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Viola de doze cordas, distribuídas em cinco ordens, desenhada por

Paulo, 1938. Caderneta 5, p. 53. Descrição da viola de Manoel Galdino (cf. CERQUEIRA, 2010, p. 64).

ordens de cordas duplas: a primeira ordem em uníssono e as demais ordens em oitavas. Com a viola em posição de tocar, de cima para baixo, teríamos então: (D2-D1, G2-G1, C3-C2, E3-E2, A2-A2 -)54. Esta disposição de quatro pares oitavados em cinco ordens de cordas duplas pode ter dado origem à atual disposição de cordas da viola repentista, na qual a segunda e terceira ordens deixaram de ter a parelha mais grave55.

Na região Nordeste, na atualidade, encontramos dois modelos de viola com as mesmas inovações da luteria violonística. A novidade, numa delas, fica por conta do tampo com várias

bocas e com um sistema próprio de amplificação natural do som. Quando a viola apresenta

este sistema os violeiros a identificam como viola dinâmica. Em termos musicais, o que difere um modelo do outro é a maneira de se encordoar o instrumento. A viola de cantoria ou repentista, como vimos, se arma com sete cordas, distribuídas em cinco ordens, sendo quatro ordens simples e a quinta ordem tripla. Sua afinação tem como característica apresentar a segunda e terceira cordas afinadas uma oitava acima (A3-A2-A1, D2, G3, B3, E3 ou, quando um tom abaixo, G3-G2-G1, C2, F3, A3, D3); a viola nordestina se arma com seis ordens duplas, como o violão de 12 cordas (E2-E1, A2-A1, D3-D2, G3-G2, B2-B2, E3-E3) ou com cinco ordens duplas, como a viola (A2-A1, D3-D2, G3-G2, B2-B2, E3-E3).

Sobre as famosas violas de Queluz, os Meirelles e os Salgado, duas famílias de artesãos do final do século XIX e início do XX, se sobressaíram na confecção destas violas. Seus instrumentos eram vendidos principalmente por ocasião do jubileu que se realizava em Congonhas do Campo, ponto de convergência de fiéis das mais diversas procedências, atraídos pelos milagres do Senhor de Bom Jesus (que dá nome ao Santuário de Matosinhos em Congonhas, também conhecido pelas obras de Aleijadinho e Ataíde).

O violeiro artesão de maior prestígio da antiga Queluz foi José Rodrigues Salgado, que, após ter tocado para Pedro II na residência do Barão de Queluz (quando da viagem do Imperador a Ouro Preto, em 1889, para a inauguração do ramal férreo), passou a fabricar violas para a Corte56. Seu ofício – arte repassada ao longo de gerações – foi transmitido a seus descendentes, que até meados do século passado ainda construíam violas. A última viola fabricada pela família Salgado foi feita no ano de 1969, de acordo com a carta recibo57 quando de sua aquisição.

       

54 Maneira de designar a altura exata dos noventa e sete sons da escala geral, sem o auxílio da pauta e das claves.

“A numeração das oito oitavas da escala geral é feita a partir da oitava mais grave, começando pela nota Dó. A oitava três, por exemplo, começa com o Dó3 [Dó central].” (MED, 1996, p. 264)

55 Cf. CORRÊA, 2000, p. 37-38. 56Cf. GOULART, 1961, p.139.

57 A viola pertencia a Maria José Milagres Marcenes, residente na cidade de Conselheiro Lafaiete na ocasião da

A viola foi sendo substituída por outros instrumentos em algumas regiões do nosso país a partir do século XIX. No início do século XX, mais precisamente em 1912, temos a publicação do livro Assumptos do Rio Grande do Sul, de autoria do major João Cezimbra Jacques, que nos traz preciosas informações a respeito da viola neste estado.

A poesia popular no Rio Grande do Sul começou a definhar com o injusto abandono da viola, da qual tivemos exímios tocadores. [...] Devemos notar que as senhoras daqueles tempos também cultivavam vantajosamente e com frequência esse instrumento tradicional. [...] O motivo do abandono da viola na nossa campanha58,

uns atribuem à invasão de outros instrumentos dentro dela e outros à péssima qualidade das cordas de arame próprias para encordoar esse instrumento, as quais apareciam ultimamente no comércio, sendo tão fracas que não resistiam a uma afinação sem se partirem. [...] na nossa campanha, dizem que a gaita é a assassina da “viola”, instrumento entre nós tradicional e cremos que entre todos os latinos, pelo menos entre o povo Ibérico. E a par da viola, tendo quase que desaparecido outros objetos de uso dos nossos Antepassados, apareceu entre a nossa população rural a seguinte quadra: “A gaita matou a viola, / O fósforo matou o isqueiro; / A bombacha o xeripá; / A moda, o uso campeiro”. (JACQUES, 1979 [1912], p. 47)

Ainda a respeito da viola no Rio Grande do Sul e por descrever o instrumento com cordas metálicas afinadas em oitavas, temos o relato do viajante alemão Avé-Lallemant, quando de sua viagem para Alegrete. O acontecido passa-se em uma venda à margem do Toropasso, quando da chegada de um rapaz com enormes esporas de prata: “Pela porta aberta da venda, que deitava para o interior da casa, vi-o pouco depois sentado aos pés de uma jovem tocando uma guitarra de cordas metálicas, cada corda acompanhada de sua próxima oitava, o que soa muito bem.” (Avé-Lallemant, 1980, p. 313-314).

Através de narrativas de viajantes, é possível perceber detalhes de algumas práticas musicais conduzidas por violeiros. Em 1896, uma expedição chefiada pelo general José Cândido da Silva Muricy deixou a cidade de Curitiba e percorreu boa parte do Paraná, em busca das ruínas da redução jesuítica de Vila Rica, tendo navegado pelos rios Ivaí e Corumbataí, entre outros. No que tange à música, ele descreve um hilário encontro com uma Folia do Divino, assim como uma festa de fandango em que descreve desafios à viola e a dança do corta-jaca.

[...] Também ajudava nas cantigas, acompanhado de uma viola cujas notas, impossíveis, eram raspadas nas cordas desafinadas, por unhas enormes, amarelas de sarro e cigarro. [...] As cordas da viola gritavam roucas e desafinadas, à tração desesperada das unhas amarelas do bárbaro tocador, que agora percebíamos era aleijado dos dois pés. (MURICY, 1975, p. 124)

[...] – Um instantinho, Senhores! Queremos vêr nha Rita dançar o Corta-jaca com nhô Firmino, enquanto não se cansam. Um Corta-jaca, violeiro, toque um Corta- jaca!... Imediatamente as violas fizeram ouvir, quase em surdina, um ponteado em alegro, quase um miudinho, ao mesmo tempo que os dois dançadores, em frente um do outro, êle estalando os dedos e movendo os pés num rápido movimento e ela arregaçando os lados do vestido, apenas mostrando os pés com os quais fazia,

       

58 Segundo o Aurélio: 6. Bras. RS Região ondulada em coxilhas, coberta por vegetação herbácea, onde

também, um rápido movimento de vai-vem, raspando com êles o soalho, o que produzia um agradável som de chocalho com um ritmo especial. Vagarosamente, trasladavam-se em volteios, um em tôrno do outro. Ela, com surpreendente graça, e êle, com incrível entusiasmo! Dançavam no centro de uma roda formada por todos nós que os contemplávamos arrebatados pela maestria, pela graça e entusiasmo com que o faziam. (MURICY, 1975, p. 137)

Havia momentos em que os violeiros entravam na roda para fazer a passagem59.

Passage ou passagem eram malabarismos que os violeiros faziam com a viola em

determinadas ocasiões da função. Uma performance em que mostravam suas habilidades, inclusive dançando e tocando ao mesmo tempo. Consistia no momento de destaque do violeiro que procurava realizar façanhas que, dificilmente, outro conseguiria. A passagem do violeiro podia ser também uma exibição na viola como esta passagem do violeiro Zeferino Rascada.

Cada uma dança do fandango tinha duas músicas correspondentes: uma que seria para dançar-se e outra para cantar-se nos pequenos intervalos que havia no decurso da dança. As diferentes peças eram tocadas na viola, da qual haviam tão bons tocadores que tiravam notas das diversas cordas desse instrumento imitando choros, suspiros e gemidos; dentre os quais tocadores destacava-se um célebre Zeferino Rascada, que arrebentando as cordas, tocava só numa (prima) as peças que queria. (JACQUES, 1979 [1883], p. 75)60

Uma outra passagem curiosa nos conta Marcia Taborda:

O folclore do lugar inclui um pitoresco episódio [Rua das violas]61. Por volta de 1820, ficava ali a Hospedaria da Corneta, [...]. Era tão badalada, que certa noite ninguém menos que D. Pedro I apareceu por lá, claro que disfarçado, usando uma capa tipicamente trajada por paulistas. A viola soava nas mãos de Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, quando um cantador principiou os seguintes versos:

Paulista é pássaro bisnau62, sem fé, nem coração: é gente que se leva a pau, a sopapo ou pescoção.

Enfurecido, D. Pedro I tirou a capa que lhe cobria o rosto e ordenou a seu acompanhante: Meta o pau nessa canalha! Sumiram-se todos, à exceção de Gomes da Silva, em direção de quem foi o capanga de Sua Majestade, pronto para atingir- lhe com o cacete. Mas, espertamente, Chalaça o derrubou com uma rasteira antes de ser atingido. Com toda a placidez, tirou o chapéu e curvou-se, como um verdadeiro cavalheiro: 'Francisco Gomes da Silva apresenta a Vossa Alteza os seus respeitos e os seus serviços.' Dom Pedro explodiu numa gargalhada. Chalaça acabou se

       

59 Em nota à Cornélio Pires, o poeta caipira Benedito Gregorio de Mendonça e Silva explica: “O mérito dos

violeiros antigos, consistia unicamente em cantar com entoação e saber dançar tangendo a viola, fazendo, depois de ultimar a cantiga, diversas passagens, isto é, dançar com diversos passos e requebros de corpo que os outros dançadores não executavam; por exemplo: ajoelhar no chão, saltar para cima, de lado ou para trás, virar cambotas tocando a viola, repicar o sapateado de outro modo mais rápido; tudo, porém, no compasso certo da viola.” (PIRES, 2004, p. 49).

60 Ainda sobre esta proeza de Zeferino Rascada em sua viola: “Vitorino Rascada [consideramos, assim como

Meyer, que seja o mesmo violeiro Zeferino], (que os presidentes da província faziam questão de ouvir tocar viola), ia propositalmente rebentando, uma por uma, as cordas do seu maravilhoso instrumento, até que, só com a última, executava então o Hino Nacional.” (TEIXEIRA, Múcio, Os gaúchos, 2ª ed., Leite Ribeiro & Maurillo, Rio de Janeiro, 1920, Tomo I, p. 276 apud MEYER, 1975 p. 273).

61A viola era instrumento popular no Rio de Janeiro em fins do século XVIII. A comprovação disto é o fato de,

no centro da cidade, haver uma rua com vários fabricantes de viola. Esta rua tinha o nome de Rua das Violas. No ano de 1869 a Câmara Municipal trocou o nome da rua para Teófilo Otoni. (TABORDA, 2011, p. 54)

tornando criado particular do futuro imperador, além de seu amigo, confidente e companheiro de noitadas.

Há quem diga que D. Pedro I também tocava viola. (2011, p. 54)

No início do século XX, já começavam a se estabelecer em São Paulo fábricas especializadas na confecção de instrumentos musicais. Estas fábricas, a partir de experiência na fabricação de violões e de inovações nas técnicas de construção (como, por exemplo, o uso de verniz, ferramentas apropriadas, maquinário, colas especiais, uso de diferentes madeiras etc.), com o tempo, foram realizando, também, modificações em suas violas, diferenciando-as dos modelos tradicionais.

A principal alteração – hoje característica comum à maioria das violas – deu-se na trasteira ou escala, que passou a alcançar a boca do instrumento e a ser colada ao tampo, formando um ressalto – escala sobreposta. Com isso, as cordas ficam mais distantes do tampo, favorecendo a ação da mão direita e, na região aguda, com trastos até a boca do instrumento, da mão esquerda.

Duas outras modificações significativas se fizeram no cravelhal, em que as cravelhas de madeira foram substituídas por tarraxas de metal, favorecendo um melhor ajuste da afinação; e no número de trastos da pestana ao pé do braço (bojo do instrumento), que passou de dez a doze.

Estas modificações foram totalmente assimiladas e acabaram por definir uma nova forma de instrumento – com características adaptadas às demandas de um novo momento para a música que estava sendo feita com a viola e a um repertório em formação.

Retornando no tempo, a séculos passados, a dificuldade de se conseguir viola em algumas regiões do país, nos moldes das violas tradicionais, fez com que surgissem tipos diferentes de violas com formatos os mais diversos, notadamente a viola de buriti, encontrada na região do Jalapão, em Tocantins, feita com talos da folha desta palmeira, e a viola de cocho

Foto 2 - Viola caipira moderna (1986), construída por Vergílio Artur de Lima, Sabará/MG. [Foto: Marcelo Barbosa]

encontrada no pantanal mato-grossense, cujo bojo é escavado e o tampo feito de raiz de figueira branca63.

Apresentaremos fotos e desenhos dessas violas, ou de algum detalhe, no sentido de registrar e tê-los como parâmetro de comparação. São instrumentos importantes, encontrados em práticas tradicionais que estão, cada vez mais, servindo de referência para jovens músicos que buscam nestas violas caminhos de expressão artística.

Outros tipos de violas artesanais seguem, de forma geral, modelos encontrados em Portugal, como é o caso das violas de samba (machete e três-quartos), do Recôncavo Baiano, e da viola de fandango, ou viola de caixeta, encontrada no litoral sul do país. Algumas das violas-de-fandango, além do cravelhal normal, com dez cravelhas, apresentam outro pequeno cravelhal, ao lado da caixa de ressonância, em cima do braço, com apenas uma cravelha64. A

       

63Cf.ANDRADE,1981.

64 “A maioria das violas de fandango possui uma meia corda, cuja cravelha está no corpo da viola e não no final

do braço como normalmente ocorre. Esta meia corda é chamada de turina, cantadeira ou piriquita. [...] Em

Foto 3 – Violas de buriti com quatro e com cinco ordens de cordas simples, região norte do Brasil. Localização desconhecida. [Foto: André Dusek]

Foto 4 – Viola de cocho (1981) construída por Manoel Severino de Moraes, em Cuiabá/MT. [Foto: Glenio Dettmar]

corda que se prende dele ao cavalete é denominada cantadeira65. Alceu Maynard Araújo discorre sobre a Viola Angrense, também do litoral sul, com sete cordas em cinco ordens, às vezes com oito cordas, a cantadêra, presa ao cravelhal complementar denominado de

benjamim. “Nêste caso, a viola do caiçara66 ficará com 8 cordas. Êste dispositivo [o cravelhal complementar] para a cantadêra é de nítida influência portuguesa” (ARAÚJO, 1953, p. 174).

 

      

Iguape, a viola de fandango também é chamada de viola branca.” (PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006, p. 24).

65 Em Portugal a viola beiroa ou bandurra beiroa, encontrada no distrito de Castelo Branco deste país, apresenta

este mesmo cravelhal situado na parte de cima do braço, no encontro deste com a caixa de ressonância. Este cravelhal contém não uma, como a nossa viola, mas duas cravelhas. As cordas que se prendem dele ao cavalete são denominadas requintas e se tocam sempre soltas.

66 “o que nasceu e sempre ocupou o litoral de São Paulo. [...] De qualquer modo, caiçara parece expressar uma

modalidade do termo caipira – correspondendo este ao homem do interior e, ao do litoral, aquele.” (SETTI, 1985, p. 15). Em 1990, Kilza Setti compôs Missa Caiçara para coro acompanhado de viola caiçara, rabeca e caixa. Cf. José Luiz Chamorro Ribalta (Catálogo USP) Missa caiçara: uma abordagem analítico-interpretativa

da obra de Kilza Setti. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27158/tde-30082012-

125503/pt-br.php>. Acesso em 1 dez. 2013.

Foto 5 - Detalhe da boca e do cravelhal adicional da viola de fandango (2000), construída por Leonildo Pereira, em Guaraqueçaba/PR. [Foto: João Saenger]

Retomando o tema em questão, mostramos as ocorrências históricas do instrumento denominado viola e, numa tentativa de vislumbrar como eram as violas de antanho, buscamos semelhanças e dessemelhanças entre as violas brasileiras e as violas d’além mar, a partir dos exemplares de viola antigas que chegaram até nós. O objetivo de apresentar historicamente o instrumento torna-se pertinente para situar a viola no tempo e no espaço. Desde o século XVI ela está presente em nossas práticas musicais e o seu avivamento a partir da segunda década do século XX vem resgatar sua importância como instrumento identitário e, também, como instrumento libertário. No entanto, qual é o tipo de viola brasileira que está sendo protagonista deste amplo movimento em finais do século XX e início do XXI? É neste instrumento que nos deteremos a partir de então – a viola caipira. 

3. A VIOLA DO CAIPIRA: PRECONCEITOS, REGIÃO, CARACTERÍSTICAS, MODELOS, MÚSICA

Este capítulo aborda os significados do termo caipira e, consequentemente, dos termos que agregam a palavra caipira, buscando com ela uma identificação – como é o caso da viola, objeto de investigação da tese. Neste sentido, inevitavelmente, vamos tratar também dos preconceitos que até os dias de hoje ainda marcam aspectos fundamentais da cultura da região

Desenho 3 - Cravelhal adicional em uma viola portuguesa (viola beiroa ou bandurra1) e numa viola de