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Crítica inferencial versus história da arte

2. A crítica inferencial e os padrões de intenção nas obras de arte

2.2 Padrões de intenção: a crítica inferencial no território histórico

2.2.2 Crítica inferencial versus história da arte

Apesar de se colocar como um historiador da arte em diversos casos – até mesmo pelo exercício, sim, quase arqueológico do seu fazer –, Baxandall não está preocupado em traçar apenas a relação de uma obra com a tradição que a sucede e a precede, e muito menos em simplesmente localizá-la historicamente. Em suas análises, a história da arte é tomada como uma atividade pragmática, que desvenda um quadro a partir do exercício da sua relação com um contexto.

Baxandall está distante de se limitar a isso, como pudemos ver até agora. Há na sua atividade de historiador da arte uma veia essencialmente crítica, que ele mesmo faz questão de ressaltar. Não é à toa que vai chamar sua metodologia aberta de análise dos objetos artísticos de “crítica inferencial”, antes de se decidir pelo termo “história da arte inferencial” ou qualquer outro nome parecido.

O próprio Baxandall não se aprofunda nos motivos por trás da opção por esse termo. Falar de uma crítica baseada em inferências é uma forma de demarcar a escolha por uma visão de história da arte em que conceitos e metodologias de análise não se impõem ante as obras. Para ele, é preciso que essa aproximação histórica seja tratada a partir de uma construção relacional de conceitos, contexto e fidelidade ao objeto visual.

“Creio que o papel do historiador das ideias não é apresentar vagas generalizações prescritivas sob o rótulo de ‘teorias’, mas verificar como proposições muito simples se comportam diante de casos complexos, pelo menos tão complexos quanto permitam o tempo e a energia disponíveis” (Baxandall, 2006, p. 28).

De certa forma, é isso que o crítico galês parece querer dizer quando afirma que “Padrões de intenção” “dedica-se fundamentalmente à crítica” (Baxandall, 2006, p. 28), uma inversão importante de expectativa, ainda mais quando se trata do principal trabalho teórico importante para a história da arte. Esse conceito, como Baxandall faz questão de ressaltar, é tomado “no sentido não-canônico de pensar ou dizer a respeito de um quadro coisas que ajudam a aguçar o prazer legítimo que ele nos proporciona” (Baxandall, 2006, p. 28).

A definição, de aparência relativamente despretensiosa, na verdade ajuda a explicar a opção pelo uso da crítica inferencial de Baxandall neste trabalho. A análise é importante não só porque se debruça sobre obras históricas: nem sempre o aspecto histórico é o que parece ser o mais importante nas análises de Baxandall, ainda que seu trabalho seja pensado também a partir de termos históricos, que são a forma de se

atestar a possibilidade da relação entre um conceito, uma explicação e um aspecto da obra analisada. A história é o que limita e define as possibilidades desse conceito: seria completamente absurdo, tanto que isso nem passa na nossa cabeça, que Picasso pudesse estar se relacionando com conceitos e obras que ainda iriam nascer, ou que, ainda que olhasse para o passado, o olhasse como o presente.

A história é um aparato lógico e retórico nessa crítica, e é por isso que a obra de um autor contemporâneo como Laerte, caso analisado nesta dissertação, pode ser vista também a partir de sua relação com um contexto – mas, nesse caso, ele não é histórico, é presente. Perde-se o aparato de verificação das possibilidades da afirmação, pois é ainda mais difícil tentar limitar com que um artista contemporâneo dialoga – discussões do seu tempo, teóricos antigos, um campo difuso de obras e tradições – mas se ganha uma maior possibilidade de entender a experiência social do olhar sobre a obra, uma tecla em que Baxandall havia batido bastante com o conceito de “olhar do período”. A tentativa de falar do hoje, um mistério tão distante de nossa apreensão como o passado, é mais complexa e mais suscetível a erros – algo, de certo modo, análogo, ainda que por motivos diferentes, ao caso de Piero della Francesca (1415-1492), cuja intenção em “O batismo de Cristo” (Figura 6) é quase inatingível porque o seu contexto é irrecuperável.

Figura 16 – O batismo de Cristo (1450), de Piero della Francesca

Essa crítica que usa a história como um aparato de verificação tem como marca fundamental o pragmatismo de seus intuitos. O próprio Baxandall descreve a crítica inferencial como uma posição de “um intencionalismo ingênuo, mas cético” (Baxandall, 2006, p. 28). É uma definição relativamente precisa do seu fazer: ingênuo ao ignorar as tradições de análises de obras para ater apenas ao que a materialidade do objeto demanda para que a experiência visual que ele propõe seja entendida; cético ao admitir não só que não é uma exposição definitiva das intenções daquela obra, mas também ao desconfiar das próprias afirmações que surgem com naturalidade e da própria relevância dos conceitos e aspectos que traz para o centro da narrativa crítica. Baxandall (2006, p. 26) busca, então, “propor uma explicação bastante detalhada [de uma obra] numa forma aberta às objeções do leitor”. Depois de olhar as obras de Picasso, Chardin e Piero dela Francesca, ele sintetiza dessa forma a crítica inferencial:

“Estamos interessados na intenção dos quadros e dos pintores como um meio de refinar, para nós mesmos, a percepção que podemos ter dos quadros. O que tentamos explicar é o quadro conforme aparece numa descrição feita com nossas palavras, e essa mesma explicação faz parte

são de nossa escolha. Explicar uma intenção não é contar o que se passou na cabeça do pintor, mas elaborar uma análise sobre seus fins e seus meios, conforme os inferimos a partir da observação da relação entre um objeto e algumas circunstâncias identificáveis” (Baxandall, 2006, p. 162, destaque do original).