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1 A MATEMÁTICA COMO PROPEDÊUTICA DA “RAZÃO PURA”: STATUS

1.2 BREVE HISTÓRIA DAS INTERPRETAÇÕES DA FILOSOFIA DE KANT: UM

1.2.3 O detour de Cohen em relação à Kant

Os aspectos mais importantes do neokantismo de Cohen, naquilo que diz respeito ao nosso tema, já foram ponderados acima, a saber:

 O retorno de Cohen a Platão não o aproxima de Kant e o faz caminhar em direção ao idealismo científico;

Não se pode facilmente conceber o pensamento de Platão como um proto- idealismo científico;

 Cohen é cientificista, por isso, a sua volta a Platão termina por obscurecer o tema de nossa tese;

 Cohen não leva em conta que Kant e Platão possuem princípios metafísicos diferentes;

 Cohen tem razão: a necessidade kantiana de fundamentar a ciência da natureza é semelhante ao esforço de Platão de libertar o pensamento do sensível;

43 “Kant advirtió que la solución del problema relativo a la ciencia de la natureza era como el corolario de la

solución de un problema análogo que, en lugar de recaer sobre la física, es decir sobre la aplicacion de la matemática a la experiencia, sería interior a la matemática.” (BRUNSCHVICG, Leon. Las etapas de la filosofia matemática. Buenos Aires: Lautaro, 1945. p. 286.).

 Cohen, apesar de não desenvolver, observa corretamente que a estratégia de Platão em submeter a Matemática aos interesses da Metafísica, pode ser alinhada com a de Kant;

A compreensão matemática da sensibilidade pode servir como fio condutor de nossa pesquisa;

 Cohen esvazia o sentido metafísico da Matemática ao subordiná-lo aos fundamentos do conhecimento científico.

Dessa maneira, o objetivo desta seção não é ampliar os detalhes do pensamento de Cohen na sua originalidade e na sua significatividade, mas tão somente apresentar o ângulo de abertura que descreve a sua principal divergência com relação ao pensamento de Kant na Crítica da Razão Pura.

1.2.3.1 O equívoco dogmático de Cohen

Gérard Lebrun resume muito bem o cerne da divergência entre o pensamento de Cohen e o de Kant, acusando-o de ter assumido a reflexão kantiana do a priori sem levar em conta o sentido negativo das Categorias, que é propriamente o que Lebrun pretende defender.

Sobre esse ponto, afirma ele:

pode-se medir então o quanto a Theorie der Erfahrung de Cohen falseia a perspectiva da Crítica: restringir o essencial desta à Dedução e ao Sistema dos Princípios é fazer da ciência dos limites um instrumento a serviço do princípio da possibilidade da experiência.44

Assim, continua Lebrun,

é preciso compreender que o desenho dos contornos do conhecimento a priori é também um decalque das estruturas já presentes da razão45,

ou seja, o objetivo da filosofia crítica é estabelecer os limites (Grenzen) da razão teórica, afastando a Metafísica de uma tarefa que não é sua.

44 LEBRUN, Gerard. Kant e o Fim da Metafísica. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 21-22. 45 Ibid., p. 36.

Nesse sentido, não apenas essas colocações de Lebrun mostram o quanto Cohen se afasta de Kant, mas também já permite deslumbrar a conclusão a que o seu equivoco dogmático irá levá-lo, a saber: a dissolução na faculdade do Entendimento  através do exercício crítico de uma hipótese desnecessária: a Sensibilidade Transcendental46.

Assim, não é fácil negar que o desenvolvimento natural da Teoria Kantiana da Experiência vai resultar na falsa convicção de Cohen de que a tarefa da Crítica da Razão Pura permanece em aberto na medida em que tal obra não desenvolve até as últimas conseqüências os resultados do método transcendental.

Dessa forma, inevitavelmente, a opção de Cohen pelo Idealismo Científico reduzirá a Crítica da Razão Pura a uma lógica ou teoria do conhecimento científico. Essa opção, também deixa de levar em conta que, para Kant, a análise da condição de possibilidade do conhecimento é apenas um meio para a determinação da envergadura da Razão47, de modo que, a Crítica da Razão Pura, antes de ser um tratado de Metafísica, é um tratado de método48 onde a função da Matemática é dupla: ao mesmo tempo em que determina a fronteira (Schranken) de todo conhecimento possível49, organiza o verdadeiro mapa da Razão, ou seja, é a compreensão do significado do conhecimento matemático para a Razão Pura que circunscreve o novo lugar da Metafísica e da ciência natural.

Assim, Cohen não percebe que no pensamento de Kant existe um movimento propedêutico proporcionado pela crítica transcendental ao conhecimento matemático, deixando escapar que é esse movimento que impulsiona a própria Razão para a sua autocrítica, colocando-a em direção à verdadeira tarefa da Metafísica.

46 Por isso, não pode ser verdade que “On a vu que c’est même la fidélité à la méthode découverte par Kant,

mais que celui-ci n’a pas su conduire jusqu’à ses conséquences véritables, qui conduit Cohen (et ses élèves) à la suppression de l’intuition. Le méthode transcendantale conserve donc toute sa valeur elle est la seule voie qui puísse conduire la philosophie sur la voie sûre de la science.” (DUFOUR, Eric. Hermann Cohen: introduction au néokantisme de Marbourg. Paris: PUF, 2001. p. 45.).

47 Cf. LEBRUN, Gerard. Kant e o Fim da Metafísica. p. 44. 48

“A preponderância tomada pelo método (...) é signo de que a metafísica cessa de ser considerada como teoria — discurso concernente a um certo domínio — e de que toda a tarefa da razão pura poderia muito bem consistir em voltar-se sobre si e em medir o seu poder — logo, em se criticar.” (LEBRUN, Gerard. Kant e o Fim da

Metafísica. p. 39.).

49

“Na matemática e na ciência da natureza, a razão humana conhece certamente fronteiras, mas não limites.” (KANT, Immanuel. Prolegômenos a toda metafísica futura. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 146.).