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Crimes dolosos contra a vida: competência e atribuição

4. Processo Penal Militar e Bem Jurídico

4.5. O princípio do juiz natural

4.5.6. Crimes dolosos contra a vida: competência e atribuição

Por conta da Lei n.º 9.299/96, estão fora da competência da Justiça Militar os crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis, passada a competência para o Tribunal do Júri.

A esse respeito, Cícero Robson Coimbra Neves e Marcelo Streifinger ponderam:

“antes da Emenda Constitucional n.º 45, de 08 de dezembro de 2004, sustentávamos a transmudação dos crimes dolosos, nos patamares expostos, de crimes militares para crimes comuns, e não a simples transferência de competência de julgamento, por ser hipótese inconcebível, já que a competência das Justiças Militares estaria e está grafada nos arts. 124 e 125, § 4º, da Lei Maior, não podendo ser alterada, pois, por lei infraconstitucional. Hoje, com a nova redação dada ao art. 125, § 4º, da CF, no âmbito estadual é possível afirmar que o crime ainda se caracteriza como militar, porém julgado pela justiça comum, permanecendo a situação anterior para a esfera federal, uma vez que o Constituinte derivado, por enquanto, não alterou o disposto no art. 124 da Carta Maior”.235

A partir dessa visão, reputada acertada, surgem questões de grande relevância, como, por exemplo, a referente ao excesso culposo praticado na legítima defesa. Isto porque, enquanto o Código Penal comum prevê punição para o agente que excede culposa ou dolosamente (artigo 23, parágrafo único), o

Código Penal Militar normatiza que não é punível o excesso quando resulta de escusável surpresa ou perturbação de ânimo, em face da situação, disciplinando ainda que o julgador poderá atenuar a pena ainda quando punível o fato por excesso doloso (arts. 45, parágrafo único, e 46).

Seria, assim, possível, em tal hipótese, a aplicação do princípio da lex

tertia, ou seja, uma terceira via fruto da combinação de leis, a fim de que fossem

tomados preceitos e critérios mais favoráveis ao réu, e, no caso do Tribunal do Júri, a específica formulação de quesitos acerca do excesso escusável previsto pelo Código Penal Militar.

Não bastasse, no que se refere a possibilidade de conflito de atribuições entre a polícia judiciária comum e a polícia judiciária militar relativamente à legitimidade da investigação envolvendo crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis, em período de paz, tem-se que inusitadas situações podem surgir.

A discussão atravessa, necessariamente, mais uma vez, implicações afetas ao princípio do juiz natural.

Assim, a nosso sentir, o deslinde da questão passa pela rigorosa exigência de uma interpretação sistêmica a partir da nossa Lei Republicana.

Confira-se, assim, o cenário constitucional em torno dos direitos fundamentais.

A Constituição Federal, no Título II, enumera, de maneira exemplificativa, direitos e garantias individuais, dispondo, especialmente, no

que serve de mote no presente trabalho, que:

“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

(...)

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Ainda na quadra constitucional, em termos de organização da defesa do Estado e das instituições democráticas, tem-se que:

“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal; (...)

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela

União e estruturado em carreira, destina-se a:

I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. (...)

§ 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbe, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

outubro de 1969, dispõe:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: (...)

II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996) Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica. (Redação dada pela Lei nº 12.432, de 2011).

Por fim, o Código de Processo Penal Militar (Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969, assevera que:

“Art. 82. O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz: (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 7.8.1996)

(...) § 2° Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum. (Parágrafo incluído pela Lei nº 9.299, de 7.8.1996).

Dos textos normativos apresentados, surgem, em síntese, pelo menos, duas perspectivas diametralmente opostas acerca da matéria, objeto de análise neste item: a primeira, sustenta a legitimidade da polícia judiciária militar para a realização de atos investigativos, por meio do inquérito policial militar, dada a natureza e a função militar, a partir da nova redação dada ao art. 82 do Código de Processo Penal Militar, de maneira que, ao cabo do procedimento inquisitivo, aos autos seriam remetidos à justiça comum para a instauração de eventual ação penal; a segunda, afasta a validade do exercício da polícia judiciária militar, reconhecendo apenas a legitimidade da atuação da polícia judiciária comum, por intermédio da instauração do devido inquérito policial.

A questão sofreu questionamento junto ao Supremo Tribunal Federal, pela via jurisdicional concentrada, vindo a questão, embora decidindo-se em um primeiro momento pela atribuição concorrente da polícia judiciária militar e da polícia judiciária comum, a não ser levada adiante por faltar legitimidade ativa à demandante. 236

236 Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.494-3 (MC) – Distrito Federal, de

Resta, pois, que a matéria seja enfrentada, no mérito, pela Corte Suprema, a qual novamente se vê com a questão pendente de apreciação na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4.164, manifestando-se a Procuradoria-Geral da República pela possibilidade de convivência da dupla atuação investigativa.

Aliás, vale acentuar que a interpretação jurídica, de uma forma ou de outra, deve atentar para unidade do complexo normativo, no sentido de que:

“O jurista deve se um regente de orquestra, apto a dominar e coordenar todos os instrumentos do direito: a solução jurídica não pode provir do som, por vezes discordantes, de uma disposição isolada, mas depende para sua compreensão, para sua aplicação e sua execução dos princípios, das instituições, dos conceitos e dos procedimentos técnicos de ordem jurídica geral. O jurista não pode ser nem um mero autômato, condenado à aplicação servil de uma regulamentação exageradamente meticulosa, nem um aprendiz de feiticeiro que desencadeia consequências desordenadas e imprevistas por ignorar a dependência e a inserção da regra de direito em seu contexto”.237

No afã de garantir a atuação legítima do Estado, no que diz respeito ao convívio harmônico de seus aparelhos administrativos internos, como é o caso das polícias, confira-se o que aduz Sérgio Buarque de Holanda, inteligência das

237 BERGEL, Jean-Louis. Teoria Geral do Direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São

maiores, em um de seus opúsculos:

“O Estado, entre nós, não precisa e não deve ser despótico – o despotismo condiz mal com a doçura de nosso gênio – mas necessita de pujança e compostura, de grandeza e solicitude, ao mesmo tempo, se quiser adquirir alguma força e também esta respeitabilidade que os nossos pais ibéricos nos ensinaram a considerar a virtude suprema entre todas. Ele ainda pode conquistar por esse meio uma força verdadeiramente assombrosa em todos os departamentos da vida nacional. Mas é indispensável que as peças de seu mecanismo funcionem com harmonia e garbo”.238

Assim, nos parece que a instauração de inquérito policial militar pela autoridade policial militar, na hipótese de crime praticado por militar contra civil, servirá de óbice à instauração de investigação por parte da polícia judiciária comum, e vice-versa, haja vista que não pode o Encarregado do Inquérito Policial Militar ser corregedor de Delegado de Polícia, e a recíproca é verdadeira.