• Nenhum resultado encontrado

Eis os elementos definidores do conceito de debate aqui utilizado:

1- um debate, diferentemente de uma simples crítica, comentário ou julgamento de uma obra, exige, no mínimo, a existência de dois turnos (crítica e resposta a essa crítica). É preciso ter o cuidado de não considerar como debate, na Psicologia, livros de teóricos que mencionam outros autores. Um debate é, portanto, uma interlocução10.

2- um debate gira em torno de uma ou mais controvérsias que são teses, declarações lingüísticas com teor de axiomas e, desse modo, não redutíveis umas às outras. Tais controvérsias são entendidas por nós como o núcleo duro, o sol ao redor do qual gravitam os demais atos de interlocução e que, no seu conjunto, configurarão o debate

10 No entanto, temos de alargar um pouco mais o conceito de interlocução pois, pode haver diferentes níveis e

possibilidades da mesma. Por exemplo, quando Vygotsky (1934/1994) interpela, seguidamente, alguns dos primeiros escritos de Piaget e busca criticar alguns de seus entendimentos, encontramo-nos diante de um debate. Ainda que Piaget, à época, não tenha respondido voluntariamente às críticas de Vygotsky, seus escritos fizeram isso. Tratou-se, portanto, de uma interlocução exclusivamente teórica.

enquanto tal;

3- todo debate tem como fundamento algumas crenças: a) crença de que o intercâmbio de idéias (através da linguagem em ação), mais do que outros fatores, é fator de progresso na ciência; b) crença na possibilidade de acessar a compreensão total e fiel do argumento do interlocutor; c) crença numa transparência da linguagem;

4- o cenário no qual se desenrola um debate é, sempre, a comunidade científica de uma dada época, com seus paradigmas, formas de intercâmbio, valores etc.

A partir desses pontos, podemos caracterizar o debate como uma interlocução na qual estão presentes uma ou várias controvérsias. Para que haja um debate deve haver a crença no bom uso da razão e na transparência da linguagem, além de fatores intersubjetivos ou sociais dados pela comunidade na qual ocorre tal debate. Os debates são, desse modo, fruto da atividade humana e, como tal, objetos de natureza psicológica, social, econômica, lingüística, histórica etc.

Os debates e controvérsias podem ser instrumentos de grande utilidade para o historiador da ciência. Entendendo-os como objetos de natureza social e histórica, com características lingüísticas, pode-se buscar retratá-los e transcrevê-los, levantando material empírico que ajude a compreender as transformações intelectuais de uma dada época. Pode-se, ainda, levantar uma série de questões concernentes à complexa intersecção dos aspectos filosófico, institucional e da tradição do trabalho no desenvolvimento de uma dada ciência ou disciplina.

A história da ciência pode utilizar-se dos debates como objeto e instrumento de investigação da sua disciplina, mas deve ter em vista que, por sua natureza, ou seja, por ser um fenômeno humano e, portanto, histórico, não é possível esgotar e dar conta da totalidade de fatores envolvidos em um debate. Isto, no entanto, não deve ser motivo para uma avaliação negativa dos debates como objeto da história das ciências. Ao contrário, como se pode ver através de inúmeros exemplos11, o acompanhamento e a 11 Apenas para citar alguns exemplos, Gould (1999), ao fazer uma leitura crítica sobre a história dos testes de

inteligência e as relações entre a biologia e a psicologia dos testes, mostra-nos que esta relação nunca foi totalmente harmoniosa, sem obstáculos ou na qual imperava a ética sobre todos os demais aspectos (cf. o caso de Sir Ciril Burt que omitiu e forjou dados para afirmar a superioridade do QI dos europeus quando comparados ao de outras culturas e raças). Dá-nos, assim, uma idéia de quanto a ciência é uma empreitada humana, estando influenciada por todos os fatores desta. Contribuição semelhante nos oferta Paolo Rossi (2001) que, ao historiar as origens da ciência ocidental a partir do século XIV, mostra-nos as muitas disputas, conflitos e conchavos que caracterizaram o surgimento e fortalecimento deste padrão (matematização, objetividade, distanciamento de todo obscurantismo na linguagem etc.) que se tornou, desde então, padrão da ciência contemporânea. Dentro da própria História da Ciência, temos os debates entre as teorias de Thomas Kuhn e Karl Popper, especialmente materializado no Colóquio Internacional de Filosofia da Ciência, ocorrido no Bedford College de Londres, em julho de 1971. Por fim, o livro de Hellman (1999) que quer nos mostrar que também a ciência e os cientistas “são suscetíveis de emoções humanas, que são influenciados pelo orgulho, cobiça, beligerâncias, ciúme e ambição” (p. 11). Condensa alguns dos principais debates constitutivos da

tentativa de se buscar uma compreensão mais global sobre um debate leva à descrição de uma ciência viva, próxima da que encontramos em nosso dia-a-dia (Hellman, 1999; Pongratz, 1998; Brožek, 1996; Latour, 1989). Por fim, a historiografia da psicologia tem se utilizado do estudo dos debates e controvérsias, compreendidos em uma perspectiva da historiografia internalista, como recurso para se compreender a complexa dinâmica de construção desta disciplina (Brožek; Massimi e Campos, 1996).

Quanto ao debate entre Piaget e Wallon sobre a origem e formação do pensamento simbólico ou representacional apesar de termos encontrado referências a essa discussão dispersas em diversos textos dos dois autores, nos pareceu bastante claro que seu auge, ou ponto crítico, constitui-se nas duas obras já mencionadas: A

formação do símbolo, por parte de Piaget, e Do ato ao pensamento, por parte de Wallon.

O texto de Piaget em homenagem a Wallon (Piaget, 1962) é entendido por nós como um desdobramento, do pensamento piagetiano, do debate travado na década de 1940.