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Capítulo II: Incidência constitucional no sistema de repressão às drogas

3. Cláusulas criminalizantes: a consolidação legislativa da intolerância

3.2. Crime organizado

A Lei dos Crimes Hediondos tornou-se 0 suporte legal e político- criminal para a edição da Lei do Crime Organizado em 1995. Assim, o incremento repressivo em matéria legislativa terá revigoração com a edição da

65 Alberto Silva FRANCO, op. cit, p. 48-49.

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Lei 9.034/95. Infelizmente, notaremos que os grandes equívocos cometidos pela Lei dos Crimes Hediondos estarão presentes neste novo estatuto repressivo, e da mesma forma serão constantes uma série de incompatibilidades entre as normas do texto legislativo de 1995 com a Lei 8.072/90, que, por sua vez, já era conflitante com alguns dispositivos da Lei 6.368/76.

Diante disso,

“Ambas as iniciativas legais, aquela que disciplinou 0 crime hediondo e esta que pretende combater 0 crime organizado, ressentem-se de falhas graves, que causam perplexidade ao intérprete e dificultam sobremaneira 0 trabalho dos juizes e tribunais”67

A lei brasileira sobre o crime organizado surge com inspiração do modelo italiano de combate a este novo tipo de criminalidade. Dispõe sobre os métodos para a “prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas”, estruturando, através dos órgãos da polícia judiciária, “setores e equipes de policiais especializados no combate à ação praticada por organizações criminosas” (artigo 4o, caput) (grifamos).

“A palavra ‘combate’ utilizada pelo legislador dá bem a idéia da sua filiação ao modelo neoclássico de prevenção, que consiste na crença do efeito preventivo não tanto da pena em abstrato, cada vez mais severa, senão no decorrente do funcionamento do sistema legal.

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(...) Jogam tudo no incremento do sistema, isto é, no seu rendimento. As palavras de ordem são ‘combate’, ‘luta’ ou ‘guerra’ contra 0

crime, esquecendo-se de que sua erradicação é impossível. (...) O extermínio da criminalidade é objetivo maximalista, utópico e ilegítimo e ignora 0 princípio da sua ‘normalidade’, anunciada desde Durkheim”68

Na utilização de expressões repressão e combate, a lei incorpora a noção de “guerra contra o crime”, em especial 0 organizado. Nos termos da Política Criminal repressiva e da ideologia que a estruturou, notamos de imediato profunda harmonização com os postulados e 0 alvo determinado pela Lei 8.072/90. Fica ainda mais clara a intenção do legislador, no momento em que se percebe que a Política Criminal norte-americana, no final da década de oitenta e início dos anos 90, vincula-se essencialmente à problemática do tráfico ilícito de entorpecentes, contrabando de armas e criminalidade organizada. Não podemos olvidar que o desenvolvimento estratégico de combate às drogas deveu-se à elaboração do programa nacional de repressão ao crime organizado pela Comissão Presidencial sobre o Crime Organizado, ainda no governo de Ronald Reagan.

Porém, discussão fundamental precisa ser levantada: o crime organizado é realidade no país?

Segundo L. F. Gomes, o Brasil, apesar de parecer evidente que não haja nenhuma matriz de crime organizado internacional, encontraria demonstrações palpáveis de sua existência, particularmente no tráfico de

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entorpecentes, contrabando de armas e de mulheres69.

“Todo diagnóstico social é muito problemático e discutível no Brasil, como sabemos, porque temos uma carência quase absoluta de investigações e dados empíricos. Apesar disso, talvez possamos arriscar que 0 crime organizado em nosso território, ou seu lado mais saliente, esteja ligado ao tráfico de drogas e de armas, corrupção (fraude contra 0 erário público ou contra a coletividade),

7n

furto e roubo de automóveis e roubo de cargas” .

O fenômeno carioca é 0 de maior relevância na imprensa nacional, vinculando o tráfico de drogas a ‘organizações’ como Comando Vermelho e Terceiro Comando.

Algumas críticas parecem salutares sobre esta questão.

Segundo o penalista Nilo Batista, ex-secretário de Segurança Pública e ex-governador do Rio de Janeiro, não podemos afirmar com precisão verdadeira organização entre estes grupos. Na realidade, afirma Nilo Batista, estas supostas ‘organizações’ não passam de “um banditismo que se auto- devora”1].

Apesar de estarem, em tese, vinculados com a corrupção dos órgãos repressivos do Estado, com 0 narcotráfico e com 0 contrabando de armas, fica difícil, pela falta de informações específicas, vincularmos a criminalidade carioca com as grandes redes transnacionais de tráfico de

69Luis Flávio G OM ES, op. cit., p. 63. 70 Ib. ibdem.

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estupefacientes e com os Cartéis da droga em determinados países da América Latina.

Podemos, a partir da análise concreta sobre os dados que nos são apresentados diariamente pela imprensa, apenas afirmar que o Brasil é uma das rotas internacionais de contrabando e pólo consumidor em pequena e média escala. A produção e 0 refinamento de drogas, caso da maconha e cocaína respectivamente, podemos encontrar no território nacional, mas em índices irrisórios, se comparados aos ‘grandes produtores’ internacionais.

A própria noção de Cartéis é muitas vezes questionada, no momento em que tais rótulos são normalmente empregados aleatoriamente e com grau enorme de sensacionalismo. Rosa dei Olmo, ao referir-se ao caso paradigmático do Cartel de Medelín, acredita que o termo é aplicado a “quatro rudes rapazes colombianos”72. Contudo, este etiquetamento proporciona, simbolicamente, grave efeito:

“Eles são de fato muito rudes e muito ricos [Cartel de Medelín], porém, esta publicidade sensacionalista construída em torno deles, apenas os converte, ao menos no discurso, em ‘Super-homens do inferno’, o que acaba glorificando-os e contribui para a proliferação de novelas escritas na América Latina sobre suas vidas”73.

Desta forma, podemos concluir, seguramente, que “não existe, no entanto, consenso sobre tais ‘etiquetamentos ’, que muitas vezes são feitos com

72 Rosa dei OLMO, O impacto da guerra americana à droga sobre o povo e as instituições democráticas da América Latina, p. 592.

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muita dose de discricionariedade”74.

Que existem influências e que o Brasil é país com características de filial no que tange ao Crime Organizado relativo aos entorpecentes, parece- nos claro. O que indagamos são os rótulos aplicados pela imprensa numa visualização perfeita sobre fenômeno pouco estudado e com inúmeras dificuldades de identificação.

Seria possível identificarmos com màior precisão, no campo da criminalidade organizada, os cartéis de fraude contra os bens da união, a partir de amplo processo de corrupção institucionalizada.

Naturalmente, pelo aspecto seletivo das legislações penais, não seriamos ingênuos a afirmar que 0 público alvo desta lei são os grandes delinqüentes. Os grandes delitos - conceituados por Sutherland como “white collar crimes”15 -, a partir da experiência empírica e do saber funcional, nos demonstra que estão organicamente embutidos nas chamadas “cifras ocultas da criminalidade”76.

74Luis Flávio GOM ES, op. cit., p. 64.

75 A categoria “white collar crime” foi introduzida por Sutherland em 1940, ao referir-se às pessoas de alto grau de respeitabilidade social e que, através de uma atividade econômico-empresarial, cometem delitos. A diferença desta categona e dos criminosos comuns é que além de normalmente passarem imunes pelo Sistema Penal, em caso de condenação não sofreriam a reação social do etiquetamento.

A criminóloga venezuelana Lolita Anyar de CASTRO (Criminologia da Reação Social), ao estudar 0 câmbio paradigmático em criminologia nota que os deütos de ‘colarinho branco" raramente

eram (são) até 0 advento da Criminologia Crítica estudados pelos cnminólogos. Conclui, pois,

parafrazeando Proudhon, que “a grande miséria da Criminologia [Positivista] é de ter sido uma Criminologia da miséria"(p.15).

76 A categoria “cifra oculta da criminalidade” - ‘numems obscurus’ - corresponde, em Criminologia, a uma categona desenvolvida a partir do estudo das estatísticas criminais. Segundo Lola Anyar de CASTRO (op. cit.), a criminalidade legal “é aquela que aparece registrada nas estatísticas oficiais”, “(...) são estatísticas que registram somente os casos em que houve condenação”. A criminalidade legal, se diferencia da criminalidade aparente, que é “toda a criminalidade que é conhecida p o r órgãos de controle social - a policia, os juizes, etc. ainda que não apareça registrada nas estatísticas (porque ainda não tem sentença, porque houve desistência

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Desta forma, fica clara a opção do legislador em privilegiar, na questão do crime organizado, 0 aparelhamento do Estado para repressão do tráfico ilícito de entorpecentes. E, como era de se esperar, deparamo-nos com uma legislação totalmente falha em matéria conceituai e extremamente retrógrada em seu aspecto processual.

O artigo primeiro da Lei 9.034/95, remete a questão do crime organizado ao tipo de quadrilha ou bando elencado no artigo 288 do Código Penal. O Projeto de Lei 3.516, vetado pela Câmara dos Deputados, elaborado pelo constitucionalista e Deputado Federal Michel Temer, conceituava o delito em seu artigo 2o. O projeto determinava como organização criminosa “aquela que, por suas características, demonstre a exigência de estrutura criminal, operando de forma sistematizada, com atuação regional, nacional e/ou internacional

De acordo com o projeto de Michel Temer, as principais fontes para caracterização do crime organizado seriam a configuração de associação ilícita organizada, 0 que devemos entender como estável, permanente e hierarquizada, com poder de atuação regional, nacional e/ou internacional.

da ação. ou porque não se encontrou o autor, ou porque, p o r múltiplas razões legais ou factuais, o processo não seguiu o seu curso normal). A criminalidade real, “<? a quantidade de delitos verdadeiramente cometida em um determinado momento”(p. 67).

A cifra oculta representaria a diferença entre a criminalidade aparente (0 conhecido) e a

criminalidade real, determinando uma porcentagem de não incidência dos aparelhos repressivos do Estado. Prossegue Lolita Anyar:

“Pode-se, pois. observar, facilmente, que há diferença de volume entre a criminalidade aparente, criminalidade legal e criminalidade real e que esta última não é conhecida em sua real extensão. Entre a criminalidade real e a criminalidade aparente, há uma enorme quantidade de casos que jam ais serão conhecidos pela polícia. Esta di ferença ê o que se denomina ci fra obscura, cifra negra ou delinqüência oculta. A diferença entre a criminalidade real e a aparente seria, pois, dada pela cifra negra”(p. 68).

Normalmente, como afirmamos, os grandes crimes econômicos se inserem nesta criminalidade invisível.

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Entretanto, o projeto de lei não foi aprovado, sendo a redação em vigor desprovida de qualquer tipo de conceituação sobre esta nova categoria no Direito Penal pátrio.

No texto da lei, há referência expressa aos crimes de quadrilha ou bando, bem como há utilização constante do termo organizações criminosas, isento de teor conceituai.

Para Luis Flávio Gomes, a nova lei introduz cláusula geral, tipo aberto77 que flagrantemente fere o princípio da legalidade em sua subespécie previsibilidade mínima.

“Tudo indica, como se percebe, que a vontade da Lei foi criar uma nova modalidade criminosa, qual seja, a ‘organização criminosa’. Aliás, a partir do art. 2o, a Lei 9.034/95 só tem sentido se entendermos que o legislador efetivamente criou essa nova modalidade criminosa. De forma bastante surrealista, mas criou”78

Para dirimir esta controvérsia quanto ao conceito, entende o juiz paulista que a lei determinou requisitos mínimos necessários para a

77 Nos casos em que o tipo não contém, por completo, a descrição da conduta ilícita, temos o tipo aberto. São tipos abertos, ou necessitados de complementação, aqueles em que a lei descreve só parte das características da conduta proibida, reenviando ao juiz (jurisprudência) a exigência de complementar o restante. O tipo aberto tem uma carência na função indiciária da antijuridicidade, bem como de elementos de determinação material.

Ao contrário das normas penais em branco, a complementação do tipo será através da jurisprudência, e não por via de complementação homóloga ou heteróloga. Alguns autores entendem como plenamente constitucional esta técnica legislativa lacunar pela adoção do principio da Reserva Legal Relativa (cf. Miguel Pedrosa MACHADO, Breve confronto entre normas penais em branco e tipos abertos, p. 151). Data venia, discordamos inteiramente desta tese.