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2 O IDEALISMO CRÍTICO DA MATEMÁTICA

2.3 O SENTIDO PROPEDÊUTICO DA MATEMÁTICA PARA KANT

2.3.2 O caráter matemático da experiência

2.3.2.1 O particular e o universal na Matemática

Já que a análise crítica da geometria nos impulsionou até o âmbito do transcendental, a partir de agora procuraremos seguir o jogo das faculdades do sujeito transcendental na determinação da forma de todo o conhecimento a priori.

Por isso, o nosso ponto de partida, será a constatação de que a imaginação é responsável pela constituição de uma regra que permite subsumir os fenômenos às categorias. Vejamos, então, como isso nos levará até a compreensão da característica peculiar da Matemática de referir-se ao universal no particular.

Nessa perspectiva, a faculdade transcendental da imaginação trabalha em duas frentes: a primeira e a mais importante é a afinação das representações pela produção de uma regra; já a segunda, assume a função de fabricar imagens, através da associação das representações de acordo com a regra definida. As duas em conjunto são de grande relevância para a compreensão do procedimento do matemático, pois elas são elucidativas, na medida em

que explicam como é possível que numa figura particular e mesmo empírica, o geômetra consiga demonstrar teoremas de validade universal.

Dessa forma, seguindo a estratégia adotada por Kant, trataremos os aspectos produtivo e reprodutivo da imaginação conjuntamente, explicando os dois por contraste.

Assim, se o Entendimento contém a priori todos os tipos de sínteses que são possíveis a um intelecto finito como o humano, e, por outro lado, o tempo, como sentido interno, contém a priori a ligação de todas as representações numa intuição, mas, contudo, ambos são de naturezas distintas, então, para subsumir os fenômenos às Categorias, é preciso a intervenção da faculdade híbrida da imaginação que consegue determinar transcendentalmente o tempo, fabricando uma regra que é homogênea, por um lado, às Categorias, porque é uma regra universal, enquanto que, por outro lado, tal regra da imaginação também é homogênea aos fenômenos, pois, como é uma determinação do tempo, não tem como deixar de se referir a toda intuição.

Portanto, ser uma determinação transcendental do tempo, fazendo a ligação entre o Entendimento e a Sensibilidade e promovendo, por isso, a aplicação das Categorias aos fenômenos, tal é, precisamente, o significado geral do que Kant chama de esquema183.

Desta forma, a síntese da imaginação não se refere a uma intuição singular, mas ao tempo — e, conseqüentemente, também ao espaço — como uma unidade do diverso da Sensibilidade.

Assim, a imagem deve ser um subproduto desta síntese maior, e não pode ser confundida com ela, pois o esquema é um método para instanciar um conceito, de modo que a realização de uma imagem que corresponda ao esquema — e não a sua instância — é antes uma tentativa de representar visualmente aquilo que penso de objetivo através de um conceito. Por isso,

ao conceito de um triângulo em geral nenhuma imagem seria jamais adequada. Com efeito, não atingiria a universalidade do conceito pela qual este é válido para todos os triângulos, retângulos, de ângulos oblíquos, etc., ficando sempre apenas limitada a uma parte dessa esfera. O esquema do triângulo só pode existir no pensamento e significa uma regra da síntese da imaginação com vista a figuras puras no espaço. Muito menos ainda um objeto da experiência ou a sua imagem alcançaria alguma vez o conceito empírico, pois este refere-se sempre imediatamente ao esquema da imaginação, como a uma regra da determinação da nossa intuição de acordo com um certo conceito geral. O conceito de cão significa uma regra segundo a qual a minha imaginação pode traçar de maneira geral a figura de certo animal quadrúpede, sem

183

“Assim, uma aplicação da categoria aos fenômenos será possível mediante a determinação transcendental do tempo que, como esquema dos conceitos do entendimento, proporciona a subsumção dos fenômenos na categoria (Ibid., B 178.).

ficar restringida a uma única figura particular, que a experiência me oferece ou também a qualquer imagem possível que posso representar in concreto184,

ou seja, o esquema do triângulo é um conceito sensível e puro, porque ele é um método de construção de triângulos que possibilita as instâncias do conceito discursivo de triângulo.

Com efeito, no caso do número, pode-se realizar corretamente as exigências do conceito, de infinitas maneiras, já que ele “é uma representação que engloba a adição sucessiva da unidade à unidade (do homogêneo).” 185

.

Desta maneira, como o esquema é uma regra de determinação pura do tempo que informa a imaginação reprodutiva com os procedimentos a serem adotados na associação de representações e, esta, por sua vez, não pode descrever por associação um raciocínio, a não ser estabelecendo suas instâncias, então,

só poderemos dizer que a imagem é um produto da faculdade empírica da imaginação reprodutiva, e que o esquema de conceitos sensíveis (como das figuras no espaço) é um produto e, de certo modo, um monograma da imaginação pura a

priori, pelo qual e segundo o qual são possíveis as imagens; estas, porém, têm de

estar sempre ligadas aos conceitos, unicamente por intermédio do esquema que elas designam e ao qual não são em si mesmas inteiramente adequadas186.

Assim, voltando ao exemplo do triângulo, o conceito que lhe corresponde (a sua definição) apenas fornece uma coerência interna entre os conceitos que lhe estão subordinados, enquanto que o esquema ordena uma afinação destes conceitos na intuição, estabelecendo uma regra de unidade entre eles — no caso, a de uma figura que é um polígono regular fechado por três linhas retas que se interceptam —, e, agora, já que as notas da definição estão unidas como propriedades de uma figura, só resta à imaginação reproduzir esta regra, por associação, numa imagem que corresponde à definição, mas que prescinde da medida dos ângulos e dos lados desta figura, de modo que a construção deste conceito pode ocorrer de mais de uma maneira, num triângulo isósceles, retângulo, etc...187

Essa é, portanto, a explicação do procedimento do geômetra que, numa figura particular e mesmo empírica, consegue demonstrar teoremas de validade universal. Percebe- se, aqui, por um lado, o quanto estamos longe do pensamento de Platão por conta das nuances do princípio kantiano do sujeito transcendental, mas curiosamente, por outro lado, também

184 KANT, 1994, B 180. 185 Ibid., B 182. 186 Ibid., B 181. 187 Cf. KANT, 1994, B 205.

não podemos deixar de constatar que, por outros caminhos, Platão não aceita  tal como Kant  que a figura geométrica desenhada seja por si só a expressão do raciocínio do matemático188.