproximação com as forças político-partidárias já estabelecidas na cena política do país, mas lançaram, através do Partido Democrata, William Jennings Bryan em busca do bimetalismo monetário centrado na prata (HUNT, 2003, p. 3-4). O percentual de votos válidos para Bryan nas eleições presidenciais de 1896 foram impressionantes 45,5%, se comparado com o resultado quatro anos antes sob candidatura direta do People’s Party (LINDNER; SCHULTZE, 2005, vol. I, p. 711).

Após as eleições de 1896 e suas controvérsias internas, perdeu força a organização dos “populistas estadunidenses” sob um partido próprio de modo que foram se inserindo entre as forças político-partidárias dominantes no país: Republicanos e Democratas. Todavia, uma parte dos “populistas” seguiu de maneira independente buscando articular os elementos radicais originários que confluíram para a formação do partido, como foi o caso de Eugene Debs e o Partido Socialista da América (Socialist Party of America) (ZINN, 1980, p. 322).

Mas para além do curto tempo de vida do “partido populista” nos EUA, chama atenção como foi se forjando uma conotação pejorativa no debate público estadunidense para o termo “populista”, que aos poucos se torna um adjetivo. Como exemplo disso, Hunt (2003) ilustra de maneira clara a partir da investigação biográfica de um dos principais líderes do partido: Marion Butler. “Com algumas notáveis exceções, praticamente tudo que tem sido escrito sobre ele era negativo, vago, ou meramente descritivo” (p. 3, tradução própria)47. Em

contrapartida, Craven (1896) com seu Errors of Populism (Erros de Populismo) inaugurou o tratamento pejorativo não apenas dos políticos “populistas”, mas suas proposições

47 “With some notable exceptions, practically all that had been written about him was negative, sketchy, or merely descriptive”.

econômicas. Por fim, o caminho intelectual do antipopulismo ganhou conotações acadêmicas através do historiador Richard Hofstadter, nos anos 1950, como argumenta Stavrakakis (2017).

De maneira geral, esse viés pejorativo que vem sendo construído sobre o que se classifica como “populista” possui uma história atrelada aos desdobramentos tanto da crítica leninista aos Narodniks russos quanto da crítica aos “populistas estadunidenses”. Porém, se é possível identificar uma parte dessa história que cabe à última, essa diz respeito à construção intelectual de que o “populismo” é irracional.

Para os críticos dos “populistas estadunidenses”, sua plataforma política, desde os mais radicais do ponto de vista dos movimentos que compunham o partido até os mais centrados em questões monetárias, simplesmente lutaria contra a seta do progresso, da modernização. “Aceitar o avanço do industrialismo capitalista é, portanto, considerado normal desde que obedeça às leis de evolução social e política racionais” (STAVRAKAKIS, 2017, p. 5, destaque do autor, tradução própria)48. Uma noção de “irracionalidade” que será

fundamental para a formulação das interpretações econômicas do populismo latino- americano.