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Na canção popular, ocorre um fenômeno interessan- te. Devido à presença de algumas características da fala na sua constituição, o ouvinte tende a recebê-la sem estabe- lecer as devidas distinções entre o compositor, o intérpre- te e os elementos da enunciação enunciada. Com efeito, para o ouvinte, esses actantes se encontram numa espécie

de sincretismo, em que eles se fazem um, na construção do simulacro de uma situação cotidiana em que “alguém (intérprete vocal) diz (canta) alguma coisa (texto) de uma certa maneira (melodia)” (TATIT, 1987, p. 6). Isso se deve ao fato de que, para toda canção popular, são imprescindí- veis as inflexões entoativas e os índices da fala.47

Essa presença da fala na canção, por atribuir-lhe a naturalidade e a familiaridade do discurso coloquial, é res- ponsável pelo efeito de sincretismo entre os actantes envol- vidos no momento da execução de uma canção. De acordo com Tatit (1987), essa relação entre instâncias diferentes resulta da sobreposição de, no mínimo, duas situações enunciativas diferentes. A primeira é a que corresponde à comunicação principal entre o intérprete (destinador-lo- cutor) e o ouvinte (destinador-ouvinte), em que aquele co- munica sua canção a este, tentando fazê-lo envolver-se. A segunda é a que compreende o interlocutor e o interlocutá- rio debreados no discurso.

Esse sincretismo pode ser observado na introdução de

A palo seco, canção constante do corpus para análise.48

47 Tatit (1996, p. 12) é quem relata o momento em que começou a considerar esta hi-

pótese: “Tive, em 1974, uma espécie de insight ou de susto quando, ouvindo Gilberto Gil reinterpretando antigas gravações de Germano Matias, me ocorreu a possibilida- de de toda e qualquer canção popular ter sua origem na fala. De fato, Minha Nega na Janela, a canção que eu ouvia, estampava um texto coloquialíssimo e uma entoação cristalina. Era o Gil falando sobre os acordes percussivos do seu violão. Até mesmo a desordem geral, própria da fala, estava ali presente: melodia atrelada ao texto, sem qualquer autonomia de inflexão, pouca reiteração, nenhuma sustentação vocálica. Apenas a pulsação regular mantida pelo instrumento e alguns acentos decisivos no canto asseguravam a tematização constitutiva do samba. No mais, a fala solta”.

48 No diagrama, procura-se distribuir as sílabas do texto em termos de semitons,

de rei ses migo eu me pe olhos a de ra aber va tos di lhe

Nessa canção, o destinador-locutor quer que o destinatá- rio-ouvinte reconheça uma situação de locução comum da vida cotidiana, ou seja, aquele, por meio de um simulacro de intera- ção comunicativa, tenta persuadir este de que, mais do que sim- plesmente relatar, a canção (re)encena a relação intersubjetiva como se ela estivesse sendo experienciada no exato momento de sua execução. Para construir esse simulacro, o destinador-locu- tor, por exemplo, investe, em termos linguísticos, nos elementos de valor dêitico. Por outro lado, do ponto de vista melódico, ele dá um tratamento que aproxima o canto da fala. Observe-se, por exemplo, que a oração condicional do primeiro segmento assume uma curva descendente, como costuma acontecer na fala, em frases declarativas. Em seguida, há um salto interva-

se tar on dei

tempo em que você so você por de an no nha vier va me gun per

lar de sete semitons, que coloca em destaque a sílaba tônica de “perguntar” e o advérbio interrogativo da oração subordinada, tal como podemos encontrar na linguagem oral cotidiana. De- pois, a oração principal do segundo segmento apresenta o mes- mo perfil melódico e termina em descenso asseverativo. Esses elementos, conjugados, reforçam a presença da fala na canção, criam o efeito de iteração direta e concorrem para a sincretiza- ção dos actantes envolvidos na execução de uma canção, porque simulam um diálogo no aqui-agora em que o canto se realiza.

Sabemos, no entanto, que o eu/me e o você manifes- tados na canção não são o destinador-locutor e o destinatá- rio-ouvinte, pois eles pertencem a instâncias diferentes. São, com efeito, o interlocutor (ITºR) e o interlocutário (ITªRIO), instaurados no discurso-enunciado. Porém, durante o tempo em que a canção transcorre, o interlocutor fala ao interlo- cutário e o destinador-locutor (DºR) canta para o destinatá- rio-ouvinte (DªRIO), num sincretismo de vozes que faz da locução uma coisa só. E tudo se passa como se a linguagem verbal promovesse a construção de um simulacro de enun- ciação, e a melodia, fortemente marcada pela entoação da fala, fosse responsável por sua presentificação. Nas palavras de Tatit (1987, p. 10):

Um timbre de voz produzindo a melodia revela a ento- ação simultânea do ITºR e do DºR locutor (sincretiza- dos), fazendo com que a locução principal e o simula- cro de locução tenham o mesmo tempo de existência: o tempo da canção.

Esta identificação entre as duas instâncias assegura um sentimento de “verdade” ou de “realidade” que está na base da persuasão figurativa.

Esse processo de persuasão figurativa do qual fala Tatit consiste em acentuar a presença da fala na canção, para dar a impressão de que o ato locutivo do destinador-cantor é real e de tal forma verdadeiro que o destinatário-ouvinte tende a assumir, não raras vezes, a posição de interlocutário. Em ou- tros termos, esse sincretismo de papéis, marcado ao mesmo tempo pelos componentes linguístico e melódico, decorre da simulação da fala na canção. Quer isto dizer que quanto mais a canção se aproxima da fala tanto mais o efeito de figurativiza- ção enunciativa nela se adensa.

No caso do segmento de A palo seco em foco, é relativa- mente simples perceber, por um lado, a presença dos dêiticos, que, do ponto de vista linguístico, confere a essa canção um caráter dialogal, de interação direta entre interlocutor e inter- locutário, que vai reverberar, como vimos, na relação entre destinador e destinatário. Por outro lado, não é difícil também perceber a curva melódica que o segmento delineia, isenta de reiterações temáticas, de gradações tonais e de grandes dura- ções, quase se constituindo como fala. Nesse exemplo, temos um caso em que tanto a letra quanto a melodia concorrem para a canção assumir a feição de fala, quer dizer, de uma interação cotidiana entre dois actantes, já que

Quando o locutor se materializa num timbre de voz qualquer (o cantor), o ouvinte não consegue dissociar com nitidez a comunicação principal (DºR loc / DªRIO ouv) de seu simulacro (ITºR / ITªRIO), pois o sujeito parece ser o mesmo (TATIT, 1987, p. 10).

Se é como Tatit sugere, isto é, se a síncrese entre os actantes das duas instâncias da comunicação cancional resulta num

parecer ser o mesmo sujeito que discursa, estamos, portanto,

diante de um simulacro, de cuja construção participam o cantor e o actante da enunciação enunciada. Mais ainda: na canção popular, dado o papel que a fala nela exerce, a comunicação simulada na enunciação enunciada finda por contaminar a comunicação principal de tal modo que o destinador-cantor parece ceder seu lugar para o interlocutor e, muitas vezes, o destinatário-ouvinte entra em sincretismo com o interlocutário.