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II Parte O debate e a controvérsia sobre a origem do pensamento simbólico

Nesta segunda parte gostaríamos de aprofundar a compreensão do debate entre Piaget e Wallon sobre a origem e a formação do pensamento simbólico seguindo mais de perto seu intercâmbio teórico, de modo especial, através de três textos: Do ato ao

pensamento (1942/1970); A formação do Símbolo (1945) e A função da imitação na formação da representação (1962).

Piaget e Wallon foram dois eminentes representantes da Psicologia Genética a psicologia que põe ênfase no estudo da gênese dos fenômenos psicológicos. Assim, o estudo da infância e o progressivo desenvolvimento das funções psicológicas passa a ser a marca central desta perspectiva psicológica.

Segundo Cahoy, Ohayon e Plas (2006) o século XX foi o século da infância, onde inúmeras ciências se uniram para um programa coletivo, o estudo aprofundado da criança.

Em 1900, a feminista sueca Ellen Key escreve uma obra intitulada 'O século da criança'. O psicólogo genebrino Édouard Claparède (1873-1940) toma este como mote de seu trabalho e declara: 'O século que se inicia será o século da criança'. A primeira metade do século XX e particularmente os anos 1920 e 1930 verão, com efeito, a realização de tal profecia. (Cahoy, Ohayon e Plas, 2006:148 – tradução nossa)

Mas para que se chegasse a este programa coletivo um longo caminho foi traçado no decorrer das últimas décadas do século anterior. A preocupação com a evolução ou a gênese, ao que parece, tornou-se uma forte preocupação desde o final do século XIX até meados do século XX , não só na biologia mas, igualmente, na filosofia, na sociologia e na psicologia (Peterman, 2000). A evolução humana poderia ser acompanhada de várias formas, seja através de dados pré-históricos, seja antropológicos ou no estudo da evolução que se processa na criança. Com efeito, a infância vinha sendo objeto de atenção por parte de muitos estudiosos - alguns exemplos são o fisiologista alemão Willian Preyer , 1842-1897; o psicólogo americano J. M. Baldwin, 1861-1934; o psicólogo francês A . Binet, 1857-1911; o historiador francês H. Taine, 1828-1893; o naturalista inglês C. Darwin, 1809-1882; o filósofo alemão Tiedmann, 1748-1803. Todos estes autores publicaram livros apresentando o desenvolvimento de alguns de seus filhos (Reuchlin, 1959). A psicologia da criança vai, deste modo, se destacando deste conjunto

de estudos e culminando, no início do século XX, em estudos específicos e em uma área mais ou menos homogênea através de seus métodos (principalmente a observação) e do objeto, no caso, a evolução ontogenética (Maury, 1991). Some-se a isso as condições econômicas e sociais que, aos poucos, focavam a atenção para um maior cuidado com a infância e teremos os ingredientes básicos para a afirmação presente na citação acima.

É também na mesma direção que deveríamos compreender a discussão das teses piagetianas na seção de maio de 1928 da Sociedade Francesa de Filosofia. Ali, como já sinalizado, Piaget irá apresentar sua teoria sobre os três sistemas da inteligência infantil. É a primeira vez que se tem a infância como pano de fundo das discussões filosóficas nessa Sociedade41.

O primeiro dos sistemas de inteligência sugeridos por Piaget (1928) é o da inteligência concreta, própria do bebê, no qual observa-se que este já não se limita por seus reflexos ou instintos, mas responde às solicitações do ambiente de forma a resolvê- las de forma prática mas onde se pode facilmente observar um esboço de intencionalidade e de planejamento. Contudo, é sempre uma resposta concreta, imediata, na ausência de qualquer representação. Piaget ainda descreve a inteligência racional ou representativa, a que utiliza-se de um sistema lingüístico e simbólico e, como intermediário entre estas duas, a inteligência egocêntrica.

Eis a novidade que Piaget busca inserir no campo científico do início do século XX. A mentalidade infantil não é quantitativamente diferente daquela do adulto mas, qualitativamente diferente. Estamos diante, portanto, de uma irredutibilidade entre o pensamento infantil e o pensamento adulto.

Na mesma seção, uma outra intervenção às teses de Piaget, que não aquela de Wallon, nos chamou atenção. A do psicólogo Henri Delacroix.

Delacroix concorda com Piaget quando este descreve a inteligência infantil como um resultado entre os três sistemas: motor, egocêntrico e racional. Acrescenta que, mesmo o adulto, diante de situações difíceis também porta-se segundo a mentalidade infantil. A diferença entre o adulto e a criança está, no seu entender, na dosagem diferente de cada um destas inteligências. Por isso, "não há uma mentalidade infantil essencialmente diferente daquela do adulto". Admite ele que exista o que Piaget denominou inteligência motora, mas se pergunta sobre os

41 A Sociedade Francesa de Filosofia fora fundada em 1901, por Léon Xavier, André Lalande e Léon Brunschvig. Até o

final da década de 1920, a conferência de Piaget havia sido a primeira que tratava, exclusivamente, da temática infância, embora temas como linguagem e inteligência já haviam sido abordados. (Cf.

"(...) elos intermediários entre tal inteligência totalmente objetiva e aquele pensamento simbólico. Não existiria, previamente à linguagem e ao pensamento propriamente dito, um poder de organização motora já inteligente, subestrutura da razão, onde a razão e o pensamento estejam já pré formados?" (Delacroix in Piaget, 1928: 115 - tradução nossa).

Tal passagem nos chamou atenção por dois motivos: primeiramente, ela indica que nesta época, final da década de 1930, a psicologia ainda estava se apropriando da tese da irredutibilidade entre a mentalidade infantil e àquela do adulto. Delacroix tem mesmo certas reservas para admitir que a diferença entre as duas mentalidades seria apenas de ordem qualitativa. Mas, um segundo aspecto da fala de Delacroix indica, para nós, um elemento importante em nossa discussão: não existira, previamente à linguagem, um poder de organização motora já inteligente? Tal poder, supôs Delacroix, seria como que uma subestrutura da razão. Estaria falando Delacroix de uma intuição simbólica? Ou seja, um conhecimento não voluntário, consciente ou derivado de um raciocínio, que servisse de base para a razão e o pensamento simbólico posteriores, mas que já se encontrasse no pensamento anterior?

Em certa medida, Delacroix estava apontando a direção que seguiria toda a psicologia genética européia, pelo menos até metade do século XX: investigar como e por quais meios se dá a passagem entre um pensamento concreto e outro representativo (Galifret-Granjon, 1981). Os textos que iremos discutir adiante representam o esforço de seus autores para, em certa medida, responder à questão de Delacroix.