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3.2 Semiótica da canção

3.2.6 Critérios para o exame da melodia

Tatit (1994, 1996, 1997) fala de três formas de compati- bilidade entre melodia e letra, fundamentais para o exame da canção: figurativização, tematização e passionalização.73

A figurativização está presente em toda canção, na me- dida em que lhe confere o indispensável efeito enunciativo. Varia, no entanto, o seu grau de investimento. As canções que tendem para a figurativização se aproximam bastante da 73 Como exemplo de canções em que há proeminência da figurativização, da

tematização e da passionalização, citem-se, respectivamente, Sinal fechado (Paulinho da Viola), Aquarela do Brasil (Ari Barroso) e Atrás da porta (Chico Buarque).

linguagem oral cotidiana, como se houvesse uma integração “natural” entre o que está sendo dito e o modo de dizê-lo na fala cotidiana. Nesse tipo de integração entre melodia e letra, as ascendências e os descensos característicos das enunciações entoativas próprios da fala podem ser expandidos ou contraí- dos pelo cancionista, de acordo com os efeitos entoativos que ele deseja imprimir na condução das mensagens veiculadas pela letra. O cancionista, então, conduz o projeto entoativo de uma canção criando, pela melodia, os efeitos de indagação, exclamação, hesitação e asserção. Pela atuação da figurati- vização, a melodia, em vez de se ater à métrica, aproxima-se da fala e reproduz suas marcas na condução da letra.

A preponderância desse procedimento cria um senti- mento de verdade enunciativa, que aumenta a confiança do ouvinte no cancionista e faz parecer que este não está fingindo, mas efetivamente vivenciando o que diz. Esse procedimento sugere ao “ouvinte verdadeiras cenas (ou figuras) enunciati- vas” (TATIT, 1996, p. 21), simulando de tal modo uma intera- ção direta entre intérprete e ouvinte, que este, não raras vezes, jura que o que está sendo dito está sendo dito para ele. Esse efeito se dá porque o cancionista, pela figurativização,

[...] projeta-se na obra, vinculando o conteúdo do tex- to ao momento entoativo de sua execução. Aqui, im- peram as leis da articulação linguística, de modo que compreendemos o que é dito pelos mesmos recursos utilizados no colóquio (TATIT, 1996, p. 21).

A tematização, por sua vez, caracteriza-se pelo investi- mento na segmentação, na proeminência dos ataques conso- nantais, na marcação dos acentos, na recorrência de motivos melódicos, na aceleração e na descontinuidade. Esse tipo de

tratamento melódico se coaduna com letras em que predo- mina uma conjunção eufórica, celebrada pelo autor. Aqui, o cancionista, ao formar a subdivisão dos valores rítmicos (TA- TIT, 1996, p. 22), está convertendo suas tensões internas em impulsos somáticos, para criar, como na letra, um efeito de conjunção, de identidade, de concentração melódica.

Uma canção conduzida pela tematização se desenvolve sob o signo da conjunção, e a recorrência de motivos meló- dicos nela cria um efeito de “involução”, como se a melodia apontasse para um centro de identidade gerado por uma força de concentração, ou, para usarmos as noções de fluxo tempo- ral de Zilberberg, de contenção do tempo.

O campo de tessitura, nesse caso, é pouco explorado, e a melodia evolui horizontalmente. Essa força de concentração, por sua vez, decorre da confluência do andamento rápido e da reite- ração de motivos melódicos: esta funcionando como um mode- rador da velocidade ao criar a previsibilidade musical e refrear o ímpeto melódico. O refrão, por exemplo, assume uma função similar. Em termos extensos, isto é, das relações à distância, ele se constitui igualmente como um moderador da velocidade. Por outro lado, as outras partes da canção têm uma função de desdobramento melódico. Ao atuarem como força centrífuga, imprimem um efeito de evolução e apontam para a “alteridade” melódica. O mesmo se pode dizer dos saltos de tonalidade ou

saltos intervalares de uma canção temática, pois eles representam

uma força de expansão melódica, na medida em que inauguram, muitas vezes, novas zonas de exploração tonal fora da previsão tematizante que o contorno até então delineava. Trata-se da pre- sença da alteridade melódica atuando como força centrífuga.

Do exposto, extrai-se que uma canção marcada forte- mente pela tematização não deixa de apresentar elementos que

subvertem sua tendência involutiva, abrindo o contorno meló- dico para novas direções. Ou seja, em canções dominantemen- te temáticas, a evolução sempre tende a se insinuar, nem que seja apenas para valorizar o retorno à tendência tematizante global da composição. Assim, as forças de concentração e de expansão estão sempre atuantes na canção, sempre presentes, o que varia é o grau dessa presença. Tudo se passa como se o movimento de concentração melódica, uma vez atingido certo limiar, difícil de determinar a priori, reclamasse a sua resolu- ção, originando, pelo excesso de tematização, o sentimento de

falta do movimento contrário.

Esse movimento de expansão melódica, contrário ao mo- vimento de concentração próprio da melodia tematizada, carac- teriza o processo de passionalização. Este se efetiva quando há investimento na continuidade melódica, no prolongamento das vogais, nas amplas oscilações da tessitura tonal. Por meio desse procedimento, o autor está sobredeterminando toda a canção com os estados passionais sugeridos, na maioria das vezes, pelo conteúdo das letras. Ao contrário da tendência à tematização, fundada na força de concentração melódica, o tratamento pas- sionalizante faz a melodia evoluir, instaurando um percurso de busca e valorizando os pontos de passagem em função de um fim, o retorno à identidade melódica, abalada pela intervenção da alteridade, na qual a melodia se demora. Assim, por contraste com a tematização, a conformação passionalizante da melodia funda-se numa força de expansão melódica.

Ao contrário do que acontece na tematização, o andamen- to é lento na passionalização. Como consequência disso, o con- torno melódico é valorizado ao mesmo tempo em que prevalece a desigualdade temática. No entanto, os saltos intervalares, isto é, as mudanças bruscas de tom, que confirmam a tendência à

exploração vertical das alturas própria à passionalização, têm também a função de atenuar o excesso de desaceleração das melodias passionalizantes, na medida em que quebram a gra- dação dos contornos melódicos, imprimindo um quê de im- previsibilidade na cadeia sintagmática e, consequentemente, certa aceleração. Em melodias desse tipo, longos segmentos de canções que contrastam em termos de tonalidade e que constituem as suas partes desempenham, no todo da obra, função semelhante à dos saltos intervalares. Tais transposições de altura funcionam como elementos de aceleração para con- trabalançar a tendência à desaceleração das melodias predo- minantemente passionais.

Dito isso, importa destacar, novamente, que a canção deve ser analisada sem que se privilegie qualquer de suas duas lingua- gens, verbal ou musical. Tatit se esforça para fornecer um modelo de descrição desse objeto sincrético, sobretudo porque reconhece a presença da fala, e de suas inflexões naturais, na constituição e no desenvolvimento do gênero no Brasil. Por outro lado, o autor pon- dera, como vimos, que a canção se afasta da linguagem coloquial cotidiana porque, naquela, o plano da expressão não possui uma função apenas interina. Pelo contrário, o modo de dizer uma can- ção é fundamental, seu material sonoro é constitutivo do conteúdo veiculado por ela e não mero meio de acesso a ele. Por isso, a aten- ção do analista deve voltar-se para a canção como objeto semiótico sincrético, em que, no mínimo, duas linguagens se hibridizam, a verbal e a musical (ritmo e melodia, pelo menos).