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3 IDEALISMO TRANSCENDENTAL DA MATEMÁTICA

3.2 A DISTINÇÃO ENTRE O CONHECIMENTO MATEMÁTICO E O FILOSÓFICO

3.2.1 A disciplina da Matemática e da Filosofia

3.2.1.2 Os axiomas

Para Kant, os axiomas são “princípios sintéticos a priori enquanto são imediatamente certos”245

, ou seja, eles são proposições que possuem a propriedade de servir como premissa básica dos raciocínios matemáticos, e, ao mesmo tempo, comportam em si — com a mesma originalidade das definições — a síntese entre dois conceitos distintos.

Por isso, como nos juízos sintéticos a priori os conceitos que ocupam as funções lógicas de sujeito e de predicado são unidos por um termo mediador, embora isoladamente indiquem pensamentos distintos, de tal maneira que a consciência do primeiro não implica a do segundo246, da mesma forma, então, a síntese dos conceitos nos axiomas também só pode está subordinada ao mesmo termo mediador, que está esclarecido na seguinte passagem da seção intitulada Do princípio supremo de todos os juízos sintéticos:

Admitamos, pois, que se tem de partir de um conceito dado para o comparar sinteticamente com um outro; é então necessário um terceiro termo, no qual somente se pode produzir a síntese dos dois conceitos. Qual é, pois, este terceiro termo, senão

242

Cf. KANT, 1994, B 746 – 747.

243

“Numa palavra, em filosofia a definição, como clareza apropriada, deve antes terminar do que iniciar a obra. Em contrapartida, na matemática não é dado conceito algum antes da definição, pois é por esta que ele, antes de mais, é dado; deve e pode, portanto, começar sempre por aí” (Ibid., B 759).

244

Ibid., B 759n.

245 KANT, 1994, B 760. 246 Cf. Ibid., B 10 – 14.

o medium de todos os juízos sintéticos? Só pode ser um conjunto em que todas as nossas representações estejam contidas, ou seja, o sentido interno, e a sua forma a

priori, o tempo. A síntese das representações assenta sobre a imaginação; porém, a

unidade sintética das mesmas (requerida para o juízo), descansa sobre a unidade da apercepção247.

Desta forma, esta citação ressalta duas coisas: em primeiro lugar a função da cópula num juízo sintético a priori deve conter em si a unidade da apercepção mediada pelo sentido interno, o que possibilita a unidade necessária entre conceitos distintos num mesmo juízo; depois, em segundo lugar, justamente porque explica a natureza do termo medium se valendo de conceitos dados, ela mostra que a síntese a priori pode ocorrer em todos os tipos de conceitos, o que significa que a Filosofia não pode deixar de apelar a esse terceiro termo, pois

as proposições sintéticas, que dizem respeito a coisas em geral cuja intuição não pode ser dada a priori, são transcendentais. Por isso, as proposições transcendentais não se podem nunca dar por construção de conceitos, mas apenas segundo conceitos

a priori248,

ou seja, a diferença entre o procedimento da Matemática com relação ao da Filosofia

não pode se pautar na suposição de que o matemático trabalharia com sínteses a priori,

enquanto a Filosofia não recorreria a síntese alguma, já que o procedimento por sínteses deve pertencer simultaneamente às duas formas de conhecimento.

De fato, segundo Kant, a diferença entre a Matemática e a Filosofia só pode ser encontrada através da análise dos princípios que regem a síntese nesses dois modos de conhecimento.

Assim, quando Kant compara um dos princípios do Entendimento puro — especificamente aquele que ele denominou de Axiomas da Intuição — com os axiomas no sentido estrito, a diferença entre os dois se torna manifesta, pois o primeiro — porque fundamenta uma ciência —, determina a que se refere todo o conhecimento matemático, enquanto que, os axiomas apenas caracterizam os objetos específicos da Matemática

Ora, os Princípios do Entendimento, justamente porque fundamentam todas as Ciências que são possíveis ao homem, em si mesmos não fazem parte de nenhuma ciência, e, por isso, nenhum dos juízos sintéticos que deles possam ser extraídos comportam a generalidade das suas sínteses.

247 Ibid., B 194. 248 Ibid., B 748.

Dessa maneira, a síntese nos princípios da Matemática (axiomas), apesar de estar fundamentada na pureza de um princípio transcendental (Axiomas da intuição), representa exclusivamente a consciência de um objeto matemático que, por sua vez, “nasce” da sua própria definição, de modo que os axiomas são juízos imediatamente certos, enquanto que, inversamente, os Axiomas da intuição necessitam de uma dedução transcendental para encontrar a sua certeza, já que são afirmações metafísicas.

Dessa forma, chamando os princípios do Entendimento de discursivos, Kant resume a distinção entre os axiomas e os Axiomas da intuição249 da seguinte maneira:

Os princípios discursivos são, pois, algo completamente diferente dos princípios intuitivos, isto é, dos axiomas. Os primeiros exigem sempre uma dedução, que os últimos podem inteiramente dispensar; e como por esta mesma razão estes são evidentes, o que os princípios filosóficos, com toda a sua certeza, nunca podem pretender, falta infinitamente a qualquer proposição sintética da razão pura e transcendental, que seja tão manifesta (como obstinadamente se tem o costume de dizer) como a proposição: dois mais dois igual a quatro. É certo que, na Analítica, na tábua dos princípios do entendimento puro, também mencionei certos axiomas da intuição; simplesmente, o princípio ai citado não era ele mesmo um axioma, mas servia unicamente para fornecer o fundamento da possibilidade dos axiomas em geral e era apenas um princípio extraído de conceitos. De fato, a possibilidade da matemática deve ser demonstrada na filosofia transcendental250.

Assim, o filósofo se refere sempre a algo que não pode ser apresentado in concreto, o que lhe impossibilita o uso legítimo de axiomas, mas, da mesma forma, nos raciocínios matemáticos o seu princípio filosófico

[...] só pode suscitar palavriado, embora precisamente nesse domínio a filosofia consista em conhecer-lhe os limites e que mesmo o matemático, se o seu talento não está já especializado pela natureza e encerrado no seu domínio próprio, não pode repelir as advertências da filosofia, nem colocar-se acima delas251.

Portanto, apesar do matemático sempre se referir a algo que pode ser apresentado na intuição pura, o caráter necessário dos princípios do Entendimento é compartilhado tanto pela Matemática, quanto pela Filosofia, mesmo que sejam por motivos diferentes, pois a evidência

249

O status dos princípios do Entendimento só se tornará mais claro quando tratarmos no tópico seguinte das provas acroamáticas. Neste momento, uma passagem da Lógica ajuda a esclarer a distinção em questão: “as proposições fundamentais são ou intuitivas [intuitive Grundsatz] ou discursivas [discursive Grundsatz] — as primeiras podem ser apresentadas na intuição e se chamam axiomas [Axiome, axiomata]; as últimas só podem ser expressas por conceitos e podem-se chamar acroamas [Akroame, acroamata]” (KANT, 2003, AK 110).

250 KANT, 1994, B 761. 251 KANT, 1994, B 755.

que caracteriza o axioma não pode servir de base para a fundamentação da sua própria ciência.