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4.6 Categoria: expectativas em relação à cura e tratamento da ferida

4.6.2 Crenças espirituais: tratamento e cura

As pessoas se deparam com sofrimento, desafios e transições ao longo da vida, o que as impulsiona para além de suas próprias capacidades, levando-as a um processo dinâmico de enfrentamento, no qual crenças e práticas religiosas podem estar inseridas (FARIA; SEIDL, 2005).

A manifestação da espiritualidade, na crença em um ser superior, é buscada para fortalecer a esperança no tratamento e na cicatrização de lesões (SILVA et al., 2015b).

Algumas pessoas, quando se encontram em situações graves, como dificuldades espirituais ou morais ou de doenças graves, buscam o amparo religioso, que pode se desenvolver por meio da cura ou dos milagres (ALCOFORADO; SANTO, 2012). Em geral, o elemento motivador para a “religião dos milagres” são situações de extremo sofrimento, desespero frente à doença ou à iminência da morte ou até mesmo problemas de ordem moral, pessoal e social que configurem o caos (MINAYO, 2008).

A palavra cura vem do termo “cuidado”, de “cuidar”, mas esse termo entra no vocabulário médico como uma das etapas e resultado do sistema terapêutico. Existem vários conceitos de cura. Um deles define a cura como sendo "o uso da sugestão ou da fé para tentar curar as doenças, principalmente as físicas". Nesse nível de reflexão, outro conceito define a cura como "reconstituição funcional satisfatória para o doente e para o médico na ordem anatômica", sendo esse fenômeno sempre acompanhado de perdas essenciais para o organismo e, ao mesmo tempo, do reaparecimento de uma nova ordem, tanto no campo somático como no campo psíquico. Desse modo, a doença torna-se uma variação de estado de saúde, uma nova dimensão da vida, pois "a vida não conhece reversibilidade:

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ela admite reparações". Representação por devotos em Porto das Caixas, no estado do Rio de Janeiro, município de Itaboraí, apresenta a cura como “um fenômeno por meio do qual as pessoas recuperam a saúde física e mental, recuperando também a sua segurança, o bem-estar, a honra, o prestígio ou tudo aquilo que seja reordenação do caótico, do negativo” (MINAYO, 2008).

O milagre, por seu lado, se restringe a significar a consecução de um bem, podendo ser saúde, material ou espiritual, considerado impossível de ser alcançado pelas forças naturais ou pelos recursos de quem crê (MINAYO, 2008).

O caminho para se alcançar a cura por meio de um milagre é a fé. A fé é a crença e a confiança de que algum processo terá resultado satisfatório por meio de intervenções divinas. Denota um desejo, uma esperança de transformação da situação individual, de uma forma que o fiel acredita fielmente na intervenção sobrenatural, “de acordo com a vontade de Deus” (ALCOFORADO; SANTO, 2012).

A manifestação da fé encontra-se em diversos relatos:

Deixa eu te falar...eu sei orar. [...] Eu já dei a palavra a Deus...Jesus pode me curar. Se Deus quiser! (E4).

A minha vida está entregue a Deus, né? Então, Deus é que sabe. Deus é que conhece o coração da gente, conhece o nosso pensamento. Eu vou vivendo enquanto Deus quiser... Para mim, eu estou esperando em Deus. Graças a Deus, Ele preparou esses meninos para tomar conta de mim, porque eles é que tomam conta [refere-se ao enfermeiro do centro de saúde]. [...]. Às vezes tem dia que a gente fica assim, meio nervoso, né? Mas que seja feita a vontade de Deus. Se for da vontade de Deus...(E9). Eu deixo para Deus fazer com a vontade dele (E10).

Há esperança porque há um Deus no céu (E11).

Eu espero e rezo todo dia e toda hora para Nossa Senhora abençoar um remédio para sarar (E12).

Nas práticas de cura, existem, ainda, os rituais de “benzeção”. A “benzeção” ou reza se constitui em um conjunto de preces e gestos que produzem as graças divinas, trazendo a cura para os males, a paz para o espírito e o afastamento de entidades maléficas. Essa prática é realizada diante de símbolos sagrados como imagens de santo, crucifixo, bíblias e terços. Utilizam-se, ainda, velas, águas e, não raro, ramos de folhagens específicas como a arruda, o alecrim e a espada de São Jorge. A “benzeção” é um vínculo por meio do qual o benzedor estabelece relação de solidariedade e de aliança com santos, de um lado, e com homens, de outro. O benzedor não pertence a alguma hierarquia religiosa e seu conhecimento é fruto

de sua longa vivência ou de um aprendizado, no mais das vezes, ligado a parentes. Contudo, tem autoridade e prestígio e, em razão desse fato, costuma atender pessoas de outras comunidades (FARIA NETO; ORLANDO, 2009).

Uma das entrevistadas traz uma cultura familiar embasada em rezas e benzeções, culturalmente incorporada pelo seu pai, que era índio. Esta utiliza de suas orações para si e para as demais pessoas da comunidade que a procuram, como explicitado anteriormente por Faria Neto e Orlando (2009):

Eu rezo... Se uma pessoa acaba de chegar aqui “cortada” de Deus... eu quero fazer uma oração para ela... eu falo para ela: “Então siga, meu Deus, que Deus pegue a senhora e vai embora”. [...] se um dia eu precisar chegar ao ponto de bater nessa mesa e falar: “Senhor Jesus, eu estou precisando de sentar aqui, para eu orar para qualquer pessoa”, eu oro e guardo... Meu pai era índio, benzedor, curava todo mundo... nossa casa era assim de gente [faz gesto de muita quantidade de gente] ...dos padres aos médicos, iam na nossa terra. [...] (E4).

Como se depreende das análises dos relatos, existem pessoas que atribuem a Deus o aparecimento ou a resolução dos problemas de saúde que as acometem e recorrem frequentemente a Ele como recurso cognitivo, emocional ou comportamental para enfrentá-los (FARIA; SEIDL, 2005).

No campo da saúde, essas representações reafirmam a complexidade que envolve o conceito de saúde e doença, vida e morte, perpassando a realidade biopsicossocial. Reitera-se o que afirmam Alves e Minayo (1994), ao se referirem às práticas médicas que, embora o campo de intervenção médica se circunscreva tecnicamente aos contornos e ao interior do corpo, o médico, visto como cientista, artista ou técnico, não pode desconhecer essa complexidade de qualquer problema ou situação de saúde e doença. Tais afirmativas se tornam também válidas para qualquer outro profissional de saúde que deve cuidar de pessoas com úlceras venosas.

A religião pode ser útil para enfrentar situações difíceis, por proporcionar um sistema de crenças e uma linha de pensamento que capacita as pessoas a encontrarem conhecimentos e propostas para lidar e compreender os eventos inevitáveis (VIDERES et al., 2013). Porém, na saúde, é necessário avaliar se os eventos considerados inevitáveis não são passíveis de melhor desfecho.

Oliveira e Poles (2006) complementam que uma das crenças predominantes no discurso do paciente com ferida crônica está relacionada à ideia de que a cura

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da ferida não aconteça, como alguns entrevistados do presente estudo, que colocam na mão de Deus qualquer perspectiva imaginada. A dúvida ou descrença na cura está fortemente ligada ao tempo de permanência da ferida, assim como aos métodos e tentativas terapêuticas aplicadas para alcançar o maior desejo desse sofredor: a cura da ferida. Muitas vezes, o paciente não compreende ou não é informado sobre todo processo que deveria saber sobre essa cura. Essa é uma evidência de que há necessidade de se planejar melhor a assistência à pessoa com ferida crônica, incluindo orientações sobre todo o processo de cicatrização, bem como esclarecer eventuais dúvidas que ele venha a apresentar. Desorientado, desanimado, irritado e, por vezes, revoltado, ele manifesta sua descrença e dúvidas quanto ao tratamento e se apega às crenças espirituais, além de não agregar representações fundamentadas nos conhecimentos científicos disponíveis.

4.6.3 Os médicos, principalmente o angiologista, são os que detêm o