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1. Os quadrinhos como narrativa: a estética da sequencialidade

1.5 Laerte: obra em progresso

Figura 13 – Piratas do Tietê, 16 de abril de 2005

Se os dez maiores quadrinistas do Brasil fossem intimados a escolher o mais inventivo dos quadrinistas em atividade do país, provavelmente nove deles apontariam o nome do autor paulista Laerte Coutinho – e a exceção seria o próprio Laerte, que jamais se escolheria. A brincadeira é um exagero, mas não sem retrato na realidade: é só notar que o quadrinista e chargista Angeli não se furta a associar o nome do colega ao adjetivo genial7 e o quadrinista André Dahmer, de uma geração mais nova, costuma chamar Laerte de Deus e até criou um seção periódica no seu site intitulada “Laerte monumental”, com tiras do autor8.

Apesar de ter se tornado quase uma unanimidade na crítica recentemente, Laerte começou sua trajetória ainda no início da década de 1970, com fanzines como a revista “Sibila” e, posteriormente, fundou a revisa Balão com Luiz Gê em 1972. Já em 1974 e 1975, estava envolvido com a produção de cartuns e quadrinhos engajados, fazendo campanhas para o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e protestando em defesa dos presos políticos no País (Laerte, 2012). A partir do final dessa década, no entanto,        

7 Perguntado sobre se conhece algum gênio pela Trip, depois de negar se considerar um, Angeli disse: “O

Laerte é gênio”. Disponível em: <http://revistatrip.uol.com.br/revista/191/paginas-negras/angeli/page- 3.html>

8 Ver “Laerte Monumental da Semana”, disponível em

ele passou a produzir em uma escala maior, trabalhando no jornal do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo, em São Paulo. Ali pegou um personagem já existente, João Ferrador, e o transformou em um símbolo didático e político da luta dos operários do interior paulista.

É só em 1979 que Laerte vai realizar seu primeiro trabalho com Angeli e Glauco, nomes que, junto com ele, seriam apontados como os principais artistas dos quadrinhos da década de 1980. Estabelecido no cenário dos quadrinhos, chegou a fundar, ainda nos anos 1980, a Circo Editorial, editora que bancou as principais publicações alternativas em quadrinhos da década, com o velho companheiro de empreitadas Luiz Gê. Em 1986, já bem mais ligado à contracultura e ao desbunde dessa época do que ao cartum politizado, colaborou com as revistas de amigos, como a Chiclete com Banana (Angeli) e a Geraldão (Glauco), publicadas pela Circo (Coutinho, 2012). Também com os dois, criou as histórias de Los Três Amigos, obra de humor com referências autobiográficas que transformava seus autores em personagens em enredos que misturam novelas mexicanas com a estética do velho oeste, por exemplo.

Foi em 1990, depois do sucesso da sua própria revista, a Piratas do Tietê – nome dos seus personagens mais famosos, piratas urbanos que habitam o poluído Rio Tietê, em São Paulo –, que chegou a ser convidado para escrever tirinhas diariamente para a Folha de S. Paulo (Coutinho, 2012). Lá, provou ser um dos principais autores de histórias em quadrinhos de humor para adultos, criando personagens como o Super- Homem brasileiro e pobre, o Overman, que não tem uma identidade secreta; o seu amável Deus, demasiadamente humano; o alter-ego Hugo, por meio do qual viria muito depois tematizar a sua transgeneridade; o casal libidinoso Gato e Gata; e Fagundes, o maior bajulador do mundo; entre outros mais ocasionais. Durante esse período, ainda conciliou o trabalho como quadrinista com a escrita dos roteiros do programa TV Pirata (e, posteriormente, do infantil TV Colosso).

Figura 14 – Piratas do Tietê, 17 de fevereiro de 2010

É a partir de 2004 que seu trabalho começou a dar uma guinada. Até ali, Laerte era um humorista diferenciado, que abusava de tiradas surreais e, por exemplo, da meta- linguagem. Público e crítica, acostumados com as tradicionais tirinhas de humor dos jornais impressos brasileiros e do próprio autor, muitas vezes manifestaram estranhamento em relação a essa nova fase do autor na Folha de São Paulo, que ele mesmo define como uma “crise” e que contou com reações positivas e negativas. Laerte conta:

“As primeiras insatisfações surgiram em 2001 ou 2002, no vácuo de uma tempestade maior que causara o fim do meu terceiro e último casamento. Pouco depois, em 2004, o incômodo cresceu e resolvi abdicar de vários elementos que marcavam minha trajetória. Abandonei personagens famosos, como o Overman, os Gatos e os Piratas do Tietê, certo tipo de humor, menos sutil, e a preocupação com a linearidade das histórias. Iniciei, ali, uma fase mais ‘filosófica’, que muitos intitulam de nonsense e que ainda me caracteriza” (Coutinho, 2010a, destaque do autor).

A primeira consequência dessa mudança foi o cancelamento da publicação da série Piratas do Tietê nos jornais Zero Hora e Tribuna de Vitória, sob alegação de que ela trazia obras estranhas, herméticas e que os leitores achavam os trabalhos “estranhos” (Coutinho, 2010b). O ponto é que, pelo próprio discurso do autor, parece clara uma maior preocupação autoral nesta produção recente, que busca escapar de uma fórmula humorística do gênero. Laerte conta na entrevista:

“[E]u tive o problema com o humor porque eu percebi que esse modo de fazer humor tinha virado uma estrutura mental de natureza viciosa e que eu precisava quebrar. Fazer uma piada, com o correr do tempo, vai virando um caminho mental, uma trilha, que você nem questiona” (Coutinho, 2010b).

Ainda que seus discursos sejam quase inteiramente auto-reflexivos, a negação de construção de personagens fixos e o abandono do humor – apenas dois dos traços mais

marcantes da nova produção do quadrinista – são reações que vão contra o que mais é produzido no formato das tirinhas. Paulo Ramos, por exemplo, no artigo Tiras livres:

um gênero em processo de consolidação, destaca Laerte como o precursor de um novo

gênero, que se diferenciaria das tiras de humor ou aventura por sua liberdade temática e narrativa. Outros nomes, como os irmãos Gabriel Bá e Fábio Moon e o argentino Liniers, ambos na Folha de São Paulo, e Rafael Sica, em seu blog, seguiriam um caminho parecido, com resultados diferentes – naturalmente. Para Ramos, Laerte produz obras de “temática livre, não humorística, quase pensatas ou crônicas construídas no limitado espaço da tira” (Ramos, 2011).

Também na entrevista à revista Vice, Laerte mostra como essa questão lhe foi apresentada.

“Lembro de uma entrevista do Chico Buarque que foi decisiva. Ele disse que a canção era uma linguagem típica do século XX, e que os tempos estavam mudando, e que novas direções estavam se apontando. E eu transportei para a minha área e fiquei pensando que é muito possível isso no quadrinho” (Coutinho, 2010c).

Assim, ainda que não expresse explicitamente uma busca por um novo gênero narrativo dentro do formato de tirinhas, ele parece deixar implícito que, assim como a canção é uma convenção decadente, a fórmula de humor de suas tiras também estava desgastada – continuaria existindo, mas, artisticamente, era preciso questionar seus limites, procurar novas possibilidades.

É bom ressaltar que a grande parcela da atenção da popularidade que Laerte vem ganhando tem relação também com o fato de ter vindo a público falar de sua transgeneridade – em um primeiro momento, o escritor se assumiu como crossdresser, termo que viriam a rejeitar posteriormente por seu elitismo, que supunha um “travesti de classe média – em uma entrevista para a revista Bravo! de 2010. Em certa medida, como ele mesmo já colocou, esse questionamento dos limites dos gêneros tem um paralelo com a busca por fugir também das fórmulas prontas nas narrativas em quadrinhos. Apesar de ser um tema tão importante quanto sua obra, a transgeneridade do autor, espécie de estetização de si mesmo a partir do feminino e do discurso sobre as amarras dos gêneros, no entanto, será um tema que só será tratado neste trabalho quando puder iluminar a análise sobre a sua obra.