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1 A MATEMÁTICA COMO PROPEDÊUTICA DA “RAZÃO PURA”: STATUS

1.2 BREVE HISTÓRIA DAS INTERPRETAÇÕES DA FILOSOFIA DE KANT: UM

1.2.2 O retorno a Platão

1.2.2.1 O retorno de Cohen ao suposto idealismo original de Platão

Para Cohen, o Logicismo se confunde com o Idealismo, justamente na medida em que a rota de fuga do psicologismo e do idealismo absoluto leva-o até os princípios do Racionalismo.

Cohen faz uma leitura intelectualista dos gregos, ao modo do século XVII, afirmando que o primeiro movimento filosófico denominado de Idealismo apesar de ter nascido em Eléia, somente atingiu um verdadeiro grau de maturidade na forma de pensamento filosófico com Platão.

Ainda, de acordo com Cohen, isso só foi possível porque Platão soube estruturar e elevar a uma nova dimensão a tese dos pré-socráticos que pretende dar conta da resistência do sensível (na mudança, na unidade e na pluralidade) e de seu conjunto harmonioso (Kosmos), à sua completa compreensão racional por meio da physis como princípio.

Assim, apoiado não apenas num único princípio racional, mas em uma metafísica racionalista da experiência, Platão teria dado um passo decisivo: ele foi capaz de explicar teoricamente o sentido e a natureza das Ciências (especificamente as matemáticas) na ordem do Pensamento e do Ser.

De acordo com a orientação de Cohen, a filosofia crítica, porque é devedora da composição platônica do problema da experiência sensível, filia-se ao projeto filosófico que se inicia com a crítica de Platão ao debate existente entre os eleatas e os jônicos sobre o devir próprio do sensível.

Mas, se trouxermos para esse contexto a famosa afirmação de Alfred Whitehead  de que “a mais segura caracterização geral da tradição filosófica européia consistiria de uma série de notas de rodapé à Platão”29

somos obrigados a constatar que ela perde sua espontaneidade, clareza e precisão. Isso acontece porque a importância que Cohen dá a Platão segue, por exemplo, os princípios da seguinte observação:

procurei fundamentar a originalidade de Kant na sua relação histórica com Platão, da mesmas forma que com seus predecessores. Entretanto, do mesmo modo que o renascimento das ciências não foi no fundo outra coisa que a renovação de Platão, o mundo moderno no seu conjunto veio a ser um rejuvenescimento do platonismo.30

29 “The safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of

footnotes to Plato.” WHITEHEAD, Alfred North. Process and Reality. Free Press, 1978, p. 40.

30 “J’ai cherché à fonder l’originalité de Kant dans son lien historique avec Platon comme avec ses

Dois aspectos dessa passagem turvam a nossa reflexão: em primeiro lugar, como é possível que os Diálogos de Platão justifiquem o nascimento das ciências modernas? E depois, em segundo lugar, como o mundo moderno pode ser o rejuvenescimento do platonismo? Essas são questões muito abrangentes que para ser respondidas devem ter uma grande quantidade mediações, com premissas certamente verdadeiras, que fizessem a relação íntima entre o pensamento de Platão e as ciências modernas.

Além disso, é curioso perceber a necessidade que Cohen tem de fundamentar a originalidade de Kant na sua relação histórica com Platão. Será que a originalidade do pensamento kantiano precisa encontrar apoio em Platão? Ora, a resposta é certamente negativa. O locus clássico ocupado por Kant na tradição filosófica só pode ser devedor de Platão na mesma medida em que, por exemplo, também seria devedor de Husserl, ou seja, a originalidade do pensamento kantiano só é verdadeiramente exposta e compreendida se orientada para o horizonte temporal de toda a tradição filosófica.

Por isso, Cohen não respeita o fato de que o estro da Filosofia está sempre no tempo, apesar de possuir uma dimensão sub specie aeternitatis. Ao que parece, longe de ver a diversidade e pluralidade das questões filosóficas ao longo da sua história como sendo uma renovação e reestruturação da própria Filosofia, Cohen perde de vista o conatus da tradição, sucumbindo ao ideal do logicismo que introduz na história da filosofia uma noção confusa de progresso filosófico, que seria análoga ao progresso na ciência. Isso, por sua vez, faz com que Cohen se aproxime do erro que Hintikka pretende evitar levando em conta as suposições conceituais de cada pensamento filosófico na hora de aproximá-los ou confrontá-los.

Assim, é sintomático que na passagem acima, Cohen solidamente pressuponha a existência não só de uma unidade no pensamento de Platão31 e no Platonismo, como também

de Platon, le monde moderne dans son ensamble devient un rajeunissement du platonisme.” COHEN, Hermann. La Théorie Kantienne de l’Expérience (TKE). Tradução Éric Dufour e Julien Servois. Paris: Cerf, 2001. p. 45.

31 “A obra e a filosofia de Platão sempre constituíram realidades distintas, pelo menos por duas razões. Em

primeiro lugar porque a leitura dos diálogos só gradualmente pode proporcionar a compreensão da filosofia platônica. Os diálogos constituem um conjunto de peças autônomas, nas quais, inseridos em narrativas dramáticas, encontramos teses, argumentos, debates, reflexões pessoais, unificados por investigações sobre questões bem definidas. A par destes, enconramos mitos, digresões, interlúdios, amalgamados num todo impossível de sintetizar numa concepção unitária, inquestionavelmente defendida por Platão, como tal, aceita e reconhecida por todos. Isso significa que não se possa falar de uma ‘filosofia platônica’? Não  e aqui entra a segunda razão acima apontada , porque a visão unitária se colhe a partir dos comentadores, nas obras em que os estudiosos de Platão se manifestam quer como intérpretes, quer como críticos da estrutura ideológica por eles

próprios forjada, a partir da sua leitura dos textos, sob a designação de ‘doutrina’ ou ‘pensamento platônico’.”

(TRINDADE SANTOS, José. Para ler Platão: a ontoepistemologia dos diálogos socráticos. Tomo I. São Paulo: Loyola, 2008a. p. 20-21.).

que essa unidade pode ser facilmente reconhecida como o idealismo original da história da filosofia.