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Por que buscar entender um debate ocorrido há mais de 60 anos? Qual a importância deste debate para a psicologia contemporânea e que vantagens haveria em compreendê-lo para além de suas aparências? Haveria contribuições para outros domínios que não o da psicologia?

A princípio, porque este debate não se encontra ainda totalmente descrito e analisado estando ausente, igualmente, na maioria dos manuais de História da Psicologia, de modo especial naqueles de origem anglo-saxônica. Um debate que tomou quase quatro décadas e que, embora circunscrito às obras de cada autor, discutiu inúmeros temas – a relação pensamento versus linguagem, desenvolvimento versus aprendizagem, o lugar da cultura e do social na explicação do desenvolvimento, a definição de metodologia específica para o estudo da Psicologia Infantil, as relações Psicologia versus Educação etc. - influenciando, direta ou indiretamente, a Psicologia Geral de sua época, ou seja, as concepções gerais do que vem a ser o objeto e o método da Psicologia e, igualmente, com decorrências para a Psicologia Genética de matriz européia.

Além disso, no que diz respeito ao conteúdo específico do debate - a origem e

desenvolvimento do pensamento simbólico -, apesar de se terem passado várias décadas, a psicologia contemporânea ainda não possui respostas estáveis sobre o que é, quais as suas características e como se constitui o pensamento simbólico ou representacional (Deloache, 2005; Pascual-Leone, 1997; Vila, 1996). Tal forma de pensamento é, ao que tudo indica, prerrogativa da espécie humana (Enesco e Delval, 2006; Tomasello, 2006; Deloache, 2005, 1996; Trevarthen, 1987; Piaget e Inhelder, 1966; Paulus, 1945; Wallon, 1942). Correlações deste com a linguagem oral, o pensamento lógico, a imaginação, a consciência, a memória, o jogo e a imitação são, igualmente, notórios. Todos esses temas estão presentes quando Piaget e Wallon propõem suas teorias e suas contribuições, até hoje, tidas como fundamentais para a compreensão de muitos desses fenômenos psicológicos (Zazzo, 1975; Gruber e Vonèche, 1995).

Outro fato é a importância das duas obras para a educação, especialmente para os movimentos educacionais identificados com o escolanovismo e com perspectivas educacionais atuais, como o construtivismo, sócio-construtivismo e o cognitivismo. Tanto Piaget quanto Wallon interessaram-se em aportar à educação contribuições e discussões decorrentes de suas psicologias (Cf. Piaget, 1969; Wallon, 1975). Compreender a interlocução entre estes dois autores nos possibilita um olhar que busque entender melhor suas postulações teóricas e as possíveis decorrências para a prática educativa contemporânea.

Por fim, por se tratar de dois eminentes representantes de uma proposta de psicologia que se caracteriza pelo foco na gênese (ontogenética, filogenética e sociogenética)12 das funções psicológicas como forma de explicação e entendimento

dessas mesmas funções, Piaget e Wallon podem ter muito a contribuir para a psicologia contemporânea, especialmente quando esta parece esquecer-se dos seus antecedentes teóricos, fato que é mais notório com a obra de Wallon, cujas contribuições são pouco retomadas, especialmente pela psicologia norte-americana (cf. Jalley, 2006; Van Der Veer, 1996; Zazzo, 1975).

Todavia, poder-se-ia dizer que esse debate repete, em certo grau, aquele que se

12 A psicologia genética, ou a psicologia que se ocupa da origem dos processos psicológicos e que acredita que apenas

essa origem garante uma compreensão adequada do fenômeno psicológico, nasce a partir da síntese entre o evolucionismo de Darwin, então nascente, e o funcionalismo de Willian James, efetuada por G. Stanley Hall (1844 - 1924) ainda no final do século XIX. De fato, Hall, que foi o responsável pela fundação da Associação Americana de Psicologia, editou em 1893 o Journal of Genetic Psychology, onde foram acolhidos os trabalhos psicológicos que partilhavam desta concepção teórica. Tal publicação continua a ser editada nos dias atuais. Contudo, nem Wallon ou Piaget publicaram quaisquer de seus textos neste periódico que, ao que parece, não possuía grande divulgação na Europa do início do século XX. Hall é o responsável pela divulgação e adaptação da tese de Haeckel para a psicologia: “a ontogenia, recapitula a filogenia.” Em termos da psicologia genética de Stanley Hall, isso significa que o desenvolvimento psicológico da criança deve passar por todas as fases pelas quais passou a psicologia da espécie.

estabeleceu entre Vygotsky e Piaget (Tryphon & Vonèche, 1996; Castorina et ali, 1995) e sobre o qual já se avançou, ao ponto de mostrar que o recurso à comparação entre os dois autores parte de um falso pressuposto, o de que ambos possuíam pontos de partida e de chegada semelhantes: a criança e a psicologia. Quando se percebeu o quão inconveniente era comparar um projeto de psicologia (representado por Vygotsky) com um projeto de epistemologia (representado por Piaget), arrefeceu-se o debate e passou- se para uma nova etapa, na qual se buscava a superação dos respectivos modelos. Vale ainda lembrar que Piaget só se manifestou tardiamente a respeito das críticas e sugestões levantadas por Vygotsky à sua teoria, embora, agora o sabemos, ele tivesse conhecimento dessas críticas desde a década de 1930 (Van der Veer, 1996).

Contudo, se Piaget não se interessou ou não teve tempo para endereçar respostas às críticas levantadas pela sociogenética de Vygotsky (Van der Veer, 1996; Piaget, 1990), podemos vê-lo, por outro lado, respondendo a críticas semelhantes por parte do colega Wallon. Não deixa de ser curioso, portanto, que Piaget, com seu espírito disciplinado e obstinado com relação a seus objetivos, a ponto de sequer se dar tempo para reler seus próprios escritos (Bringuier, 1978), tenha se permitido responder a algumas das críticas construídas por Wallon com relação à sua teoria: o papel do social na teoria, a melhor delimitação dos conceitos, o estabelecimento de prioridades e objetos de investigação, a continuidade ou descontinuidade dos processos e estruturas psicológicas, tudo, ao que parece, já havia sido objeto de reflexão através do debate com Wallon.

É certo que os limites admitidos para uma correlação entre Vygotsky e Piaget (comparação entre psicologia e epistemologia) devem ser retomados quando se trata de Piaget e Wallon. Caso contrário, corre-se o risco de assimilar a proposta epistemológica de Piaget à psicologia de Wallon, ou vice-versa. Fazendo isto, certamente chegaríamos a um impasse teórico que poderia ser resolvido de duas formas: 1- anulando uma das teorias em relação à outra, afirmando, assim, a melhor adequação de uma para a explicação dos fenômenos descritos, do que a outra. 2- propondo uma síntese teórica que se tornaria, deste modo, um híbrido e que, não sendo nem só psicologia, nem só epistemologia, acabaria por se mostrar inadequado à sobrevida no mundo real e concreto.

Nossa proposta, no entanto, não é reduzir uma teoria à outra. Tampouco compará- las como se tratassem de duas teorias de mesma natureza ou, ainda menos, buscar a influência de um autor sobre o outro.

Mantendo-se a certeza de que se trata de duas teorias distintas, mas que se encontram, em certos momentos, na discussão de temas específicos, procuramos estudar suas intervenções sem perder de vista seus distintos objetivos. A psicologia de Wallon pretendia dar resposta ao que é o homem e como ele se constitui enquanto ser biológico e social. A epistemologia de Piaget, que em certos momentos utiliza-se da psicologia como ciência experimental para a produção de conhecimentos que visam confirmar ou refutar seu projeto epistemológico, pretendia dar resposta ao que é o conhecimento no homem e, mais propriamente, como esse conhecimento progride desde estruturas simples às mais complexas, ou seja, até alcançar-se o conhecimento lógico- formal identificado pelo pensamento científico. Assim, o cuidado metodológico que se quer ter presente é o de lidar com as duas psicologias (a de Wallon e a de Piaget) sem perder de vista que eram instrumentos dirigidos a objetivos e a horizontes diversos. Não é legítimo, portanto, uma redução absoluta de uma teoria a outra. Por outro lado, uma aproximação levando-se em conta esses cuidados não só é legítima como desejável, uma vez que pode resultar um maior esclarecimento de ambas as teorias e, até mesmo, o encontrar pontos de convergência e divergência que façam avançar o estudo na área.