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2.1 Críticas e concordâncias de Wallon às teses de Piaget sobre a origem do pensamento simbólico

Agora que já retivemos as principais teses que se encontram no livro Do ato ao

pensamento, vejamos qual o lugar dado por Wallon para a teoria de Piaget.

Embora Piaget seja um dos autores mais comentados e citados por Wallon no decorrer de todo o livro (Cf. Anexo 12), menções a este autor encontram-se situadas, mais especificamente, na primeira e na última parte.

Wallon é contrário ao uso do recurso post hoc propter hoc44. As teorias que

procuram explicar os fatos psicológicos através do recurso da descrição da seqüência destes mesmos fatos não lhe contenta. Para Wallon, seu maior representante, à época, era Piaget.

Conforme aos dados da observação, e para satisfazer as novas necessidades da psicologia, Piaget substitui as sensações pelos movimentos como primeiros elementos da vida psíquica. Ele acreditou ser possível assimilar prioridade cronológica e prioridade constitutiva; ele fez daquilo que surge no início como a substância ou a causa daquilo que se elabora em seguida. Deste modo, resolveu algumas dificuldades e deixou subsistir outras e ainda suscitou outras novas. Com as sensações a consciência está dada no ponto de partida, senão como sujeito, ao menos como conteúdo. Com os esquemas motores que tomam seu lugar nas explicações, será necessário justificar sua aparição (Wallon, 1942/1970: 27-28 – tradução nossa)

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Aquilo que vem em seguida, logo por causa daquilo. A fórmula pela qual designava, na escolástica, o erro que consistia em tomar por causa o que apenas é um antecedente no tempo. (Houaiss, 2002).

Vemos aqui uma critica ao postulado da continuidade funcional a qual advoga abertamente Piaget (1936; 1937; 1945). No entanto, fazemos notar uma incoerência na argumentação de Wallon quando procura assimilar a teoria piagetiana com a Psicologia da Consciência, também chamada por ele de Psicologia do Indivíduo. Ao admitir que Piaget propõe uma teoria onde a consciência não está dada desde o início ele, em parte, se contradiz, afinal, existe um momento no desenvolvimento, para Piaget, onde ela não está presente. Em parte, pois para Wallon a grande característica da Psicologia da Consciência é o tomá-la como elemento de explicação de todos os fenômenos psicológicos. Segundo Wallon, devido a sua escolha pela continuidade concretizada no desenvolvimento do esquematismo infantil, Piaget, cedo ou tarde, tem de admitir que a consciência está dada e é ela a fonte das explicações.

Baseando suas críticas em O nascimento da inteligência na criança (1936) e em A

construção do real (1937) únicos livros de Piaget citados no decorrer do texto, Wallon

procura mostrar o quanto, em seu entender, a teoria do desenvolvimento psicológico que se dá através de uma seqüência de esquemas que se vão complexificando e se implicando mutuamente, não consegue dar conta da totalidade do fenômeno estudado. Ele se pergunta:

De onde viria deste sistema de movimentos simplesmente coordenados entre si, sua qualidade de pessoa? (Wallon, 1942/1970: 28 – tradução nossa)

E ainda:

Mas a comparação de um esquema motor, simples manifestação da atividade, à totalidade de um ser vivente é aceitável? (Idem: 29 – tradução nossa)

São perguntas direcionadas à compreensão do funcionamento do sujeito psicológico e, portanto, à Psicologia. Wallon não se relaciona com Piaget como se este fizesse epistemologia, não é deste ponto de vista que interroga a teoria piagetiana.

Critica em Piaget, também, sua concepção da relação entre o biológico e o intelectual. Em seu entender, Piaget propõe uma coincidência exata entre o biológico e o intelectual, a ponto de utilizar-se da explicação de um para explicar o outro. Trata-se de um reducionismo, segundo Wallon. Buscando dar uma resposta para o conflito aposteriorismo e apriorismo45, Piaget, ainda no olhar de Wallon, negaria as

45 A distinção entre Apriorismo – tudo já está dado, as principais categorias (tempo, espaço, identidade etc.), pertencem

já ao quadro intelectual do homem – e seu oposto, o Aposteriorismo – todas as categorias são dadas a posteriori - é uma distinção que se faz presente na obra do filósofo alemão Emmanuel Kant (1724-1804). Noções mais amplas mas que preservam a equivalência são, respectivamente, Inatismo e Empirismo.

especificidades do fenômeno humano.

Compreendendo o desenvolvimento cognitivo através da complexificação dos esquemas, mas uma complexificação que só pode fugir de um fechamento em si através do aparecimento de “coordenações fortuitas”, a teoria piagetiana, segundo Wallon, estaria deixando de lado que todos os atos e comportamentos infantis respondem já a uma maturação funcional bem como uma direção específica: a criança dirige-se, em seu crescimento, para o homem adulto. Assim, para Wallon, não há espaço para coordenações ao acaso.

(...) esta anterioridade nas crianças de certas associações sobre outras não é imputável a encontros puramente fortuitos. O momento onde a mão, entrando dentro do campo visual, retêm o olhar coincide, segundo Tournay, com a mielinização do feixe piramidal, ou seja, com o momento onde o feixe das fibras motoras que partem do córtex cerebral tornam-se aptas a funcionar. Sem contestar a função da aprendizagem e das circunstâncias, parece evidente que, sob o estabelecimento de conexões entre dois campos sensório-motores, há conexões anatômicas chegando a maturidade. É sobre este fundo que devem se desenvolver os interesses da criança, em relação com os níveis sucessivos de seu comportamento.” (Wallon, 1942/1970: 37 – tradução nossa)

Ao que parece, Wallon reprova em Piaget o seu não uso ao recurso à gênese neurológica dos comportamentos humanos. Reprova, igualmente, na direção inversa, a compreensão de que a linguagem é um mero desdobramento dos esquemas iniciais. Para Wallon, como já vimos, a linguagem só pode ser explicada como recurso ao social, ela tem sua razão de ser no intercâmbio do sujeito e seu meio.

No entender de Wallon, Piaget reduz a vida mental, confunde descrição com explicação causal e conduz a fatores causais individuais processos psicológicos que só podem ocorrer em situações sociais, tais como o pensamento e a linguagem:

Transformando uma descrição em explicação, ele dá a evolução psíquica uma base parcelar e demasiado estreita. Ele a compõe de elementos de início distintos que só teriam que se juntar e se assimilar entre eles, todo o edifício da vida mental podendo resultar desta única operação. Assim, dispersa sua unidade fundamental na pluralidade dos aspectos ou das fases que a manifestam, tomando-as por pedaços de onde ela só teria que surgir. Mas ele não pode dar conta desta unidade mesma, nem dos enriquecimentos que ela deve às diferenciações funcionais e a

evolução orgânica que lhes condiciona. Ao mesmo tempo ele conduz aos fatores puramente individuais da motricidade poderes como o uso do símbolo e a expressão do pensamento, que só podem pertencer a um ser essencialmente social, e ele estreita de maneira inadmissível os fundamentos da vida mental. (Wallon, 1942/1970: 45 – tradução nossa)

Não obstante, Wallon concorda que há uma seqüência genética entre inteligência sensório-motora ou das situações e inteligência representativa. Mas a explicação desta gênese é totalmente diversa para um e para o outro. Enquanto que para um há continuidade – garantida pela seqüência dos esquemas – para o outro há descontinuidade, devido à oposição que se estabelece entre o ato motor e o ato mental.

Wallon concorda, igualmente, que a imitação é uma acomodação do sujeito ao objeto real, um deixar-se moldar pelo objeto, um impregnar-se pelo real. Mas, precisando os conceitos, em Piaget essa impregnação se dá desde os primórdios, em Wallon a imitação é um fenômeno que só ocorre em conjunto com a representação, ela exige um grau mínimo de representação para que possa se produzir em gestos. Requer, do mesmo modo, um desenvolvimento do eu, pois não se imita qualquer coisa, mas algo que tem interesse e que se destaca no contexto social ao qual pertence a criança. A imitação para Wallon possui também um componente expressivo (comunicar de si, de seus estados de ânimo), comunicativo e representativo. Nesta distinção está aquela, mais ampla, sobre a linguagem. Wallon tende a ver todos os comportamentos lingüísticos como pertencentes a conjuntos e não os consegue separar ou analisá-los em partes distintas.

No entanto, certamente por não ter tido ainda contato com a forma mais acabada da teoria piagetiana sobre o lugar da imitação – que só aparecerá mais tarde, em 1945 -, na passagem entre uma inteligência sensório-motora e outra representativa, Wallon não apresenta suas críticas ou dúvidas com relação especificamente à teoria de Piaget sobre este assunto. É possível afirmar a partir da sua própria proposição teórica, e do lugar que ela atribui à imitação na passagem entre as duas inteligências, que, nesse ponto, os dois teóricos mais concordam do que discordam (Jalley, 2006; Zazzo, 1978).

Enfim, o lugar que ocupa Piaget na obra Do ato ao pensamento (1942) de Wallon é o de representante de uma psicologia que quer explicar a gênese das principais funções psicológicas sem recurso seja aos componentes maturacionais, seja aos sociais. Os pontos de partida e de chegada são, deste modo, o indivíduo, a consciência individual.

Nada mais oposto a uma psicologia como a que se configura agora a de Wallon, que compreende o homem como geneticamente social. No olhar de Wallon, a psicologia de Piaget não dá conta da totalidade do fenômeno humano.

Mantendo tais diferenças como pano de fundo, poderemos notar, no entanto, que a explicação que dá Wallon da passagem entre um inteligência motora ou prática e outra representativa e simbólica não difere, substancialmente, daquela proposta por Piaget, como veremos mais adiante.

Passemos agora para uma análise semelhante com os dois textos selecionados por nós sobre esta temática, em Jean Piaget.

Cap. 3 - A formação do símbolo na criança - a preparação pelo sensório-