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Violeiros na Dança de São Gonçalo, São Francisco/MG (2000) Da

antigos cantavam. A este tipo de anotação em cadernos e folhas avulsas, eles dão o nome de

tabela130.

O Frei Chico nos apresenta uma outra forma de se perpetuar as rezas: “No Nordeste, encontramos em muitas casas as primeiras três colunas131 do ofício de Nossa Senhora [oração do ofício ou oração das sete colunas] pregadas na cumeeira”. Logo em seguida, nos conta a origem do Ofício: “O popular ofício de Nossa Senhora foi escrito em meados do séc. XV, atribuído a Bernardino de Busto ou a São Boaventura e foi aprovado pelo papa Inocêncio XI.” (POEL, 2013, p. 728).

Sobre o Ofício de Nossa Senhora da Conceição, no ano de 1997, tivemos a oportunidade de registrar em Luziânia, estado de Goiás, a Prima do Ofício (dez estrofes) e a ladainha em latim132, cantadas por oito homens divididos em dois grupos de quatro, na capelinha da Nossa Senhora da Abadia. Assim que um grupo finalizava uma quadra, o outro iniciava a próxima quadra com a mesma melodia e assim por diante. Eles entoavam o Ofício em quatro vozes diferentes e cantavam de cor todas as sete colunas.

[...] Mas essa tradição vem antiga de eu criança, que eles falam rezar um terço, mas composto de Ofício, Ladainha e Salve Rainha. Nunca fiz rezar sempre só o Ofício e não rezar a Ladainha, sempre tem a Ladainha, acompanha. Não pude saber a origem, mas sei que aprendi assim: Assim continuo. (Jesus Vieira Gonçalves, Sr. Zuca Vieira, Luziânia/GO)133

A família Braz, de Luziânia, se reúne anualmente para a reza do Ofício há mais de 150 anos. De acordo com os rezadores, como Sr. Zuca Vieira, o Ofício de Nossa da Senhora da Conceição é oração muito antiga. Isto é comprovado no livro Botica Preciosa e Thesouro

Precioso da Lapa, de Angelo de Sequeira, publicado em Lisboa, no ano de 1754, onde se

encontram os mesmos versos cantados por estes rezadores.

Para conferir com os versos que os rezadores de Luziânia cantam, segue o que conta o livro de 1754. Curiosamente, os rezadores de Luziânia cantam a terceira estrofe completa. No livro faltam os dois últimos versos da terceira estrofe (Desce Deus do céu/ Para o nosso bem). Sede em meu favor, / Virgem Soberana, / Livraime do inimigo / Com vosso valor. // Gloria seja ao Padre, ao Filho, / e ao Amor tambem, / Que he hum só Deos, / E pessoas tres, / Agora, e sempre, / E sem fim. Amen / ... /... // Deos vos salve, Mesa / Para Deos ornada, / Columna sagrada / De grande firmeza. // Casa dedicada / A

       

130 Tabela – versos do cantorio de Folia de Reis copiados manualmente, geralmente em caderno, que vão sendo

passado de geração para geração.

131 Em Abadia de Goiânia o embaixador de folia Quim Bento diz: “Quando foi criada a folia, ela foi baseada na

vida de Cristo. O assunto é um só, mas a gente divide em colunas e faz os versos. Coluna é uma separação de estória. E nós dividimos em: viagem de Nossa Senhora, nascimento de Jesus, viagem dos Magos, adoração dos Magos, fuga para o Egito e, às vezes, até o padecimento de Cristo” (MOREIRA, 1984, p. 47 apud POEL, 2013, p. 230).

132 O terço cantado de Luziânia está disponível em: <http://robertocorrea.com.br/obras/cd/68>. Acesso em: 30

nov. 2013.

Deos sempiterno, / Sempre preservada, / Virgem, do peccado. // Antes que nascida, / Fostes, Virgem Santa, / No ventre ditoso / De Anna concebida. // Sois Mãycreadora / Dos mortaes viventes: / Sois dos Santos porta, / Dos Anjos Senhora. // Sois forte esquadraõ / Contra o inimigo, / Estrella de Jacob, / Refugio ao Christaõ. // A Virgem o creou, / Deos no Espirito Santo, / E todas suas obras / Com ella as ornou. // Ouvi, Mãy de Deos, / Minha oraçaõ / Toquem em vosso peito / Os clamores meus. // (SEQUEIRA, 1754, p. 500-502. Disponível em: <http://purl.pt/17322/3/#/0>. Acesso em: 20 out. 2013)

Este exemplo vem a calhar para ressaltar a importância dos registros sonoros de tradições antigas, sejam de que natureza for. Em nosso caso, o registro de práticas tradicionais em que a viola está presente pode nos revelar traços musicais de épocas remotas ou mesmo formas musicais em desuso. De certa forma, este recurso se assemelha a um dos recursos usados por Antônio Cândido (2001, p. 23) para tentar compreender melhor o tempo dos

antigos: “Interrogar longamente, pelos anos afora, velhos caipiras de lugares isolados, a fim

de alcançar por meio deles como era o tempo dos antigos”134.

A prática musical do meio rural é um importante elemento mediador das relações sociais entre as pessoas de uma determinada região. As funções da religiosidade popular, como as folias de Reis e do Divino, sempre apresentaram, além das músicas que compõem o ritual sagrado, danças tradicionais e brincadeiras em que todos podiam participar, as denominadas danças da divindade. Estas danças são perpetuadas através das gerações e, geralmente, acontecem logo após o cumprimento da parte religiosa. Outros tipos de danças não são permitidos por não fazerem parte da divindade.

Outra situação de mediação é o mutirão ou traição, no qual a vizinhança se junta para prestar ajuda a um companheiro que, por um motivo ou outro, não conseguiu realizar a tempo um trabalho como, por exemplo, a limpa de uma roça. Nesta ocasião, as pessoas costumavam entoar músicas durante a labuta do trabalho – canto de trabalho –, que vai do clarear do dia ao anoitecer, culminando com danças e brincadeiras durante à noite. Como descreve José de Souza Martins sobre o valor de utilidade da música caipira (práticas musicais tradicionais): “Sem a música essas relações não poderiam ocorrer ou seriam dificultadas, acentuando a crise da sociabilidade mínima dos bairros rurais, como aliás se observa naqueles que estão em desagregação” (MARTINS, 1975, p. 112).

       

134 Sobre toques de violeiros antigos confira o livro de partituras, com CD encartado, Viola Instrumental

Brasileira, organizado por Andréa Carneiro de Souza, Rio de Janeiro, 2005. Confira, também, a pesquisa do

violeiro Cacai Nunes, em vídeo, sobre violeiros antigos. Disponível em: <http://www.umbrasildeviola.blogspot.com.br/>. Acesso em: 30 nov. 2013. Ainda há também o documentário

Mestres da Viola - Uma viagem musical pelo Rio São Francisco, resultado de pesquisas de campo ao longo da

Bacia do Rio São Francisco, de Janeiro a Agosto de 2011. Realizado pela Associação Nacional dos violeiros do

A este respeito, podemos enumerar outras oportunidades de congraçamento de pessoas no meio rural, como pagodes, quermesses, datas festivas e rezas, mas o que chama a atenção é a música durante o trabalho. Em Martinho Campos, região do alto São Francisco, Oeste de Minas Gerais, na fazenda Cerrado Velho, da família Fernandes Campos, no ano de 1998, tivemos a oportunidade de presenciar uma demonstração, por pessoas nascidas na década de 1920, de como se fazia, antigamente, os cantos de trabalho, a derrubada, como eles diziam. Os trabalhadores vieram de uma roça de milho com enxadas nos ombros entoando cantigas em várias vozes com as roupas cobertas de pó. Um deles, com o rosto sujo de barro, vinha com um pé de milho nas mãos. De pé, na frente da casa, a dona da casa os aguardava com uma garrafa de cachaça enfeitada com papel de variadas cores. O pé de milho era trocado pela cachaça e, em seguida, eles faziam uma dança em círculo com cada um batendo sua enxada, com o dorso da parte de metal, na enxada do companheiro da frente e girando o corpo na enxada do que vinha logo atrás. Um deles ficava ao centro puxando versos que eram respondidos pelo grupo em vozes diferentes.

Curiosamente, encontramos em Manoel Morais (2008, p. 25) trecho da publicação de autor anônimo, Relaçam geral das Festas que fez a Religiaõ da Companhia de Iesus na

Prouincia de Portugal, na canonizaçaõ dos Gloriosos Santo Ignacio de Loyola seu fundador, & S. Francisco Xauier Aposto da India Oriental (Lisboa: Pedro Craesbeeck, 1623), em um

capítulo dedicado à relação das festas que se fizeram na Ilha da madeira, na cidade do Funchal, no ano de 1622, descrevendo uma representação bem parecida com a que nos foi mostrada em Martinho Campos.

Seguiase huma dança de oito saluagens, vestidos à inteiriça, todos cubertos de musgo, com suas enxadas ás còstas: tudo com muita propriedade como quem trazia dos bosques desta ilha os mastros, & os vinha à Cidade leuantar: estes dançauaõ ao som de frauta, & tamboril, tocando a seus tempos com os cabos das enxadas huns nos outros todos a la una: [...]135

Os registros musicais, a descrição de práticas tradicionais, como nos exemplos acima, podem ser fontes importantes para uma compreensão do que poderia ter sido a música e as festas de séculos anteriores. Neste sentido, a importância de se registrar e, mais ainda, dar a conhecer, ou seja, tornar de fácil acesso para as pessoas que queiram estudar, comparar, apreciar ou se inspirar nas coisas dos antigos. Ainda temos a oportunidade de aprender muito de nosso passado com a divulgação das práticas musicais tradicionais e, no caso específico da viola, os fazeres e saberes dos Mestres Violeiros136.

       

135 Disponível em: <http://www.calameo.com/books/000019422bebb33e32c47>. Acesso em: 27 nov. 2013. 136 Entendemos por Mestre Violeiro o violeiro da tradição, aquele que realiza toques de viola que aprendeu com

No prefácio de seu livro Contos Tradicionais do Brasil, Câmara Cascudo (2001, p. 14) se justifica: “Dar título de tradicionais pareceu-me lógico, porque esses cem contos estão vivos, trazidos, de geração em geração, na oralidade popular”. Ainda sobre o fato de se conhecer o tempo dos antigos através das memórias e das práticas tradicionais de pessoas idosas, este mesmo autor nos apresenta seu modo de pensar na introdução de seu livro

Literatura Oral no Brasil.

A vida nas povoações e fazendas era setecentista nas duas primeiras décadas do século XX. A organização do trabalho, o horário das refeições, as roupas de casa, o vocabulário comum, os temperos e condutos alimentares, as bebidas, as festas, a criação de gado dominadora, as superstições, assombros, rezas-fortes estavam numa distância de duzentos anos para o plano atual. (CASCUDO, 1984, p. 15)

Isso fica comprovado nas rezas do Ofício de Nossa Senhora da Conceição e na demonstração de uma Derrubada por pessoas mais velhas que vivenciaram ou presenciaram o fato quando crianças, nos remetendo a práticas de um passado distante.

4.2 A Folia de Reis: uma prática devocional ritualística

Vamos abordar sob o aspecto ritualístico uma das mais importantes funções devocionais da região caipira – a Folia de Reis137. Este assunto faz sentido pelo fato de a viola ser o principal instrumento desta prática que se manteve viva até os dias de hoje pelo seu aspecto devocional. A tradição da Folia de Reis nos mostra a realidade de uma manifestação ritualística, ainda presente no meio rural e nas periferias das cidades da região caipira do Brasil e que, devido a outros tipos de demandas, corre o risco de mudanças na sua essência, principalmente no que concerne à devoção. Ou seja, com os Festivais e Encontros de Culturas Tradicionais, estamos presenciando a construção de uma outra realidade para as manifestações devocionais e mesmo para as danças a elas associadas. Em outras palavras, uma performance ritualística localizada em um espaço ficcional próprio se realizando, também, em um outro espaço ficcional completamente diferente do costumeiro, onde os aspectos devocionais se perdem nas demandas técnicas do espetáculo. De certa forma, esta situação lembra um pouco as transformações que estas mesmas tradições sofreram quando inseridas na indústria fonográfica.

      

tempos de outrora. Por Mestre violeiro entendemos, também, os artesãos que constroem suas violas nos moldes antigos, ou seja, que ainda se utilizam de técnicas arcaicas na fabricação de seus instrumentos.

137 Função é o nome genérico que as pessoas do interior dão para as manifestações musicais tradicionais. É muito

Na Folia de Reis, a voz é o elemento condutor numa narrativa cantada da visita dos três Reis Magos ao Menino Deus e o corpo é utilizado de acordo com os diferentes momentos da função: os cantorios devocionais, as atuações dos palhaços (quando existem)138, as rezas cantadas (em que participam todos os presentes) e as danças ligadas à divindade. O Terno ou Companhia, nome dado a um grupo de foliões liderados por um guia, segue durante o giro da folia determinadas normas de comportamento. Giro é o percurso estabelecido para o cumprimento da função que é dividido em jornadas. A cada noite se cumpre uma jornada até a finalização da função com a entrega da folia. Estas normas são particularizadas; cada guia impõe ao seu grupo condutas que ele aprendeu de seus mestres e segue com seu grupo cumprindo a tradição. Em algumas folias o guia recebe outras denominações como capitão,

mestre de folia, tirador de folia ou folião-mestre.

Na parte devocional a estrutura musical das folias segue um padrão estabelecido de canto-puxado e canto-resposta, à maneira dos responsos139. Os assuntos são apresentados em forma de quadras140 e relatam acontecimentos em torno da peregrinação dos três Reis

       

138 “Nem entre os estudiosos de Folia de Reis e nem entre os foliões, existe um consenso a respeito da figura do

palhaço.” (FONTOURA, 1997, p. 44).

139 Responso – (do lat. responsu-). Na liturgia é propriamente uma recitação alternada entre o celebrante ou

versiculário e o coro (BORBA & GRAÇA, 1963, p. 451).

140 Quadra – “Fórmula de construção poética utilizando estrofes de quatro linhas ou pés (versos, em linguagem

literária), no sertão. (ANDRADE, 1989, p. 414). “Como em toda a poética brasileira, nos reis predominam francamente as quadras setissilábicas ABCB.” (AUGUSTA, 1979, p. 22).

Foto 22 - Companhia de Folia de Reis, Arinos/MG (1998). Capitão Juvenal