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A criança como sujeito de direitos

No documento Cidade amiga da criança (páginas 37-42)

2 INFÂNCIA, CRIANÇA E CIDADE: CONCEITOS INICIAIS

2.1 INFÂNCIAS E CRIANÇAS: UM OLHAR HISTÓRICO

2.1.1 A criança como sujeito de direitos

Figura 11 - Declaração dos direitos da criança, comentada por Mafalda

Fonte: Quino (2003, p. 120).

O direito da criança

Embora eu não seja rei, Decreto, neste país, Que toda criança Tem o direito de ser feliz! (RUTH ROCHA)

A criança, desde o princípio da história, teve influência da dominação do adulto, sendo ele quem, muitas vezes, lhe atribuiu a função social. Cerisara (2004) esclarece que, durante parte desse tempo, as crianças eram vistas apenas como seres biológicos, não havia estatuto social que normatizasse ou registrasse sua existência. Considera, ainda, que, apesar de ter havido sempre crianças, seres biológicos, nem sempre houve infância, com categoria social de estatuto próprio.

A partir do século XX, e com a confirmação dos direitos humanos, houve a elevação da criança à condição de sujeito de direito. A caminhada pelo reconhecimento dos direitos da criança é fortalecida pelos discursos legais e pedagógicos que se assentavam na especificidade da infância, na busca de sua autonomia e liberdade. Soares (1997, p. 102) explica que diversas ciências (Pedagogia, Medicina Infantil e Psicologia) contribuíram para fortalecer a tendência de se separarem as crianças dos adultos “como uma categoria social especialmente vulnerável com necessidades de proteção”. Nesse sentido, as declarações

internacionais voltadas para os direitos da criança seguiram a mesma orientação, ou seja, reconheceram, inicialmente, a ideia de que “as crianças eram as fontes humanas essenciais, de cuja dimensão maturacional iria depender o futuro da sociedade”. (HART apud SOARES, 1997, p. 102). Além disso, há que se acrescentar a pertinência da conexão íntima entre a trajetória da constituição da concepção da infância e o processo de reconhecimento dos seus direitos. Na visão de Soares (1997, p. 101), os conceitos claros e validades acerca do que se entende por criança ou infância “são aquisições relativamente recentes, também a construção de direitos que dessem resposta a necessidades específicas desta categoria social têm que ser, necessariamente, conquistas recentes”.

Atualmente, muitas crianças vivem em condição de exclusão e de invisibilidade. Essa situação ocorre quando elas não têm acesso a um ambiente que as “proteja contra violência, abusos e exploração, ou quando não têm acesso a serviços e bens essenciais, sendo ameaçadas quanto à sua possibilidade de participar plenamente na sociedade no futuro”. (UNICEF, 2006, p. 7). Nesse contexto, o relatório do UNICEF conclui que as crianças excluídas “tornam-se invisíveis – tendo seus direitos negados, sendo fisicamente ignoradas em suas comunidades, impossibilitadas de frequentar a escola, e imperceptíveis para o olhar oficial”. (UNICEF, 2006, p. 35).

Em casos extremos, as crianças podem tornar-se invisíveis, efetivamente desaparecendo dentro de suas famílias, de suas comunidades e de suas sociedades, assim como desaparecem para governos, doadores, sociedade civil, meios de comunicação e até mesmo para outras crianças. Para milhões de crianças, a principal causa de sua invisibilidade são as violações de seu direito à proteção. É difícil obter evidências consistentes da amplitude dessas violações, porém há diversos fatores que parecem básicos para aumentar os riscos que ameaçam tornar as crianças invisíveis: ausência ou perda de uma identificação formal; proteção inadequada do Estado para crianças que não contam com cuidados por parte dos pais; exploração de crianças por meio do tráfico e de trabalho forçado; e o envolvimento prematuro da criança com papéis que cabem aos adultos, como casamento, trabalho perigoso e conflitos armados. Entre as crianças afetadas por esses fatores estão aquelas que não foram registradas ao nascer, crianças refugiadas e deslocadas, órfãos, crianças de rua, crianças em prisões. (UNICEF, 2006, p. 35).

Para diminuir as diferenças existentes e salvaguardar as crianças de serem vitimizadas pela sociedade, aos poucos, surgem legislações para que os seus direitos sejam garantidos. É o caso de três documentos internacionais, voltados para os direitos da criança, que marcaram a trajetória da concepção atual da criança como sujeito de direitos. São eles: a Declaração sobre os Direitos da Criança de Genebra (DDC) (ONU7, 1924), a Declaração sobre os Direitos da Criança (DUDC, 1959) e a Convenção Internacional dos Direitos da

Criança (CDC, 1989), essa última ratificada pelo Brasil em 24/9/90. Esses documentos deram impulso à consolidação do estatuto da infância como um lugar de direitos por terem reconhecido e assumido, de forma expressa e clara, os compromissos com o modo de ser infantil.

Sobre a Declaração de Genebra (DDC) (ONU, 1924), apesar de ter sido aprovada pelos Estados-membros de uma assembleia internacional, é preciso realçar que se caracteriza por não atender a uma obrigatoriedade da sua aplicação (sem caráter vinculativo), na medida em que não evocava, de forma precisa e clara, obrigações a serem seguidas pelos Estados signatários. Cabe frisar que ela é uma declaração e não um acordo e, por isso, tem apenas um valor moral e não força de uma lei internacional. Mas, apesar disso, foi a partir desse documento que surgiu o momento-chave de um percurso de construção e consolidação da ideia das crianças como sujeitos de direitos.

O Brasil possui uma das legislações mais avançadas a respeito dos direitos voltados à criança e ao adolescente. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei Complementar nº 8.069/1990, é “um instrumento jurídico que transpõe para o plano nacional os direitos previstos na Convenção dos Direitos da Criança, prevê a adoção de mecanismos e fornece diretrizes para que as políticas públicas possam estar equipadas para promover os direitos da criança”. (PESSOA, 2005, p. 95). O Relatório Consolidado ao Comitê sobre os Direitos da Criança (BRASIL, 2003, p. 3) estabelece que:

a caracterização dos direitos das crianças e dos adolescentes como direitos humanos realça a inalienabilidade desses direitos e compromete o Estado, tanto no âmbito interno quanto internacional, a respeitá-los, defendê-los e promovê-los. Ademais, absoluta prioridade deve ser conferida a estes direitos, bem como ao atendimento das necessidades da criança e do adolescente (BRASIL, 2003, p. 10).

Ao entender crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e afirmar a existência de uma cidadania especial para tais sujeitos, busca-se estabelecer um contraponto à noção de que crianças e adolescentes são meros objetos de intervenção. Não se trata de um simples jogo de palavras entre sujeitos e objetos. A passagem da condição de objetos para sujeitos de direitos significa a mudança de concepções e de princípios norteadores de práticas que procuram, sim, mudar a realidade. Nessa perspectiva, Soares (1997) elucida que qualquer sociedade que reconheça os direitos das crianças as considera como pessoas com um estatuto socialmente reconhecido. No entanto, a autora observa que isso significa não tratá-las como adultos e sim entender que são vulneráveis e “devido a tal precisam de consideração e serviços especiais diferentes dos adultos”. (p. 119).

O Estatuto da Criança e do Adolescente define criança como a pessoa até 12 (doze) anos de idade incompletos e adolescente como sendo aquela entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade (artigo 2º), desdobrando, portanto, o conceito de criança contido na Convenção em duas fases da vida e desenvolvimento (BRASIL, 2014, s/p).

Desse modo, na busca por obter o patamar mínimo de igualdade, tão caro à dignidade humana, a Carta Magna (CF/888) situou os direitos fundamentais da criança e do adolescente no polo das prestações positivas a fim de assegurar a eles direitos, maior efetividade, com absoluta prioridade, sendo:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988).

A partir da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente de 1989, uma nova doutrina surgiu. Trata-se da doutrina da Proteção Integral que foi adotada no Brasil pela Constituição Federal e, de forma mais detalhada, pelo ECA. Criança e adolescente são definidos não mais pela situação em que se encontram, mas por serem titulares de direitos. Nesse sentido, o ECA, antes mesmo de detalhar o que fazer em casos das crianças e adolescentes estarem em situação de risco social, trouxe um rol de direitos. Sua primeira parte é sobre os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes. Assim, apresenta uma extensa lista: o direito à vida e à saúde, o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade, o direito à convivência familiar e comunitária, o direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, o direito à profissionalização e à proteção no trabalho. É por estabelecer uma gramática de direitos especiais às crianças e aos adolescentes que se pode falar que a proteção integral garante a cidadania a essa parcela da população em especial. Tais direitos são estabelecidos levando-se em consideração a condição peculiar desses sujeitos de direitos, por isso se fala em cidadania especial. (BRASIL, 2014).

A situação que se pretende superar é aquela na qual criança e adolescente eram tratados como objetos de tutela seja por parte da família, da sociedade e do próprio Estado. É dessa forma que a cidadania da criança e do adolescente deve ser compreendida. Crianças e adolescentes não são o futuro, como muito já se propagou, ao contrário, são o presente. E o presente é imediato, já que criança e adolescente têm prioridade absoluta, em razão da

condição de serem pessoas em desenvolvimento. Pois como atesta Tonucci (2005, p. 83), “a criança não é um futuro homem, uma futura mulher ou um futuro cidadão. Ela é uma pessoa titular de direitos, com uma maneira própria de pensar e ver o mundo”. Significa, então, que a família, a sociedade e o Estado estão obrigados a garantir os direitos de cidadania a essa parcela da população.

A responsabilidade é de todos. Essa foi a aposta feita pela Lei Maior. Mas, para fazer valer o artigo 227, foi promulgada a Lei Complementar nº 8.069/1990, instituindo o ECA, onde estão descritos os direitos das crianças e dos adolescentes, bem como as obrigações da família, da sociedade e do governo para com eles. O essencial é que essa lei diz que a criança e o adolescente são prioridade no Estado brasileiro e que devem receber todos os cuidados referentes à sua proteção e desenvolvimento. Como propõe este artigo do ECA:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. (PESSOA, 2005, p. 65).

Todavia, atualmente, passado o momento histórico destas conquistas que foram a criação do ECA e a adoção da doutrina da proteção integral, muitas críticas são feitas ao Estatuto, muitas no sentido de apontar que se trata de uma lei muito boa, mas que não é aplicada e que, inclusive, estaria mais adequada a países ditos do primeiro mundo.

De fato, quando se olha para a realidade, percebe-se que, constantemente, criança e adolescente não são tratados como cidadãos e seus direitos são, com frequência, violados ou não promovidos. Mas, não se pode esquecer que a lei tem uma função pedagógica, pois estabelece direitos; embora, muitas vezes, as leis não sejam cumpridas. No entanto, elas servem também como parâmetro para direcionar cobranças sobre os direitos da criança. Como disse o professor Emilio Garcia Mendez9, a lei é uma eterna tensão entre os direitos e a realidade.

Assim, é preciso conhecer as leis que protegem a criança e que a tornam sujeito de direitos, garantindo uma possibilidade de mudança da realidade.

9 Jurista argentino, professor de criminologia da Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires. Consultor autônomo da UNICEF para a América Latina e Caribe.

2.2 O DIREITO DAS CRIANÇAS AO JOGO E À BRINCADEIRA

No documento Cidade amiga da criança (páginas 37-42)

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