• Nenhum resultado encontrado

TEORIA E POLÍTICA NO PENSAMENTO ECONÔMICO LATINO-AMERICANO

A primeira metade do século XX assinalou a institucionalização da Economia como disciplina acadêmica autônoma e influente no debate público. De maneira até previsível, a pedagogia econômica marginalista foi se afirmando como dominante, ainda que a ascensão dos socialismos reais tenha constituído resistência tanto econômica quanto política a esse avanço intelectual e prático do marginalismo como ciência econômica.

Isso se torna mais evidente no que diz respeito a questões como planejamento e o papel do Estado nesse processo. E do ponto de vista do pensamento econômico latino- americano, a fundação da CEPAL, em fevereiro de 1948, corresponde a um marco temporal importante na institucionalização das reflexões sobre o desenvolvimento na região.

Em termos gerais, dois conjuntos teórico-interpretativos podem ser observados a partir de 1948 em terras latino-americanas. Relacionam-se direta ou indiretamente à CEPAL no que diz respeito à articulação do sistema centro-periferia e a constituição histórica das estruturas econômica e política dos países da região. O primeiro deles corresponde ao próprio pensamento cepalino, cujas origens podem ser traçadas concretamente a partir da introdução de Raul Prebisch para o Estudio Económico de América Latina, documento inaugural e publicado em 1949.

O segundo diz respeito às abordagens da dependência, as quais começaram a ganhar forma a partir da influência de livros como os de Vladimir Lenin ([1899] 1988) – O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia –, Rosa Luxemburgo ([1913] 1970) – A Acumulação de Capital –, Nikolai Bukharin ([1917] 1984) – A Economia Mundial e o Imperialismo – e Paul Baran (1957) – The Political Economy of Growth. Apesar das diferentes nuances desses trabalhos, todos tratam de questões a respeito dos significados do imperialismo para o desenvolvimento capitalista nos países atrasados e fundamentam as bases para a posterior consolidação das abordagens da dependência na América Latina (PALMA, 1978).

Em comum a esses conjuntos teórico-interpretativos residem certas características metodológicas, mencionadas anteriormente, as quais conferem ao estruturalismo latino- americano cientificidade própria. Isso significa que, do ponto de vista da teoria econômica, pela primeira vez na região se construiu um arcabouço teórico distinto ao dos marginalistas,

uma vez que os distintos processos de desenvolvimento dos países latino-americanos se manifestam na articulação dos conceitos de heterogeneidade e especialização estruturais e de propagação desigual do progresso técnico87. Nesse sentido, o que está em xeque na crítica

estruturalista é a filosofia econômica liberal, eurocêntrica e concretamente observada, por exemplo, na teoria de comércio internacional Heckscher-Ohlin e seus prosseguimentos posteriores88. Além, é claro, da teoria das vantagens comparativas proposta desde Adam

Smith e David Ricardo.

Apesar das similaridades entre cepalinos e dependentistas, é preciso mencionar que há divergências fundamentais entre essas escolas de pensamento. Não cabe aqui um exaustivo exame das mesmas, visto que a bibliografia referenciada já apresenta e revisa essas controvérsias de maneira específica. Para os propósitos dessa tese, no entanto, deve-se destacar de que maneira essa produção intelectual latino-americana articulou teoria e política no debate público sobre desenvolvimento abaixo das águas que correm o rio Grande.

À medida que o populismo foi ganhando corpo teórico como conceito-chave nas análises políticas e econômicas sobre a América Latina, especialmente a partir dos anos 1960, os caminhos intelectuais pelos quais assumem os debates sobre as possibilidades de desenvolvimento capitalista na região foram ganhando crescente importância. Isso porque, de acordo com as abordagens do estruturalismo latino-americano, a questão reside em compreender os entraves existentes para o aprofundamento da industrialização e da superação do subdesenvolvimento. Assim sendo, estabelecem-se diferentes análises a respeito da articulação dos aspectos internos e externos que estruturam o subdesenvolvimento, notadamente no que diz respeito ao papel da divisão internacional do trabalho e da correlação de forças políticas em cada país.

Em geral, o estruturalismo latino-americano concorda que a conformação histórica do mercado mundial logrou uma posição periférica e dependente para a América Latina, tanto do ponto de vista de acesso a mercados, de financiamento produtivo e de tecnologia. De acordo com essas escolas de pensamento, tal situação, por sua vez, atua como obstáculo à

87 O pensamento econômico cepalino tem sido sistematicamente analisado desde 1948, mas Bielschowsky (2000) e Rodríguez (2006) são duas das mais importantes referências contemporâneas no assunto. O livro organizado por Bárcena; Prado (2015) corresponde a uma interessante referência, especialmente para o período a partir dos anos 1980, quando se inicia um processo de reformulação intelectual da CEPAL e que culminou no chamado neoestruturalismo. Para uma síntese da visão cepalina sobre desenvolvimento econômico, ver Moraes (2016).

88 Em texto anterior (MORAES, 2010, p. 7-12), faço uma breve revisão da teoria neoclássica de comércio internacional e alguns de seus desdobramentos, notadamente no que ficou conhecida como teoria Heckscher- Ohlin-Samuelson.

industrialização e convergência aos níveis de desenvolvimento dos países mais adiantados, como os da Europa ocidental, Estados Unidos e Japão, por exemplo.

Mais do que isso, de certo modo, o subdesenvolvimento da periferia se torna condição do desenvolvimento dos países centrais. Seja por meio de transferências de valor via intercâmbio desigual (MARINI, [1973] 2005), seja por meio da deterioração dos termos de troca (PREBISCH, [1949] 1986), o cerne da superação do subdesenvolvimento consiste na transformação das relações econômicas internacionais vigentes89. Para os dependentistas a

solução advém de uma ruptura sistêmica, ao passo que para os cepalinos a questão é mais uma redefinição dos padrões de inserção externa do que propriamente mudança de sistema econômico.

Entretanto, a partir da crítica elaborada por Cardoso; Faletto ([1967] 2010) – e explícita, por exemplo, em Cardoso (1995) – o papel da política no desenvolvimento econômico passou a ser repensado no âmbito do estruturalismo latino-americano. Para tanto, não se pode, de acordo com os autores, apenas referenciar o desenvolvimento de uma região como um todo a partir de uma determinação unívoca da economia sobre o fenômeno em questão, pois é preciso compreender a dupla relação entre estruturas e processos históricos. Isto é, “a estrutura social e política vai-se modificando à medida que diferentes classes e grupos sociais conseguem impor seus interesses, sua força e sua dominação ao conjunto da sociedade” (CARDOSO; FALETTO, 2010, p. 34).

Com isso, tem-se que a tendência à estagnação, presente em boa parte do pensamento estruturalista latino-americano no que diz respeito ao desenvolvimento da região, é uma possibilidade em vez de imperativo histórico. Como argumentam Cardoso; Faletto (2010, p. 19), para os cepalinos “o desenvolvimento dependeria principalmente da capacidade de cada país para tomar as decisões de política econômica que a situação requeresse”. Por outro lado, em linha com Cardoso; Faletto (2010), Palma (1978, p. 903) argumenta que os dependentistas à la Ruy Mauro Marini e André Gunder Frank constroem um modelo de desenvolvimento de

89 É notória a contribuição de outros autores e autoras ao longo desse debate entre dependentistas e cepalinos. No caso dos primeiros, autores(as) como André Gunder Frank, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, entre outros(as) fizeram inúmeras contribuições no âmbito de uma teoria da dependência e de seus aspectos internos e externos, tanto políticos quanto econômicos. Por outro lado, entre os cepalinos, o enfoque sobre os estilos de desenvolvimento corresponde a um desenvolvimento intelectual dessa escola, nomeadamente sob Aníbal Pinto, Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares (PALMA, 1978; RODRÍGUEZ, 2006, cap. 7). Isso mostra que o estruturalismo latino-americano não se resume a uma crítica da economia política internacional, mas evidentemente que o ponto de partida e chegada é esse.

natureza mecânica, formal e anistórica, incapaz de apreender a dinâmica relação entre dependência e desenvolvimento.

Os significados intelectuais dessa crítica para a construção das interpretações do populismo na América Latina viriam a se mostrar posteriormente. O que não significa dizer que seus autores conscientemente assim o fizeram. Como bem colocou Marx ([1852) 2011b, p. 25-26), a história é um processo racional, muito embora os indivíduos que a fazem não tenham necessariamente consciência disso:

A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestado os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial.

À medida que o debate se deslocava de uma tendência estagnacionista inerente à constituição do capitalismo na América Latina, passível de superação através da socialização dos meios de produção (dependentistas marinistas) ou por meio de uma redistribuição econômica igualitária (cepalinos radicais), a perspectiva inaugurada por Cardoso; Faletto (2010) vislumbra que dependência e desenvolvimento além de não serem incompatíveis, combinam-se adequadamente às novas formas de articulação do mercado mundial a partir dos anos 1960. Configurou-se, então, uma espécie de elo intelectual não-intencional entre o estruturalismo latino-americano e as vindouras interpretações do populismo em nossa região. Em texto posterior, Fernando Henrique Cardoso expressa de maneira mais explícita essa questão:

Os efeitos da globalização parecem aumentar, de forma indiscriminada, a dependência, ao mesmo tempo em que as condições se ampliam para que a maior inserção internacional possa trazer benefícios em função de escolhas certas pelas sociedades nacionais. A sensibilidade para o internacional passa a ser um requisito indispensável do político moderno. De outro lado, a própria feição estruturante da globalização exige que essa sensibilidade se volte para as questões de longo prazo (CARDOSO, 1995, p. 152, destaques próprios).

Ou seja, apoiado nesse tipo de abordagem estruturalista do desenvolvimento latino- americano, fundamentou-se implicitamente a noção de que dependência e desenvolvimento são processos que transcendem a ação política. O populismo aparece nesses autores como um contraditório fenômeno político-ideológico relacionado à “presença das massas” no jogo político da industrialização substitutiva (CARDOSO; FALETTO, 2010, p. 123-125). Nesse

aspecto, destaca-se a carga pejorativa sobre o populismo à medida em que os autores destacam a tentativa de conciliar interesses antagônicos em um equilíbrio subordinado ao setor exportador. Em suas próprias palavras:

O êxito de uma mobilização deste tipo estará condicionado, por um lado, à existência de uma conjuntura favorável dos preços no mercado internacional, que permita, simultaneamente, políticas de sustentação do valor dos produtos de exportação para bem remunerar os exportadores, e alguma forma de retenção cambial, para financiar, com ela, a industrialização (CARDOSO; FALETTO, 2010, p. 124-125).

Salta aos olhos o teor cético pelo qual essa perspectiva avalia as possibilidades de uma intencionalidade industrializante por parte dos países latino-americanos (designada por eles como “populismo desenvolvimentista”). Saindo do âmbito estritamente analítico e entrando em terreno explicitamente normativo, o que resta, portanto, é o direcionamento dos conflitos internos para opções de política econômica que sejam consistentes e coerentes entre si numa perspectiva de futuro (CARDOSO, 1995).

É preciso destacar que não se trata de uma nova vontade teórica que se impõe sobre a ação econômica de Estado. Na verdade, o que, por exemplo, Cardoso; Faletto ([1967] 2010) e Cardoso (1995) percebem é que esse novo momento histórico de desenvolvimento do mercado mundial confere aos países subdesenvolvidos, que não passaram por exitosos processos revolucionários de socialização do poder político e da economia, novos condicionantes para ação estatal. Nesse sentido, assim como os marginalistas ao final do século XIX ofereceram um arcabouço teórico adequado aos interesses da burguesia àquela época, a crise do estruturalismo latino-americano e dos processos de industrialização por substituição de importações permitiu uma reorientação das reflexões sobre desenvolvimento, destacando-se ao mesmo tempo a força e a impotência da política interna frente ao império do capital90. A questão fundamental passa a ser internamente posta – correlação de forças

políticas –, porém não mais sobre os rumos e possibilidades do desenvolvimento das forças produtivas, em oposição ao que tanto cepalinos radicais e dependentistas marinistas argumentavam até então.

90 Vale a análise de Palma (2009, p. 255, acréscimo e tradução próprios) sobre a crise das tradições críticas latino-americanas em ciências sociais. “A nova esquerda na AL [América Latina] é caracterizada por ter chegado à conclusão (um pouco muito entusiasmada) que sob os atuais constrangimentos domésticos e internacionais, a construção das necessárias circunscrições eleitorais para agendas progressistas está fora do mapa político. Como resultado, eles desistiram de suas agendas progressistas, abandonaram a economia como lugar fundamental da luta e eventualmente concederam o conjunto dos termos do debate” (The new left in LA is characterized by having come to the conclusion (a bit too eagerly) that, under the current domestic and international constraints, the construction of the necessary social constituencies for progressive agendas is off the political map. As a result they gave up their progressive agendas, abandoned the economy as the fundamental site of the struggle, and eventually conceded the whole terms of the debate).

Paralelamente, nos Estados Unidos, desenvolvia-se, a partir da crítica de Lucas, o que ficou conhecido mais recentemente como a nova teoria de política econômica (HALLETT; DI BARTOLOMEO; ACOCELLA, 2010). Esta, por sua vez, fundamentada nas abordagens neoclássicas consolidadas desde a ascensão do marginalismo e da “teoria econômica pura” (sic), postula que a “correta” ação econômica de Estado se dá por meio de um modelo microfundamentado das relações macroeconômicas. Não demoraria para que o matrimônio entre a “nova” perspectiva do desenvolvimento e os novos-clássicos ocorresse, de modo a conceber a despolitização da política econômica, ao contrário do que propunha o estruturalismo latino-americano mesmo em suas versões mais reformistas.

3.5. CRÍTICA DE LUCAS E DESPOLITIZAÇÃO DA POLÍTICA ECONÔMICA