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2 O IDEALISMO CRÍTICO DA MATEMÁTICA

2.2 O SENTIDO PROPEDÊUTICO DA MATEMÁTICA PARA PLATÃO

2.2.2 A Matemática na República

2.2.2.2 Crítica de Platão à Matemática como ciência

Uma vez que, a importância propedêutica da Matemática para a Filosofia nem sempre é respeitada112, a apresentação do ataque de Platão contra a aplicação exclusivamente científica da Matemática, deve reforçar e proteger a subordinação do seu sentido epistemológico aos interesses da Filosofia.

Nesse sentido, o conjunto dos aspectos negativos dos limites superior e inferior do caráter intermediário da Matemática na analogia da Linha, devem ser entendidos como fatores que levam a Matemática a se distanciar da dialética.

De todas as críticas de Platão à Matemática como ciência, talvez a mais natural delas seja a de que os governantes da cidade ideal devem

dedicarem-se ao cálculo e aplicarem-se a ele, não superficialmente, mas até chegarem à contemplação da natureza dos números unicamente pelo pensamento, não cuidando deles por amor à compra e venda, como os comerciantes ou retalhistas, mas por causa da guerra e para facilitar a passagem da própria alma da mutabilidade à verdade e à essência. (...) Ora depois de falar da ciência de calcular, agora é que eu compreendo como é bela e útil de tantas maneiras ao nosso propósito, desde que uma pessoa a cultive por amor ao saber, e não para a traficância.113 Ora, mesmo que o conceito de ciência não possua um uso técnico nessa passagem é preciso deixar claro que a crítica de Platão não se dá àquilo que hoje chamaríamos de matemática aplicada, já que ele admite a sua importância para a cidade e para a guerra, mas, ao contrário do que se poderia pensar, ele critica os próprios matemáticos que se comportam como comerciantes e que, em sua traficância, contentam-se em comprar e vender os números deixando de discorrer sobre os números em si, deixando ainda de compreender que sem números ninguém compra nem vende nada.

Realmente, Platão chama atenção para o fato de que o conhecimento matemático, quando permanece apenas submetido as intenções do matemático não dá conta de seu propósito e perde a sua orientação, constituindo uma doutrina sem base no saber114.

112 “Pode muito bem ser uma daquelas ciências que procuramos, e que conduzem naturalmente à inteligência,

mas de que ninguém se serve corretamente, apesar de ela nos elevar perfeitamente até ao Ser.” (PLATÃO, 2001, 523a.).

113 PLATÃO, 2001, 525c-d.

114 “Ora essa! Não te apercebes de como as doutrinas sem base no saber são uma vergonha? Dentre essas, são

cegas as melhores  ou achas que diferem nalguma coisa de cegos que caminham por uma estrada aqueles que têm qualquer opinião verdadeira sem perceberem?” (PLATÃO, 2001, 506c.).

Mesmo assim, o conhecimento matemático pode continuamente ser demonstrado a partir das hipóteses do seu raciocínio, possibilitando certezas que possuem alguma estabilidade, ainda que permaneçam entre a ignorância e o saber, como uma opinião verdadeira115.

Ocorre que, na Matemática a alma raciocina através de hipóteses indo em direção a conclusões, o que caracteriza o conhecimento científico como fruto da razão discursiva, determinando que a Matemática tenha como princípio inteligível o entendimento (dianoia)116 que, por sua vez, fica entre a opinião e a inteligência, constituindo o lugar das opiniões verdadeiras.

No entanto, os matemáticos, por não justificarem as suas hipóteses117, não conseguem fazer das suas opiniões verdadeiras  seus axiomas, suas demonstrações, etc...

 marcos que conduzem ao saber, pois só o pensamento filosófico é capaz de orientar as opiniões verdadeiras para seu fim último.

Mas, o limite inferior do caráter intermediário da Matemática na analogia da Linha poderia isentar a geometria do ataque de Platão à Matemática? A resposta não pode ser positiva, pois a geometria se serve, junto com as demais ciências desse gênero

de figuras visíveis e estabelecem acerca delas os seus raciocínios, sem contudo pensarem neles, mas naquilo com que se parecem; fazem os seus raciocínios por causa do quadrado em si ou da diagonal em si, mas não daquela cuja imagem traçaram, e do mesmo modo quanto às restantes figuras. Aquilo que eles modelam ou desenham, de que existem as sombras e os reflexos na água, servem-se disso como se fossem imagens, procurando ver o que não pode avistar-se, senão pelo pensamento.118

115 “Ora, no Menon, a quase mágica aparição das opiniões verdadeiras decorre da aceitação prévia das hipóteses

apresentadas. Os dois dialogantes percorrem o caminho que medeia entre a ignorância e o saber, mas as respostas só atingem uma estabilidade mínima (as opiniões verdadeiras), quando são aceitas hipóteses coerentes com as Formas: a da diagonal e a de que a virtude é saber. Portanto, nesta perspectiva, a opinião verdadeira não será mais (nem menos) do que um marco na via que conduz ao saber.” (TRINDADE SANTOS, José. Estudo

introdutório, p. 24. In PLATÃO. Ménon. Tradução e notas Ernesto Rodrigues Gomes. Lisboa: Edições Colibri,

1993.)

116 “queres determinar que é mais claro o conhecimento do ser e do inteligível adquirido pela ciência da dialética

do que pelas chamadas ciências, cujos princípios são hipóteses; os que as estudam são forçados a fazê-lo, pelo pensamento, e não pelos sentidos; no entanto, pelo fato de as examinarem sem subir até ao princípio, mas a partir de hipóteses, parece-te que não têm a inteligência desses fatos, embora eles sejam inteligíveis com um primeiro princípio. Parece-me que chamas entendimento, e não inteligência, o modo de pensar dos geômetras e de outros cientistas, como se o entendimento fosse algo de intermédio entre a opinião e a inteligência.” (PLATÃO, 2001, 511c-d.).

117

“Suponho que sabes que aqueles que se ocupam da geometria, da aritmética e ciências desse gênero, admitem o par e o impar, as figuras, três espécies de ângulos, e outras doutrinas irmãs destas, segundo o campo de cada um. Estas coisas dão-nas por sabidas, e, quando as usam como hipóteses, não acham que ainda seja necessário prestar contas disto a si mesmos nem aos outros, uma vez que são evidentes para todos. E, partindo daí e analisando todas as fases, e tirando as conseqüências, atingem o ponto a cuja investigação se tinha abalançado.” (PLATÃO,2001, 510c-d)

Ora, de todas as áreas da Matemática a geometria parece ser aquela que mais se aproxima do sensível, mas se vale de figuras sensíveis sem tratar do sensível.

Com isso, Platão rejeita a suposta alegação dos geómetras que afirmam que suas hipóteses estariam justificadas e confirmadas pelas imagens desenhadas119, ou seja, no caso da geometria o que está em jogo é, precisamente, a relação que separa o inteligível do sensível.

Nesse caso, Platão parece argumentar no sentido de reforçar que a passagem da seção inferior para a seção superior da analogia da Linha é também o deslocamento do tratar com as coisas que são, para o que permite o conhecimento delas, mostrando que apesar do geómetra raciocinar sobre figuras visíveis, o seu pensamento não domina, nem muito menos se refere àquilo que é visível na figura, de forma que a geometria também não é capaz de justificar as suas hipóteses120.

Assim, a analogia da Linha pode ser vista como o detalhamento do fato de que as coisas sensíveis só podem ser visíveis para os sentidos e não para o espírito propriamente, enquanto que, inversamente, as idéias só podem ser inteligíveis para o espírito e não para os sentidos121.