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2. A crítica inferencial e os padrões de intenção nas obras de arte

2.2 Padrões de intenção: a crítica inferencial no território histórico

2.2.4 Linguagem e crítica

Além de atentar para as relações entre a crítica e a história, Baxandall tem outro cuidado ao pensar a crítica inferencial: a difícil tarefa de transformar em texto um conteúdo visual e as nossas percepções dele. O simples exercício de tentar descrever um quadro é quase impossível quando se tenta transformar uma apreensão instantânea como a de um objeto visual não narrativo como um quadro ou uma escultura9 (não é o caso de um quadrinho10 ou de um filme) em uma descrição que será obrigatoriamente hierárquica como a escrita, na qual o fato de simplesmente enunciar um aspecto ou um objeto antes do outro muda sua importância no texto.

A linguagem é o primeiro ponto de fratura na tentativa de apreender criticamente e historicamente uma obra. Só que, para Baxandall, reconhecer as dificuldades (e até mesmo a impossibilidade de harmonizar os dois polos verdadeiramente) não significa que o percurso de análise é inútil ou que qualquer tentativa de aproximação é em vão: o que o crítico inferencial deve fazer é lidar com a impossibilidade de trazer para a linguagem a experiência visual completa de uma obra de forma produtiva.

Logo no começo de “Padrões de intenção”, ele já vai alertar contra a possibilidade da reprodução de um quadro a partir da escrita: “é no mínimo desconfortável lidar com um meio de expressão que se apreende de modo simultâneo – um quadro é isso –, com um meio tão linear no tempo quanto a linguagem” (Baxandall, 2006, p. 34). O caráter hierárquico da linguagem impede a reprodução de sua        

9 Claro que a apreensão de uma obra visual como um quadro não é inteiramente instantânea, mas a nossa

primeira impressão dela o é. A escrita não tem como representar sem perdas e simplificações grosseiras esse processo, que só depois se demora nos detalhes da obra e os apreende isoladamente.

10 Que, ainda que seja um meio narrativo, também possui uma apreensão prévia que é instantânea – ou

experiência visual, mas é somente através de textos que podemos tentar explicar uma obra para nós mesmos e para os outros. “Nós não explicamos um quadro: explicamos observações sobre um quadro. Dito de outra forma, somente explicamos um quadro na medida em que o consideramos à luz de uma descrição ou especificação verbal dele” (Baxandall, 2006, p. 31), aponta. Na verdade, o historiador da arte não descreve um quadro, mas sim o que ele formula após ver um quadro: “explicamos em primeiro lugar o que pensamos a respeito do quadro, e apenas em segundo lugar o quadro propriamente dito” (Baxandall, 2006, p. 36). Além disso, a descrição textual sempre faz referência a um objeto que, de alguma forma, se faz presente para o leitor. Se não é possível ver de fato a obra, uma foto ajuda o crítico inferencial a destacar os aspectos visuais que parecem fundamentais para se entender uma obra – e se até a foto do quadro for ausente, basta ao leitor à referência a uma imagem visualmente semelhante àquela obra para imaginá-la mais precisamente do que qualquer narrativa descritiva.

A questão é que, para ele, até mesmo para descrever o que destacamos da experiência visual de uma obra a linguagem pode ser uma ferramenta imperfeita. É nesse momento que a herança dos estudos linguísticos mais penetra a sua obra. Para atender a complexidade de organizações visuais e estéticas singulares, as palavras e os conceitos podem ser demasiadamente generalizantes, com um repertório “tosco e vago”, como ele mesmo diz (Baxandall, 2006, p. 34). “Só que, numa descrição ligada à crítica de arte, os conceitos não são usados em sentido absoluto, mas aplicados em função de um objeto preciso, de um caso específico. Ademais, os conceitos são empregados de modo demonstrativo, não informativo” (Baxandall, 2006, p. 40).

Assim, para ele, termos são úteis na sua relação específica com a obra analisada: a crítica inferencial não é feita para ser ampliada para toda uma época, um grupo ou mesmo toda a produção de um autor – ela gera conceitos relacionais que demandam a proximidade em alguma instância com a presença da obra. É preciso ver a especificidade de um quadro a partir da especificidade de um conceito: ao contrário do que possa parecer comum, Baxandall defende uma história da arte que se atenha as singularidades de cada caso e tome cuidado ao usar generalizações para períodos, sociedades ou mesmo para definir a vida toda de um artista. “O que nos interessa descobrir, antes de tudo, são instrumentos de diferenciação, mas isso não quer dizer que as explicações não possam ser reescritas numa fórmula generalizadora” (2006, p. 46). Uma obra (e a linguagem que usamos para entendê-la) é testemunho apenas de si

mesma, ainda que possamos ampliar, não sem perdas de complexidade e exatidão, algumas das afirmações que fazemos para ela.

As próprias armadilhas das palavras – a sua tendência a serem generalizantes e imprecisas quando tentamos descrever uma obra ou mesmo o efeito dela sobre nós – é que fazem a crítica inferencial um exercício de duas vias. Os conceitos e o texto explicam o quadro, mas, ao mesmo tempo, são explicados pelo quadro: ambos completam o sentido um do outro para desfazer as imprecisões que contêm – a palavra só perde o poder de generalização quando faz referência e é tomada a partir da singularidade de uma obra que, por sua vez, é que mobiliza em nós determinados conceitos e palavras.  

“A circularidade e a imprecisão potencial da narrativa não me parecem ser um defeito importante, desde que reconhecidas. Há uma afinidade ou homologia entre os fatores reunidos em minha narrativa e a descrição propriamente dita da ponte [do Rio Forth], sendo ambas uma representação verbal que se articula por meio de conceitos. Sem isso não se poderia explicar coisa alguma, pois é essa homologia que nos permite fazer aproximações, ainda que toscas, entre um conceito representacional e outro, bem como entre o contexto geral dos fatos e os itens de nossa geração” (Baxandall, 2006, p. 70).