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Para que existam novos paradigmas em medicina é necessário que estejam ligados a diversos acontecimentos, situações e condicionamentos complexos, de natureza ao mesmo tempo socioeconômica, cultural e epidemiológica. Entre esses acontecimentos fundamentais, destaca-se um conjunto de eventos e situações que podem ser denominados de crise da saúde e da medicina, características do final do século e do milênio. (LUZ, 2005).

No pensamento de Luz (2005), um dos elementos dessa crise é o crescimento das desigualdades sociais no mundo: nas sociedades capitalistas avançadas (predominante no Primeiro Mundo); as do capitalismo dependente (predominante no Terceiro Mundo); as sociedades oriundas dos destroços do socialismo; e o conjunto de países subdesenvolvidos do Continente africano, às vezes denominados de Quarto Mundo. Isto se constitui num conjunto, submetido às leis de uma economia capitalista que atinge um estágio de internacionalização e dominância completa sobre o planeta, processo que economistas e cientistas políticos têm chamado de globalização.

[...] Essa crise se torna particularmente aguda nas sociedades onde há desigualdade social profunda, como no continente latino-americano, com a grande concentração de renda atual gerando problemas graves de natureza sanitária, tais como desnutrição, violência, doenças infecto-contagiosas, crônico-degenerativas, além do ressurgimento de velhas doenças que se acreditavam em fase de extinção, tais como a tuberculose, a lepra, a sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis, que se aliam a novas epidemias como a AIDS. Tudo isto, sem mencionar o consumo de drogas como cocaína e crack, que tem crescido em proporção maior entre nós que nos países do Primeiro Mundo. (LUZ, 2005, p. 148) [...].

Além dos aspectos mencionados, outros fatores contribuem para aumentar a crise. De acordo com os sociólogos franceses que estudam as relações saúde-doença, entre eles Michel Joubert88, ao analisarem uma síndrome coletiva, ou biopsíquica, identificaram alguns episódios “como dores difusas, depressão, ansiedade, pânico, males da coluna etc., cunhando-os de pequena epidemiologia do mal-estar”. (JOUBERT, 1993, apud SOUZA & LUZ, 2009).

Esses transtornos têm reflexos significativos na saúde física e mental, ocasionando sofrimento, ausência no trabalho e perda de recursos na ordem de milhões de dólares anuais,

88 Enquete sócio-demográfica realizada na França, na primeira metade da década de 1990, revelou a presença de um “mal-estar difuso” em grande parte da população urbana trabalhadora, desempregada ou aposentada. (SOUZA & LUZ, 2009, p. 397).

atingindo a milhões de pessoas nas grandes cidades. Isto pode ser visto como um fenômeno de natureza tanto sanitária como cultural.

Esta epidemiologia de que fala Joubert (1993, apud SOUZA & LUZ, 2009), pode originar-se das circunstâncias das atividades laborais e das mudanças culturais características de uma sociedade globalizada.

A crise da medicina é definida por Souza e Luz (2009, p. 398), como um conjunto de fatores atuantes em diversos planos de significação, levando em consideração aspectos socioeconômicos e culturais89, analisados sobre vários planos: “[...] corporativo, pedagógico, ético, institucional, da eficácia institucional médica, do saber médico e da racionalidade médica”.

Esses planos foram divididos em dois grupos, sendo o primeiro formado pelos corporativos e pedagógicos, e o segundo englobando os demais por formarem uma complexa rede bidirecional de causa e efeito, sendo que o elemento integrador do segundo grupo, é a construção histórica do saber e da prática médica na biomedicina. (SOUZA & LUZ, 2009).

Qualquer racionalidade médica sintetiza em suas atividades (práxis) uma arte de curar doentes (tékhne), com o conhecimento ou ciência das doenças (gnose, episteme). Sobre esta questão, Souza e Luz (2009, p. 399) arguem que:

[...] Nas origens da história dessa atividade humana, tanto o conhecimento quanto a ação do médico eram sagradas, taumatúrgicas90 e sua imagem, muito próxima à do sacerdote. Entre os séculos V e II a.C. ocorreu uma primeira ruptura nesse perfil tradicional do médico. No que concerne à medicina ocidental, houve significativa laicização do conhecimento médico, que passou a buscar sua base na filosofia – a ciência da época –, por oposição aos saberes mágicos, xamânico.

Esses saberes, associados à laicização, marcam o período de controvérsias no pensamento médico, tendência à racionalização, estabelecimento de teorias sobre doenças e sistematização de práticas terapêuticas. [...]

Além da tendência à sistematização, há a formação e consolidação da corporação médica como portadora do saber filosófico (portanto verdadeiro) sobre as doenças e os doentes, com a afirmação de um esprit de corps pronunciado, não sem a oposição de outros setores da sociedade, inclusive de intelectuais como Aristófanes, por exemplo, que caricaturiza os médicos em suas peças. (LUZ, 1996a, p.14, apud SOUZA & LUZ, 2009 p. 399)

Nesse período, quando a medicina ocidental começou a tornar-se ciência, ocorreu uma tendência a separar teoria das doenças, semiologia e terapêutica. Paciente e médico, entretanto,

89 Não serão aprofundados por não serem objeto deste estudo. 90 É a capacidade de um santo ou paranormal de realizar milagres.

mantinham relação integrativa com a natureza. Tratava-se ainda de um microcosmo com funcionamento análogo ao do cosmo onde a natureza exerce força medicadora (Vis medicatrix

naturae), e o papel da terapêutica ao estabelecer a saúde é prioritário, em face do conhecimento

das doenças. (SOUZA & LUZ, 2009).

A sua segunda crise em termos de racionalidade ocorre no período entre o Renascimento e Classicismo (séc. XVI e XVII), quando

[...] As disciplinas básicas da medicina (anatomia, fisiologia e patologia) foram estruturadas como parte de um projeto científico de um novo saber médico, que sobrepõe o conhecimento das doenças à arte da cura. O projeto epistemológico da medicina passa a ser a produção de conhecimento sobre as doenças, suas origens, causas e localização. (LUZ, 1988, apud SOUZA & LUZ, 2009, p. 399)

Nessa ocasião o Ser moderno, em contraste com a visão grega, não é mais considerado parte integrante do cosmo e as doenças

[...] São coisas, de existência concreta, fixa e imutável, de lugar para lugar e de pessoa para pessoa; as doenças se expressam por um conjunto de sinais e sintomas, que são manifestações de lesões, que devem ser buscadas por sua vez no âmago do organismo e corrigidas por algum tipo de intervenção concreta. (CAMARGO Jr., 1997, p. 55, apud SOUZA & LUZ, 2009 p. 399) Nessa perspectiva não é permitido à medicina apreciar aspectos aparentemente intangíveis como “emoção, consciência, energia e força vital” que, na perspectiva de Wallner (2011, p. 64), também é fraca nas doenças crônicas, onde os tratamentos são caros e demorados, como em “[...] todas as áreas em que a psique desempenha um papel (no campo psicossomático)”. Entretanto, para este autor, “A medicina acadêmica é forte no campo das próteses ou da cirurgia”.

No final do séc. XIX e início do séc. XX, acontece uma nova transformação quando a cisão agora não mais se encontra entre o pensamento e a prática médica, mas no “interior da prática”, no “agir terapêutico”, que passa a ser imposto ao médico por tékhne pré-constituída, institucionalizada, voltada para a diagnose das doenças e limitando o espaço para o exercício da arte da cura.

A invasão tecnológica na prática médica contribuiu para a formação da última importante cisão, agora no interior da milenar unidade relacional terapeuta/paciente. O uso da tecnologia médica mostra sua face obscura ao interpor-se entre o médico e o corpo do paciente, induzindo o “alheamento entre os dois”, a alienação do paciente em relação a seu próprio corpo

e a fetichização dos equipamentos médicos”, incluindo os fármacos. (ALMEIDA, 1996; LUZ, 1996a, 1996b; SAYD, 1998; apud SOUZA & LUZ 2009).

A tecnologia assumiu um papel central na moderna assistência médica, sendo que a crescente dependência de uma tecnologia complexa acelerou a tendência para a especialização e reforçou a propensão dos médicos de tratar partes específicas do corpo, esquecendo-se de cuidar do paciente como um ser total. Além disso, a prática médica foi transferida do consultório do clínico-geral para o hospital, onde se tornou progressivamente despersonalizada, quando não desumanizada. (CAPRA, 2012).

Aliado a todos esses fatores, os movimentos denominados Contracultura florescem, influenciando a sociedade.