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6.3 Alguns tipos de situações de anormalidade vivenciada pelos Estados

6.3.1 Crise econômico-financeira mundial

Nos últimos anos, desde 2007, a crise financeira tem sido assunto presente na pauta global, especialmente desde o colapso no mercado imobiliário dos Estados Unidos da América, que trouxe consequências tanto para os países desenvolvidos, como para os países em desenvolvimento, das quais se pode citar como exemplo o crescimento das taxas de desemprego, a perda de rendas, a perda de benefícios previdenciários e outros.

A interdependência hodierna que existe entre as economias e os sistemas financeiros do mundo inteiro facilitou a ampliação da crise para o nível mundial, trazendo a cada país, de forma diferente, as consequências do impacto desta, e demandando, portanto, a efetivação de medidas conforme a realidade vivenciada por cada Estado.

Não é novidade a ideia de que a crise de inadimplemento de crédito, chamada crise do sub-prime, seja o detonador da atual crise financeira, isso porque, no auge da bolha imobiliária, as famílias norte-americanas foram convencidas a contrair uma vastidão de créditos imobiliários, tanto pela baixa taxa de juros como pela facilidade ocasionada pela concorrência desenfreada entre os bancos. Estes, no intuito de aumentarem sua quota de mercado, permitiram grandes empréstimos a essas famílias, que futuramente não tiveram possibilidade de pagar os respectivos encargos, favorecendo assim um aumento no valor dos prédios, que, por consequência, tornou-se excessivo e ocasionou uma dificuldade generalizada de solvência e até a falência de alguns bancos.213

Porém, sob um ângulo tecnicista, para ANTÓNIO ROMÃO, a atual crise resultou-se

de três fatores essenciais: “[da] natureza intrínseca ao funcionamento do sistema de economia de mercado; da crescente financeirização da economia globalizada e desregulada; [e] de desajustamentos, acrescidos pela acção e/ou omissão de Agentes políticos, económicos e financeiros – públicos e privados – num quadro em que o pensamento liberal (neoliberal, dirão muitos) se tornou dominante nas três últimas décadas.”214

213 JOÃO FERREIRA DO AMARAL, A crise e as instituições, in, Instituto Português de Relações Internacionais, A grande crise, n.º 22, Lisboa, jun. 2009, trimestral, pesquisável em:

http://www.ipri.pt/images/publicacoes/revista_ri/pdf/ri22/RI22_Artigo1_JFAmaral.pdf.

214 ANTÓNIO ROMÃO, Crise actual, algumas notas e reflexões, in, JOAQUIM RAMOS SILVA (Org.),Portugal, a Europa e a crise económica e financeira internacional, n.º 21, Coimbra: Coimbra, 2012, pp. 37-38, (coleções econômicas).

Para o Conselho de Direitos Humanos, por sua vez, a origem e as causas da crise são complexas e possuem múltiplas faces, mas há de se notar que as causas também estão ligadas à fragilidade e ao desequilíbrio econômico-financeiro visto no atual sistema mundial.215

Observe-se que a crise económica, além de acarretar a falta de confiança, endividamento, incumprimento, falências, redução da procura, dificuldades de crédito, desemprego etc., provoca uma redução nos níveis de qualidade de vida da população capaz de promover instabilidade ou crise sociais, pois, diante de um aumento dos défices orçamentais e de dívidas públicas, o Estado fica cada vez mais limitado a fazer somente aquilo que está contido nos patamares de seus recursos disponíveis, não restando-lhe outra alternativa senão se justificar perante seus cidadãos sob o amparo da reserva do possível.

De fato, são tão sérios esses possíveis resultados que, como se tem percebido, com os Estados acuados orçamentalmente, as pessoas que se encontravam em situação de limitação de direitos básicos, como o direito à alimentação, à habitação e à saúde, pleiteando um mínimo de dignidade através do exercício das respectivas prerrogativas desejadas, agora tem lutado para garantir esses mesmos direitos, mas por razões que não são outras senão a própria sobrevivência (relembre-se o caso da Venezuela216). Isso, por óbvio, contraria as normas constitucionais que asseveram como dever do Estado a obrigação de tomar todas as medidas necessárias para alocar o máximo de recursos disponíveis nas implementações dos direitos sociais, de forma que se possa aliviar os impactos da crise financeira.217

215 “The origins and causes of the crisis are complex and multifaceted, but it is widely recognized that many of the main causes of the crisis are linked to systemic fragility and imbalances that contributed to the inadequate functioning of the global economy.” (United Nations Human Rights Council, Report of the Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights on the impact of the global economic and financial crises on the realization of all human rights and on possible actions to alleviate it, Promotion and protection of all human rights, civil, political, economic, social and cultural rights, including the right to development, General Assembly, 13th

session, Feb. 18, 2010, A/HRC/13/38, pesquisável em:

http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/13session/A-HRC-13-38.pdf.)

216 Venezuela, entenda. / PATRICK D. DUDDY, Political crisis in Venezuela, Contingency planning memorandum n.º 16. / PATRICK D.DUDDY, Political crisis in Venezuela, Contingency planning memorandum update.

217 Cite-se o caso em que uma criança carente, que padece de Leocoma e aguarda transplante de córnea, recorreu ao judiciário para garantir tratamento médico à ela, no intuito de manter o mínimo de dignidade humana. O judiciário, portanto, decidiu pela indisponibilidade do direito à vida e à saúde, assegurando então a necessidade da menor. Veja a ementa da decisão: “PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DO DISPOSITIVO LEGAL VIOLADO. SÚMULA 284/STF. FORNECIMENTO DE TRATAMENTO MÉDICO A MENOR. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DIREITO INDIVIDUAL INDISPONÍVEL. LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA DO PARQUET. ART. 127 DA CF/88”. (Acórdão do Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n.º 871.215, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Brasil, 17 de outubro de 2006, publicado no Diário do judiciário de 07 de novembro de 2006, pesquisável em:

Assim, considerando a obrigação do Estado perante a sociedade, várias medidas de política orçamentária, as quais são bastante restritivas, foram e tem sido criadas para novamente se reestabelecer um estado de normalidade em relação ao pleno exercício de direitos subjetivos no contexto da atual crise mundial e, especialmente, da Europa. Cite-se como exemplo o “Memorandum de entendimento com a Troika”,218 acordo pelo qual os vários países europeus signatários, representados pela União Europeia, e o Fundo Monetário Internacional solicitaram a Portugal o cumprimento de uma série de medidas, como contrapartida do empréstimo concedido ao país em face do incremento da dívida pública e da subida da taxa de juros exigida pelos financiadores internacionais, objetivando com isso a redução dos défices orçamentais, através de programas de cortes na despesa pública e de aumento de impostos.219

Nesse quadro, todavia, embora tenham sido firmadas várias medidas de ordem financeira para se estabilizar a crise atual e se promover o crescimento, analisando algumas situações, é possível notar que muitas vezes as medidas aplicadas têm provocado consequências contrárias ao objetivo pretendido, pois até mesmo alguns direitos fundamentais chegaram a ser violados. Isso se dá porque as medidas aplicadas no estado de crise financeira, visando reduzir os gastos públicos, ocasionam a afetação na vida social da população, como a redução dos benefícios assistenciais (pensões, subsídio de desemprego etc.) e os cortes na qualidade de serviços sociais em geral (saúde, educação, acolhimento de crianças etc.), e, por isso, se não devidamente controladas e gerenciadas pelo poder público, podem implicar num verdadeiro cerceamento de direitos o qual ultrapassa os patamares mínimos destes.

Essa violação de direitos fundamentais sociais em situação de crise financeira tem sido muito discutida, mas é notório que determinados Estados continuam desrespeitando tanto suas normas internas, incluindo as próprias constituições, como as disposições presentes nos pactos e convenções internacionais. As medidas aplicadas têm demonstrado um completo desrespeito aos princípios da igualdade e da não-discriminação. Note-se, por exemplo, o caso da Grécia, no qual o país permitiu, através de legislação, o despedimento de trabalhadores, com contrato indeterminado, sem qualquer aviso prévio, violando o n.º 4 do artigo 4 da Carta Social

218 European Union, Memorandum of understanding on specific economic policy conditionality, May 17, 2011, pesquisável em: http://ec.europa.eu/economy_finance/eu_borrower/mou/2011-05-18-mou-portugal_en.pdf.

219 PAUL P.CRAIG, Economic Governance and the Euro Crisis, constitutional Architecture and Constitutional Implications, May 5, 2014, in, MAURICE ADAMS (Ed.) / FEDERICO FABBRINI (Ed.) / PIERRE LAROUCHE (Ed.), The Constitutionalization of European Budgetary Constraints, Oxford: Hart Publishing, 2014, Oxford Legal Studies Research Paper No. 30/2014=artigo de pesquisa de estudos jurídicos da Universidade de Oxford, n.º 30/2014, pp. 22-24, 32, 34-35, 39, pesquisável em: http://ssrn.com/abstract=2433071 ou

Europeia220. Também é possível observar o desrespeito através dos cortes de pensões de velhice, conforme o citado acordo de Troika, os quais também violaram o n.º 3 do artigo 12 da referida carta, que prevê a obrigação de, progressivamente, elevar-se o nível do regime de segurança social.221

Ademais, o que se pode constatar, diante da ação dos tribunais, é que estes tem permitido uma certa margem de liberalidade do Estado, enquanto as constituições apresentam uma posição clara de proteção dos direitos fundamentais.222 O grande problema dessa questão traduz-se no surgimento de manifestações populares capazes de gerar instabilidade política e social e na postura das autoridades políticas que muitas vezes, sob o argumento da urgência, da necessidade e da reserva do possível, tem atuado de forma desrazoável, negligenciando as obrigações formais, como a transparência e o devido processo legal e democrático, e as obrigações materiais, como o atendimento ao mínimo existencial na concretização de vários direitos fundamentais sociais.

Assim, deve-se levar em conta que uma crise, tal como o é aquela por ordem financeira, pode demandar ações estatais emergenciais e restritivas. Todavia qualquer medida apresentada ou instaurada em uma situação de crise, incluindo-se a de caráter econômico- financeiro, deverá estar em conformidade com os princípios legais nos textos constitucionais, assim como deverá estar em perfeita consonância com os pactos e convenções internacionais, para se evitar que a busca pelo estado de normalidade se transforme em um verdadeiro caos. Isso significa que as ações governamentais efetivadas não podem, dentre outras coisas, reduzir a manutenção da prestação de serviços, especialmente dos que são básicos, como fornecimento da de saúde, educação e segurança nos termos da respectiva Constituição, tolhendo-se a fruição de direitos sociais fundamentais.

220 Assim dispõe o referido dispositivo ao tratar sobre o direito a uma remuneração justa: “Artigo 4.º [...] Com vista a assegurar o exercício efectivo do direito a uma remuneração justa, as Partes Contratantes comprometem- se: [...] 4) A reconhecer o direito de todos os trabalhadores a um prazo razoável de pré-aviso no caso de cessação de emprego [...]”. (Carta Social Europeia [Revista] do Comitê Europeu de Direitos Sociais [do Conselho da Europa], Estrasburgo-França, 03 maio, 1996, pesquisável em:

http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/carta_social_europeia_revista.pdf.) 221 European Committee of Social Rights of the Council of Europe, Committee on Social Affairs, Health and Sustainable Development, Austerity measures, a danger for democracy and social rights, Parliamentary Assembly, Rapporteur Mr. Andrej Hunko, AS/Soc (2012) 06, Asocdoc06_2012, Germany, Jan. 20, 2012, pesquisável em:

http://www.andrej-hunko.de/start/download/doc_view/198-austerity-outline-report.

222 Auto n.º 9/2012 del Tribunal Constitucional de España de 13 de enero de 2012, Recurso de amparo n.º 5241- 2011, Espanha, BOE n.º 36, BOE-A-2012-2148, 11 feb. de 2012, pp. 152-164, pesquisável em: