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Tiras em quadrinhos: narrativas da síntese

1. Os quadrinhos como narrativa: a estética da sequencialidade

1.4 Tiras em quadrinhos: narrativas da síntese

Dentro do universo amplo que são as HQs, um dos primeiros formatos a se estabelecer foi o das tiras em quadrinhos. Desde o início, sua formatação obedeceu a uma demanda editorial dos jornais: a padronização do formato de um retângulo massificou a forma e permitiu que autores pudessem criar uma história que fosse publicada em vários jornais ao mesmo tempo, por exemplo. Nas palavras do autor

espanhol Román Gubern, as tiras em quadrinhos podem ser descritas como uma estrutura

“de montagem horizontal, peculiar de certos comics, que constitui uma unidade de publicação e que se caracteriza por (...) constituir uma narração completa ou seriada. (...) [A]s tiras cômicas expõem uma narração completa (na verdade, uma gag) em cada tira, enquanto as tiras de aventura formam um episódio que continua no número seguinte” (apud Fontanta, 1996, p. 91).

Segundo Paulo Ramos (2011b), a popularização das tiras em quadrinhos foi ampla e mundializada pouco após sua adoção nos Estados Unidos no início do século 20. O autor também destaca o papel da padronização do formato para defender que as tiras em quadrinhos terminam funcionando como um gênero dentro da linguagem das HQs. Para ele, “o modelo horizontal foi o padrão adotado pelos jornais para adaptar a história ao tamanho da página. A tira ocuparia o espaço de algumas colunas da folha. A padronização facilitava a venda das histórias” (Ramos, 2011a, p. 91). Dentro das tiras cômicas e de aventura, foram desenvolvidos os subgêneros das kid-strips (para crianças), girl-strips (para garotas), family-strips (sobre a vida familiar) e funny-animals (em que há a humanização de personagens animais) (Ramos, 2010, p. 85).

Ainda segundo Ramos, as tiras de aventura se tornaram escassas ao longo do século 20, com raras exceções. O gênero cômico, portanto, passou basicamente a ser o padrão obrigatório do formato, ao ponto das expressões “tirinhas” e “tiras cômicas” passaram a ter quase o mesmo significado na mente do leitor. Ainda para o acadêmico brasileiro, existe uma espécie de acordo tácito estabelecido pelo autor e pelo espaço com o leitor, que “tende a esperar a piada no desfecho da história que lê nos jornais” (Ramos, 2010b). Entre as características que ele aponta para o gênero estão: a já citada forma retangular; o uso de poucos quadrinhos – normalmente entre um e quatro –; a presença de imagens desenhadas, ainda que existam autores que se utilizam de fotografias; a tendência do nome do autor e título da série aparecerem em cima da tirinha, quando publicadas em jornais; a existência de personagens, sejam eles fixos ou não; o predomínio de quadrinhos narrativos; o viés cômico; o desfecho inesperado; a existência de uma história com começo e fim ou, pelo menos, com um antes e um depois (Ramos, 2007, p. 285-286).

A análise de Ramos cria uma tipificação dos elementos das tirinhas a partir de sua produção como um todo, mas sem entender que uma tirinha deixa de ser uma tirinha ao desobedecer a uma dessas características – ou seja, é uma descrição geral, e não uma

prescrição do que são as tiras. Como gênero específico dentro dos quadrinhos, esse formato é talvez o mais simples (e talvez por isso, o mais popular), que enfrenta os limites da própria brevidade narrativa – é difícil, ainda que não seja impossível, buscar objetivos muitos maiores que uma história curta de desfecho inesperado em um espaço massivo como um jornal – e também da restrição de abordagens, em geral, restritas a aventuras juvenis, cada vez mais raras, e às gags humorísticas.

Há uma singularidade na análise de Ramos sobre as tiras em quadrinhos. Quando ele fala de tirinhas formadas por um só quadro, entra em conflito com a maioria das definições de quadrinhos expostas nesse trabalho. Para ele, ainda que a relação entre mais de uma imagem seja o conceito definidor dos quadrinhos – a exemplo de Groensteen –, as tiras de apenas um quadro não deixam de ser tiras por esse motivo.

“Entendemos que, em situações como a da figura [uma tirinha de apenas um quadro], temos tiras que estabelecem um diálogo entre gêneros, também chamado de intertextualidade intergenérica, no caso com a charge. Continuam sendo tiras, mas usam as características de outros gêneros dos quadrinhos que têm no humor um de seus elementos constituintes” (Ramos, 2011a, p. 99, destaque do autor)

Em relação ao papel das tiras nas histórias, Groensteen (2007, p. 57-59) faz uma análise mais voltada para a construção das páginas dos quadrinhos (um formato mais europeu que a tradição americana das tirinhas e dos gibis comerciais). Na visão do autor, as páginas tendem a se organizar em linhas narrativas, ou seja, em tiras, mesmo quando obedecem a um formato irregular. É nessa micronarrativa dentro de uma página que um quadro traça sua relação imediata de solidariedade icônica, que pode ser reforçada a partir da relação com outros momentos da página (ou mesmo da narrativa). O problema das tiras é que, principalmente em um contexto isolado (e não, por exemplo, em uma coletânea de tiras), elas não podem fazer com frequência essa articulação narrativa com elementos anteriores da história – suas possibilidades de referência a dados que o leitor já viu são limitadas. É por isso que os personagens e universos de narração (um bairro, uma casa, uma escola) fixos são tão frequentes nas tiras, funcionando como uma das formas de fazer o leitor frequente das tiras reconhecer nelas elementos comuns de uma narrativa maior, ainda que ela não aconteça linearmente e pareça nunca se encaminhar para um fim em si. Sobre esse contexto maior criado por uma página ou por uma série deles, Groensteen afirma:

“As articulações semânticas da história me permitem identificar e delimitar um segmento da história de qualquer tamanho, caracterizado pela unidade de ação e/ou espaço. A sequência [a tira] permite-se ser

observações e inferências, produzem um sentido global que é explícito e satisfatório” (Groensteen, 2007, p. 111, tradução nossa).

Esse contexto global é ausente das tirinhas, que tendem a escolher situações de compreensão instantânea e de simplicidade explicativa para ilustrarem suas histórias – o que dificultou, ainda mais em um contexto comercial como os de jornais e revistas, o desenvolvimento de obras mais ousadas desse gênero.