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Cravelhal adicional em uma viola portuguesa (viola beiroa ou

Centro-Sul do Brasil. Como já abordamos na introdução, o termo viola por si só não identifica um determinado tipo de instrumento, visto que pode ser aplicado para vários tipos de instrumentos, inclusive para instrumentos de cordas friccionadas. Como estamos tratando do instrumento encontrado na região caipira do Brasil, parece óbvio que o instrumento, na necessidade de ser claramente identificado, receba a denominação viola caipira. De fato, assim o é pela maioria dos artistas do meio e por estudiosos do universo caipira. No entanto, temos encontrado outras denominações para este instrumento, como viola de dez cordas, viola

brasileira, viola de arame etc., na maioria das vezes evitando o termo caipira pelo preconceito

que esta palavra ainda carrega.

Ora, analisando estas outras denominações: viola de arame67 é adequada para designar todas as violas encordoadas com arame (cordas de metal), o que inclui a viola caipira; viola de

dez cordas, por sua vez, englobaria vários tipos de viola, por exemplo, as violas de samba machete e três-quartos do Recôncavo Baiano; viola brasileira nos remeteria a todas as violas

encontradas em nosso país: viola de cocho, viola de buriti, viola repentista, viola nordestina, viola de fandango, viola caipira e as violas de samba. Ou seja, sem dúvida, a denominação caipira é pertinente e, se a questão é a carga preconceituosa agregada a ela, buscamos esmiuçar o assunto e jogar luz no que tem sido feito para tirar do termo caipira significados negativos que nunca fizeram sentido, diga-se de passagem, no início do século XXI. Antônio Cândido (2001, p. 28) com propriedade já dizia: “Para designar os aspectos culturais, usa-se aqui caipira, que tem a vantagem de não ser ambíguo [...] e a desvantagem de restringir-se quase apenas, pelo uso inveterado, à área de influência histórica paulista.”. Nada mais preciso para caracterizar o instrumento que é o tema central desta tese – a viola caipira.

3.1 O caipira: sobre a história da palavra, preconceitos e novas representações

No Dicionário da Língua Portuguesa Novo Aurélio Século XXI, encontramos que o termo caipira é de origem controvertida, possivelmente oriundo da língua tupi, tendo como principal significado: “Habitante do campo ou da roça, particularmente os de pouca instrução e de convívio e modos rústicos e canhestros” (FERREIRA, 1999, p. 364). Como sinônimos, o

       

67 No CD que, recentemente, gravei com o título Viola de arame - composições brasileiras, o emprego da

denominação Viola de Arame foi pensando na construção de um repertório para todos os tipos de violas de arame daqui do Brasil e d’além mar.

autor enumera, alertando que alguns são regionais, uma boa quantidade de denominações68. Ou seja, de maneira geral, essas palavras são denominações para o homem rural brasileiro, sendo que várias delas revelam um caráter depreciativo formulado a partir de valores citadinos.

De acordo com J. L. Ferrete, para muitos filólogos, caipira é expressão de terminologia desconhecida, mas acrescenta, “Silveira Bueno, todavia, atribui o vocábulo à contração das palavras tupis caa (mato) e pir (que corta), no sentido completo de cortador de mato” (FERRETE, 1985, p. 21).

Sobre a denominação e o seu significado, “Já que mais do que tudo o nome é a janela da identidade” (BRANDÃO, 1983, p. 9), acrescentamos a definição de Cornélio Pires.

Por mais que rebusque o “etymo” de “caipira”, nada tenho dedusido com firmeza. Caipira seria o aldeão; neste caso encontramos no tupy-guarany “capïâbïguara”. Caipirismo é acanhamento, gesto de occultar o rosto: neste caso temos a raiz “Caí” que quer dizer: “Gesto do macaco occultando o rosto”. “Capípíara”, quer dizer o que é do mato. “Capiâ,” de dentro do mato: faz lembrar o “capiáo”, mineiro. “Caapi” – “trabalhar na terra, lavrar a terra” – “Caapiára”, lavrador. E o “caipira” é sempre lavrador. Creio ser este último caso o mais acceitavel, pois “caipira” quer dizer “roceiro”, isto é, lavrador. Sinonimos de “caipira” conheço apenas os seguintes – “Capiáo”, em Minas; “queijeiro” em Goyaz; “matuto”, Estado do Rio e parte de Minas; “mandy”, sul de São Paulo, guasca ou gáucho no Rio Grande do Sul; “tabaréo”, Districto Federal e alguns outros pontos do país; “caiçara”, no litoral de São Paulo e em todo o país, “sertanejo”. (PIRES, 1987, p. 209-210)

Como vemos, analisando a etimologia de palavras afins, Cornélio consegue abarcar um universo de significações que nos remete ao homem que lida com a terra e, assim como o entendimento de Sampaio, “o envergonhado, o tímido” (apud CASCUDO, 1984, p. 177), traços da personalidade deste homem.

Avançando um pouco mais na complexidade que o termo vai adquirindo, vamos às definições de um importante dicionário de Portugal. Em sua 2ª edição, o Diccionário

Contemporâneo da Língua Portuguesa traz para o vocábulo caipira a seguinte definição:

“constitucional (conforme, depreciativamente, o appelidava o realista, nas luctas de 1828-34). // (Minho) Avarento, sovina. // (Bras.) rustico; labrego; homem da roça ou do mato” (AULETE, 1925, P. 376).

       

68 araruama, babaquara, babeco, baiano, baiquara, beira-corgo, beiradeiro, biriba ou biriva, botocudo,

brocoió, bruaqueriro, caapora, caboclo, caburé, cafumango, caiçara, cambembe, camisão, canguaí, canguçu, capa-bode, capiau, capicongo, capuava, capurreiro, cariazal, casaca, casacudo, casca-grossa, catatuá, catimbó, catrumano, chapadeiro, curau, curumba, groteiro, guasca, jeca, jacu, macaqueiro, mambira, mandi ou mandim, mandioqueiro, mano-juca, maratimba, mateiro, matuto, mixanga, mixuango ou muxuango, mocorongo, moqueta, mucufo, pé-duro, pé-no-chão, pioca, piraguara, piraquara, queijeiro, restingueiro, roceiro, saquarema, sertanejo, sitiano, tabaréu, tapiocano, urumbela ou urumbeva (FERREIRA, 1999, p. 364).

A primeira definição deste verbete trata da guerra civil portuguesa, a guerra dos dois irmãos, uma disputa pela sucessão real, em 1826, que se deu após a morte de João VI69.

Verifica-se a utilização do vocábulo caipira pelos realistas, seguidores de Dom Miguel, para caracterizar os rivais constitucionalistas, simpatizantes de Pedro I, imperador do Brasil (futuro Pedro IV de Portugal, que venceu a disputa), sejam estes simpatizantes portugueses ou brasileiros.

Sobre a segunda acepção, utilizada no Minho, Câmara Cascudo (1984, p. 177) defende que é comum, tanto no Brasil como em Portugal, palavras de um país adquirirem sentidos diferentes no outro. Em todo caso, apesar de a palavra adquirir outro significado (avarento, sovina), verifica-se também o caráter depreciativo dado ao vocábulo.

Sobre a terceira acepção, podemos citar, respaldando-a, a definição de Valdomiro Silveira (1962, p. 143): “O homem ou mulher que não mora na povoação; que não tem instrução ou trato social; que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público.”.

Mas vamos à definição de alguém que conviveu com a cultura caipira no início do século XX e que representou importante papel na construção de outro entendimento sobre o caipira. Cornélio Pires dedicou sua vida à divulgação da cultura caipira, angariando respeito e admiração.

O caipira é um obscuro e é um forte!

Eil-o tangendo suas “tropas” cargueiras, empoeiradas ou cobertas de lama, pelos caminhos tortuosos e esburacados, furando matas virgens, galgando montanhas ásperas, vadeando rios revôltos e pestiferos, afrontando pantanaes e “atoledos”, atravessando campos, vencendo dezenas de leguas a pé ou arcado e molengão sobre o burro “manteúdo”, ao monotono “belém-belém” do sino pendurado ao pescoço da madrinha ruana!

É duro e constante na luta! Conforto? Deixal-o aos da cidade...

E, por isso, ha de vencer, mesmo contra a vontade do “civilisado” que o avilta e o cobre de apodos e defeitos. (PIRES, 1987, p. 4-5)70

Anteriormente, em 1766, Luís António de Sousa Botelho Mourão, mais conhecido por Morgado de Mateus, então governador de São Paulo, em carta ao poderoso Sebastião José de Carvalho e Melo, então Conde de Oeiras (logo depois Marquês de Pombal), já antecipava avaliações semelhantes àquelas de Cornélio Pires sobre o caipira: “são Robustos, fortes, e Sadios, e Capazes de Sofrer os mais intoleráveis trabalhos”71.

Corroborando esta frase de Morgado de Mateus sobre os paulistas, um pouco antes, em 1754, publica-se em Lisboa o livro do missionário apostólico Ângelo de Sequeira, natural da cidade de São Paulo, Botica Preciosa e Thesouro Precioso da Lapa, que traz no prólogo:

       

69 http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Civil_Portuguesa

70 Cornélio Pires em seu livro de 1921, Conversas ao pé do fogo, define quatro tipos de caipira: o caipira branco,

o caipira caboclo, o caipira preto e o caipira mulato (PIRES, 1987 [1921], p. 11-35).

Algum astro desconhecido ainda das observações astrológicas domina sem dúvida no horizonte da cidade de S. Paulo, o qual com influxos muito ativos inclina os ânimos dos Paulistas, seus habitantes, não só a serem nobres, mas altivos, não só valorosos, más temerários, não só laboriosos, mas exploradores, não só obedientes, mas hoje também obedientíssimos, não só desprezadores de cabedais, mas também ambiciosos de honras. Esta união de circunstâncias que neles concorrem, os moveu desde o princípio de sua povoação a deixarem o cômodo das suas casas, a custa das suas próprias vidas, e fazendas. A este fim entraram pelos intrincados dos bosques, de que estavam provados aqueles vastíssimos sertões, e abatendo altas, e grossas árvores, abriram caminhos, atravessaram caudalosos rios, combateram com os bárbaros habitadores das suas margens, devastaram os animais ferozes, que os acometiam nos matos, e destruíram bichos formidáveis, e venenosos, com as mesmas armas que levavam para a sua defesa, granjearam caçando, o seu próprio sustento, e alimento. Entranhados em países estéreis da sua pátria, acabado o provimento da pólvora, e chumbo, com que saíam com ela munidos, levando nas bocas das armas o remédio para as suas [bocas], e achando-se sem os meios precisos para a caça, os constrangia a fome a nutrir-se, comendo raízes de árvores, e de plantas desconhecidas, cuja venenosa qualidade os condenava a uma arrebatada morte.

Outras vezes morriam os paulistas despedaçados nas unhas, e garras dos Tygres, e das onças, e a muitos engoliram as cobras, especialmente as chamadas Boiguaçus, e Jiboias, e Sucuris, ou cobras de Boi, que de ordinário são de vinte palmos de comprimento, e algumas de muito mais, as quais se fingem de sorte, que parecem árvores, ou paus secos, e quando querem matar a qualquer homem, ou animal do mato, ou do campo, passando perto delas, assentam ou plantam as suas caudas como raízes na terra, e ficam como imóveis, e passado qualquer homem, ou animal por perto, se lhes lançam, e enroscando-se nele velozmente, o vão apertando e trincando lhe os ossos com uma tal força constritiva como qualquer cobra enroscada em um coelho, lhe fazem tão brandos os ossos, como cera, e o levam à margem do rio, ou lagoa, e pouco a pouco lambendo e chupando o metem no ventre. E se acaso algum homem ferido cai em certas lagoas ou rios, em um abrir e fechar de olhos ficou consumido sem aparecer mais vestígios do que o rio tinto em sangue, porque uns peixes, que na língua Brasílica lhe chamam Piranhas que no idioma português se chama peixe tisoura, dão tais dentadas no corpo, que com ossos e carne despedaçam tudo por terem os dentes como navalhas. (SEQUEIRA, 1754, prólogo)

Já numa definição mais recente, praticamente um século após Cornélio Pires, Francisco van der Poel, o Frei Chico (2013, p. 159), no seu Dicionário da Religiosidade

Popular72, apresenta outro viés de entendimento: “Portador de uma cultura rural de tradição oral e rica, mas ignorada pela sociedade e pela cultura oficiais nas quais seu saber e sua religião são considerados folclore”. Nesta definição, Frei Chico lamenta a desconsideração da sociedade urbana pelo homem rural. Uma realidade costumeira, no sentido da depreciação do caipira pelos habitantes do meio urbano; mas quando Frei Chico se refere à ignorância da “cultura oficial”, entendemos que sua definição se aproxima daquela de Cornélio Pires – “o caipira é um obscuro”.

Sobre esta definição de Cornélio Pires do caipira, o que salta aos olhos é, realmente, a frase com que ele inicia, “O caipira é um obscuro e é um forte”, parafraseando o escritor Euclides da Cunha “O sertanejo é, antes de tudo, um forte” (CUNHA, 1997, p. 129).

O que Cornélio Pires quis dizer com obscuro?

       

Vejamos as narrativas de viajantes no século XIX sobre o habitante rural de São Paulo. Não raro em observações fortuitas, descrevem-no de forma simplória. Segundo Auguste de Saint-Hilaire (1976 [1851], p. 138), “notam-se nos traços de algum deles os caracteres da raça americana, seu andar é pesado e eles têm um ar rústico e desajeitado. Os citadinos têm pouca consideração por eles, designando-os pelo injurioso apelido de caipiras”.

Será que desde então ocorre alguma dificuldade na compreensão da cultura do homem rural, suas crenças, seu imaginário, seus valores morais, sua sociabilidade?73

Retomando a minha posição de violeiro pesquisador, uma vez mais utilizo de minha vivência para refletir sobre aspectos da minha cultura, da cultura caipira. Iniciamos pesquisas de campo há mais de trinta anos com o intuito de compreender e assimilar as técnicas de viola com velhos violeiros, os violeiros da tradição, que pudemos conhecer pessoalmente. Queríamos saber da presença da viola nas práticas populares. Verificamos ao longo dos anos que, se na parte das técnicas de viola eu não teria dificuldade de assimilação, por outro lado, em relação aos significados essenciais das funções ritualísticas (devocionais ou não), como, por exemplo, a Folia do Divino, a tarefa já não seria tão simples. Havia nestas funções algo além do real, as pessoas que participavam cumpriam, cada qual a seu modo, o que herdavam da tradição. Ou seja, é como se o ritual fosse a extensão no tempo presente de algo que teve início em tempos ancestrais e que vinha sendo perpassado através das gerações.

Como exemplo disso, disse-me, certa vez, o guia de uma das Folias de Reis de Campina Verde, Pedro Ataíde, assim que iniciei minhas pesquisas: “Na folia é assim, primeiro a devoção, depois a distração”. Demorei a entender que ele não dizia de ordem de prioridade, que era como se dava nas funções, e sim de uma espécie de dimensão hierarquizada. Os cantos devocionais constituem a parte principal da função, mas nem por isso as danças são de somenos importância, tanto é que somente as danças da divindade são permitidas. Pelo menos assim eram as folias no “sistema antigo” (expressão dos próprios foliões se referindo às folias de antes deles), quando os foliões ainda seguiam os preceitos de seus mestres e cumpriam todos os ritos se reportando à tradição. O guia Jorge Bernardes da Silva74, assim como outros foliões, costuma se utilizar da expressão “eu apenas cumpro”, quando não consegue explicar determinados fundamentos do ritual. Uma folia de Reis dependendo da região, podia ter como danças da divindade o catira, o lundu, o quatro, a

       

73 Cf. MARTINS, 2004.

74 Cf. Transcrição para pauta musical de uma toada da Folia de Reis do guia Jorge Bernardes da Silva, Viagem

curraleira, a sussa75. Por outro lado, havia os pagodes, tipos de bailes desvinculados das funções devocionais que ocorriam em ocasiões como o mutirão76, e celebrações das mais diversas.

Apesar de ter sido bem acolhido por vários grupos em todos esses anos, eu sempre era um “de fora”, interessado em algo que eles faziam desde que se entendiam por gente. Algo que existia desde sempre, perpetuado de geração em geração.

Se, para mim, que sou caipira, violeiro, de uma cidade do triângulo mineiro, por ter sido criado afastado das práticas populares de minha região, encontro coisas obscuras na minha própria cultura, imagine um viajante europeu de passagem pela região caipira. Por outro lado, fazer parte dos rituais não garante que as experiências e entendimentos internos a essa cultura sejam todos vividos do mesmo modo. Há uma diversidade interna de experiências, conhecimentos e posições no interior desse universo caipira. E mais, esse próprio universo vive também transformações, ampliações, entre elas, sua valorização como cultura, identidade e adaptações às novas circunstâncias.

Dando continuidade, ainda sobre o caipira, Carlos Rodrigues Brandão nos propõe uma reflexão.

“Camponês”, “caboclo”, “caipira”, “roceiro”, ‘sertanejo”, “capiau”... com que nomes e símbolos reais ou ilusórios essa gente rural dos sertões de ontem e de agora habita o seu imaginário e o meu, leitor? Que homem caipira real existiu e existe ainda hoje em São Paulo e que personagem dele há dentro de cada um de nós? O lavrador rústico cuja lavoura substituiu a dos índios? O Jeca Tatu? O povoador de sucessivas áreas de fronteira? Os tipos engraçados de Mazzaropi e Alvarenga-e- Ranchinho? (BRANDÃO, 1983, p. 7)

Continuo a provocação de Brandão sobre que tipo de caipira de ontem ou de hoje habita o imaginário de cada um de nós. O violeiro Tião Carreiro, do pagode de viola? O violeiro Almir Sater, das novelas Pantanal e Rei do Gado? A Inezita Barroso, do Viola Minha

Viola? O compositor Renato Teixeira? A cantora Paula Fernandes? O violeiro Paulo Freire? A

Bruna Viola? Com as gerações se sucedendo, é inevitável que os personagens que irão habitar o imaginário de cada um sejam diferentes. E ainda haverá o caipira mítico construído a partir de reminiscências de um passado fantasioso, heroico, diferente das significações negativas do passado. A propósito, Ariowaldo Pires, sobrinho de Cornélio Pires, nos diz:

[...] É o tal caso do Monteiro Lobato ter feito para o Candinho Fontoura vender o seu remédio lá contra amarelão e outras doenças, tal... Daí que criou um símbolo negativo. Enquanto o gaúcho se veste de uma maneira toda espetacular, e mesmo o nortista com sua roupa de couro que custa um dinheirão e tal, o nosso aqui quando num era banguela botava uma cera no dente para ficar parecendo banguela, para

       

75 São danças coletivas cada qual com suas características. Cf. Gravações de pesquisas de campo da Série

Cultura Popular Viola Corrêa. Disponível em: <http://robertocorrea.com.br/obras/listar/ano#>. Acesso em: 7

jan. 2014.

ficar parecendo um tipo ridículo e assim por diante. De modo que foi um tipo criado pra vender remédio e isso deturpou demais a imagem.77

Assim, à medida que o entendimento do que vem a ser o caipira se aprofunda e se alarga, retomamos a questão da definição com foco no processo civilizatório.

O caboclo nativo dos sertões paulistas; o mineiro (desiludido com a escassez do ouro) em busca de novas terras pra sobrevivência; o roceiro itinerante e desbravador das matas, provindo da região do Planalto de Piratininga; o italiano imigrante logo acaipirado, eis, grosso modo e dessa forja, o caipira de São Paulo. (SANT’ANNA, 2009, p. 316)

Nesta curiosa definição de Romildo Sant’Anna, o “caipira” se constitui não só de paulistas, mas de mineiros e de italianos, ou seja, já começa a incorporar outros elementos culturais e isto já nos mostra que o entendimento do que seja caipira, inevitavelmente, irá se modificar no decorrer do tempo.

Cornélio Pires, num anúncio de jornal de Ribeirão Preto, de 1916, assim divulga seu evento caipira, citando sambas caipiras, caipiras turcos e italianos, entre outras informações:

Os caipiras - Acha-se nesta cidade e deu-nos o prazer de sua visita o conhecido poeta e conferencista Cornelio Pires, o autor de “Musa Caipira” que se tornou popular em São Paulo e Minas pelas chistosas conferencias sobre os caipiras, assim como pelos seus versos e outros trabalhos consagrados á vida sertaneja. Amanhã o nosso distincto hospede fará uma conferencia no Paris Theatre, após a sessão cinematographica, discorrendo sobre o seu assumpto predilecto: caipiras italianos e turcos, caipiras de São Paulo, poetas caipiras, versos humorísticos e sambas e tudo o mais que possa completar o caipira. (Jornal A Cidade, 1º de setembro de 1916) De fato, a realidade da vida no campo vai se alterando de diversas formas, e com ela os costumes, numa permanente adequação aos novos tempos. A energia elétrica na maioria das propriedades rurais do Centro-oeste/Sudeste revolucionou o mundo caipira. Só para citar um exemplo de mudança radical, o leite, que até pouco tempo, final do século XX, era tirado manualmente e transportado em galões de 50 litros, atualmente, é tirado mecanicamente e armazenado em tanques de resfriamento de grande capacidade na maioria das propriedades rurais da região Centro-oeste, Sudeste e Sul do Brasil. Assim, melhorias nas condições de vida do meio rural, mudanças na vida das pessoas que deixaram o campo para vir morar nas cidades, criações artísticas das gerações citadinas de origem rural, o caipira mítico – são realidades que vêm modificando o “olhar” do citadino e do próprio caipira sobre o universo caipira.

Não podemos esquecer caipiras de nascimento, como Monteiro Lobato, e seus curiosos paradoxos. É conhecido o mau humor de Monteiro Lobato em relação ao futurismo artístico mais pioneiro no Brasil. Lembremo-nos de sua crítica arrasadora, contrária à