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4.2 DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS

4.2.1 A Criança como sujeito de direitos à luz dos Princípios da Dignidade da Pessoa

Como já mencionado anteriormente, dentre os princípios de direitos humanos mais violados e vilipendiados no contexto crianças e lixo, são os da dignidade da pessoa humana e o da inclusão social, bem como o direito ao desenvolvimento, vez que as crianças são consideradas sujeitos em formação, onde estão sendo forjadas sua noção de mundo, seu caráter, suas bases para a vida.

O princípio da dignidade da pessoa humana foi abraçado expressamente pela Constituição cidadã, de 1988, ao fazer constar em artigo 1º do Título I que dispõe sobre os Princípios fundamentais, que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, que tem como um de seus fundamentos “a dignidade da pessoa humana” (BRASIL, 1998, Art. 1o, inciso III, grifo nosso).

Cocurutto (2010) ensina que a dignidade é um valor fundamental, que deve integrar a própria noção de pessoa humana, pois é um vetor inicial e final na vida de cada um. O autor lembra que, por sua posição geográfica constitucional, tal princípio apresenta-se como núcleo

basilar do Estado de Direito, de modo que não há como haver nem democracia e nem direito, sem sua efetiva concretização em todos os ramos jurídicos da vida social (COCURUTTO, 2010, p. 47).

Desse modo, dada a importância do princípio da dignidade humana no texto constitucional, Bittar (2003, apud COCURUTTO, 2010) afirma, com relação a tal princípio que,

sob a sua significância escondem-se todos os direitos humanos, desta forma alcançando-se: relações de consumo; prestação de serviços essenciais pelo Estado; cumprimento de políticas públicas; atendimento de necessidades sociais; construção da justiça social; política legislativa; moralidade administrativa; políticas econômicas e de distribuição de recursos; políticas previdenciárias; políticas de incentivo à criação e a reprodução da cultura; políticas educacionais; políticas urbanas e rurais; políticas penitenciárias etc. (BITTAR, 2003 apud COCURUTTO, 2010, p. 48).

Nesta direção é o pensamento de Oliveira (2003), para a qual a dignidade requer um contexto real, social e material para sua concretização. Na visão da autora, “quem consegue

realizar as potencialidades básicas da vida humana tem uma vida digna” (OLIVEIRA, 2003

p. 56, grifamos).

Mas embora fixado no corpo da Carta Magna brasileira, fazendo parte do texto constitucional, o princípio da dignidade humana, tal qual outros princípios integrantes dos direitos humanos, não é incorporado imediatamente no dia a dia das pessoas pelo fato de ter sido codificado, constitucionalizado, abraçado pelo ordenamento jurídico pátrio, vez que é o resultado de algo a ser construído.

Oliveira (2003, p. 82) entende que “a construção da dignidade é um processo tanto mais complexo e longo quanto maiores as desigualdades sociais e os preconceitos e discriminações enraizados no cotidiano da sociedade”. Para a autora, para haver mudanças

socioculturais, há de se ter conhecimento dos problemas a serem equacionados, consciência de sua necessidade e disposição para a luta e o conhecimento da causa dos problemas. (OLIVEIRA, 2003).

A incorporação do fundamento do princípio da dignidade é de basilar importância para a proteção, defesa e consolidação da criança como sujeito de direito, sendo de grande valia para a concretização dos direitos humanos das crianças, sobretudo daquelas que vivem no universo dos lixões encontrados na maioria dos municípios brasileiros.

Outro princípio a ser respeitado, por ser capaz de consolidar a posição das crianças neste novo lugar social de sujeitos de direitos, é o princípio da inclusão social. Este princípio está inserido implicitamente nos incisos I, III e IV, do artigo 3º da Constituição Federal, que trata como objetivos da República Federativa do Brasil (COCURUTTO, 2010):

I – Construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...]

III – Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988, Art. 3º , incisos I, III e IV).

Ademais, visa proporcionar a todos os cidadãos os direitos sociais elencados constitucionalmente, respeitando-se o momento adequado para o gozo desses direitos que já foram assegurados pela Lei Suprema (como por exemplo, no caso das crianças, que ainda não possuem a idade mínima para alguns deles), e guarda estreita relação com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Os direitos sociais, como já mencionado neste trabalho, são os constantes do artigo 6º da Constituição Federal de 1988. São eles: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.

Não se pode excluir quaisquer destes direitos da pessoa humana, sob pena de atingir- lhe sua própria dignidade. Por isso diz-se que a inclusão social é pressuposto básico para a dignidade do ser humano (COCURUTTO, 2010).

A dignidade emerge com a inclusão social mediante a eliminação da pobreza e marginalização, redução das desigualdades sociais, e a promoção do bem de todos, sem preconceitos ou qualquer forma de discriminação, para que se tenha uma sociedade livre, justa e solidária. (COCURUTTO, 2010, p. 45).

Para o autor, tanto a dignidade quanto à inclusão são verdades universais, a serem aplicadas em toda parte, ocasião e circunstâncias. São princípios, e por isso qualquer ato que contribua com a vida digna das pessoas, beneficiará a humanidade e atenderá a concretização destes princípios. A contrario senso, todo fator que implique em exclusão social deve ser

afastado, na medida em que representa verdadeira afronta à Constituição Federal (COCURUTTO, 2010).

Uma consideração importante a respeitos destes dois princípios é que o da dignidade da pessoa humana tem caráter preponderantemente jurídico, enquanto que o da inclusão social além de jurídico é também fático, e deste modo, sua concretização depende de fatores políticos (COCURUTTO, 2003). Para o autor:

“Na essência, a inclusão ampla e irrestrita das pessoas ao convívio social com igualdade de oportunidades para a realização de uma vida feliz, dependerá da atuação dos órgãos dos três Poderes do Estado, mas o enfoque político dessa questão se apresenta primordial.” (COCURUTTO, 2010, p. 44, grifo nosso).

Assim, pode-se afirmar que as crianças que vivem no ambiente dos lixões, que deveriam usufruir preferencialmente da observância a estes princípios de direitos humanos em suas vidas, ao contrário, são as que mais sofrem com suas violações, especialmente quando não podem fazer jus aos direitos à educação, à saúde, à alimentação, a moradia, ao lazer, a segurança, a proteção da infância e à assistência aos desamparados.

E este mesmo entendimento é válido quando se observa o franco descumprimento ao Direito ao Desenvolvimento ao qual também fazem jus as crianças que convivem no universo do lixo. Sua observância seria elemento necessário à consolidação do entendimento que eleva a criança à condição de sujeito de direito.

Cocurutto (2010) analisa comparativamente o direito ao desenvolvimento das crianças previsto na Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas (1989), e o do Estatuto da Criança e do adolescente (instrumentos que serão analisados adiante, na seção 4.2.2, que trata dos instrumentos nacionais e internacionais de proteção) e constata que no ECA o modelo é protetivo (o que, segundo o autor, suscitou historicamente interpretações condizentes com a perspectiva deficitária de pessoa em processo de desenvolvimento, e não reconhecedora das competências das crianças e seu direito à participação), em contraste ao modelo de direito ao desenvolvimento preconizado pela Convenção, que é fundado na evolução das capacidades da criança (previsto no artigo 5º da Convenção), bem como na concepção que vislumbra um direito ao desenvolvimento atual, baseado na qualidade de vida da criança, ainda que numa perspectiva de futuro (conforme artigo 27 da convenção, que estabelece que “Os estados-partes reconhecem o direito de toda criança a um nível de vida

adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social”). (COCURUTTO, 2010).

Para o autor, é neste sentido trazido pela Convenção que deve ser pautado o entendimento de desenvolvimento reportado ao presente, onde há reconhecimento de competências, mas também numa perspectiva de desenvolvimento como liberdade, conforme prega Amartya Sen, na medida em que:

“[...] a expansão da liberdade é vista como principal fim e o principal meio do desenvolvimento, que deve ser entendido como a eliminação de privações de liberdade que limitem as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agentes” (SEN, 2000 apud COCURUTTO, 2010).

Assim, em se tratando das crianças presentes nos lixões, filiamo-nos a este último entendimento sobre seu direito ao desenvolvimento, vez que compreende o desenvolvimento como um conceito compreensivo, tal qual defendido por Cocurutto (2010), e voltado à plena realização dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais do ser humano, obrigando os estados e a sociedade a criar um ambiente que promova o crescimento das crianças de maneira saudável e protegida em suas capacidades físicas, mentais, a fim de que seus talentos, personalidade e potenciais desabrochem conscientemente. (COCURUTTO, 2010).

Mas estes dois princípios (dignidade e inclusão social) somados ao direito ao desenvolvimento, são apenas alguns constantes do rol de direitos humanos das crianças, que foi construído ao longo dos tempos.

4.2.2 A Construção dos Direitos da Criança no Século XX – Documentos e