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3.1 Da semiótica do discurso à semiótica da canção

3.1.2 Instância discursiva e práxis enunciativa

Se a instância enunciativa, conforme se admite, é a ins- tância responsável pelo conjunto das operações que tornam um dado discurso presente no mundo, então a tomada de posição

que lhe é correlata seria pura singularidade. No entanto, não é isso que acontece. Cada discurso-ocorrência está inelutavel- mente ligado a uma série de outros discursos, aos quais não dei- xa de se referir. Por isso, cada ato enunciativo singular consti- tui-se a partir de um conjunto de outros atos de linguagem, que se apresentam encadeados e superpostos em um dado discur- so-ocorrência. Esse repertório aberto de enunciações participa da práxis enunciativa (seção 1.1.2.1) e sempre está subjacente ao exercício do ato enunciativo singular. Por isso, pode-se dizer que o ato enunciativo é, a um só tempo, individual e coletivo.

Nessa tensão entre o individual e o coletivo, a enunciação ganha destaque, pois é na instância discursiva que as decisões são tomadas e as estratégias discursivas se definem. Dispondo de um amplo leque de escolhas enunciativas, a enunciação e seu sujeito se caracterizam pelas seleções operadas em discur- so, entre as quais, Bertrand (2003, p. 48) destaca a:

[...] escolha de perspectiva (sobretudo em função da estrutura polêmica que permite ordenar a narração, conforme, por exemplo, a perspectiva do fugitivo ou a do policial), escolha da focalização e do ponto de vis- ta (segundo a posição adotada pelo narrador e o lugar do observador), escolha dos dispositivos de ocultação, condensação ou expansão que, pela própria textuali- zação, determinarão entre outras coisas as formas e os gêneros de discurso.

Para Bertrand (2003, p. 48), então, é lícito

[...] considerar que o percurso gerativo de sentido, sub- jacente ao conjunto dessas operações, mostra, em seu esquema de conjunto, os materiais que a enunciação

mobiliza para se realizar e que ele constitui, por isso mesmo, um modelo enunciativo.

De acordo com tal passagem, parece apropriado apro- ximar esse modelo enunciativo, resultante do conjunto das es- colhas realizadas pela instância enunciante, de um repertório de operações que acabam por caracterizar um modo de dizer, um estilo, um sujeito, enfim, cuja existência não pode ser des- vinculada da existência do enunciado e do modo como este enunciado foi construído.

Todavia, salientemos que tais escolhas serão acompa- nhadas no seu próprio curso, quer-se dizer com isso que a perspectiva adotada é a do discurso em ato. Estaremos mais atentos à emergência da significação e às operações que a pro- duzem, porque desejamos acompanhar o texto em sua leitura- -audição, já que o nosso interesse se volta para a questão do su- jeito discursivo “Pessoal do Ceará”, simulacro identitário cuja existência é posta sob suspeição. Esse sujeito, por sua vez, é um efeito de discurso criado a partir da leitura/audição dos textos elaborados por aquele grupo de artistas que deixou o Ceará no princípio da década de 1970.

Para tanto, a concepção de discurso como campo de presença é fundamental, pois a seleção (realização) de uma perspectiva, de uma focalização, de um ponto de vista, e a escolha (realização) dos dispositivos de ocultação, con- densação e expansão, próprios da textualização, implicam as outras operações previstas pela práxis enunciativa: atua- lização, potencialização e virtualização. Em outros termos, selecionar uma grandeza para um discurso é jogar com os modos de existência em discurso de outras grandezas que com ela se relacionam.

Para acompanhar o discurso no seu desenvolvimen- to, como ato de produção e de interpretação do sentido, foi preciso configurar as precondições que engendrariam o ser do sentido e reformular o nível epistemológico da teo- ria semiótica a partir de dois simulacros: um tensivo e um fórico, como vimos. E, para Tatit (1994), os valores tensi- vos e fóricos introduzidos na teoria passaram a auxiliar na construção de um modelo para dar conta dos conteúdos passionais, sendo que

[...] a dimensão passional do sujeito do enunciado espe- lha os desejos e os valores do sujeito epistêmico que co- meça, assim, a responder por todos os estratos gerativos, desde os níveis mais profundos” (TATIT, 1994, p. 42).

Segundo Tatit (1997), esse ser, tensivo e fórico, não está muito distante da construção de um simulacro do sujeito da enunciação, muito embora Greimas e Fontanille (1993) jamais tenham considerado a presença desse sujeito desde as etapas mais abstratas do percurso gerativo. Para Tatit (1997), a enun- ciação já se produz, como postulava Zilberberg (2006a), em

Razão e poética do sentido:

[...] nos termos de uma oscilação tensiva que privilegia ora os limites e as contrações, ora as progressões e as expansões do fluxo fórico. No primeiro caso, temos a criação do tempo com suas tensões expectantes e, no segundo, a criação do espaço com suas difusões e des- dobramentos narrativos. O árbitro regulador de toda essa alternância rítmica é o eu em posição de sujeito enunciador (TATIT, 1997, p. 15).

Como salienta Tatit (1997), essa etapa de precondição do sentido é um postulado teórico indispensável para o de- senvolvimento dos níveis mais concretos do percurso gerativo. É, na verdade, uma dimensão que pode apenas ser concebida, mas não formalizada, cuja presença em discurso só pode ser avaliada a partir das escolhas operadas pelo sujeito epistêmico e passional, que converte a natureza contínua dessas oscilações tímico-fóricas em descontinuidades categorizáveis.

Segundo esse modo de conceber o nível das precondi- ções de geração do sentido é que se pode entender o sujeito da enunciação, como já assinalamos, se fazendo presente no discurso, a partir da primeira cisão, a cisão primordial com a imanência do vivido, em que ele rejeita um tempo fora de con- trole, um fluxo indeterminável e imprevisível, para, com a pa-

rada, promover a primeira interrupção do fluxo fórico, e, com

a parada da parada, implementar a busca do sentido, como defende Zilberberg (2006a).

Pensando nessa etapa inicial de constituição do sentido, Tatit (1997) admite a aproximação do conceito de corpo ao de

foria e, seguindo os passos de Zilberberg (2006a), defende a

existência de uma unidade fundadora, de conjunção plena en- tre sujeito e objeto, uma espécie de elo primordial entre esses dois actantes, o que torna patente a influência da fenomenolo- gia merleau-pontyana na semiótica discursiva. Senão vejamos.

A aproximação do conceito de “corpo” ao conceito de “foria”, com sua oscilações tensivas, sugere outra inte- ressante aproximação conceitual – sempre no plano dos simulacros, desta vez entre espaço e tempo. Ao promover uma verdadeira intersecção da protensivi- dade, que define a função de sujeito, com o poder de atratividade, que define o actante objeto, a noção de

corpo circunscreve um espaço teórico de junção, de onde emana o sentido de unidade do ser. A epistemo- logia das paixões proclama, nestes termos, uma tensi- vidade original que, na preservação do elemento uno, assegura a identidade do sujeito (protensividade do sujeito mais potencialidade do objeto) e que, na parti- ção desta unidade básica, cria a alteridade e o próprio sentido de busca (recuperação da integridade do ser). Integração e cisão constituem imagens que articulam a dimensão espacial do modelo e ajudam a representar, desde os níveis mais profundos, as manobras contínu- as e descontínuas dos discursos (TATIT, 1997, p. 14).

A existência desse horizonte fluindo no nível profundo permite não apenas pensar a primeira interrupção como cisão inaugural entre sujeito e objeto, mas, sobretudo, imaginar que, mesmo disjungido o sujeito do objeto, o elo de atratividade entre eles permanece atuante, de modo que o sujeito passa a buscar a reintegração com o objeto, da qual depende a identi- dade dele, sujeito. Em outros termos,

[...] o distanciamento do objeto só intensifica os laços de conjunção com o valor, cuja figuração mais precisa é a da nostalgia da fusão plena, quando sujeito e objeto ‘fa- ziam parte’ do mesmo continuum (TATIT, 1997, p. 16).

Segundo Tatit (1997, p. 17), graças à postulação do ní- vel tensivo-fórico e de seu fluxo temporal anterior à primei- ra cisão, em que as funções actanciais estão neutralizadas, é que podemos justificar as noções de sentimento de falta, de

espera, de desejo etc., motores da busca e razão da narrativi-

dade. Esse estado de conjunção plena, do qual o sujeito só sai pela primeira operação debreante, é, como já se disse, uma

postulação teórica sem pretensões ontológicas. Trata-se ape- nas de um simulacro para ajudar na operacionalização do nível profundo do modelo semiótico, mas que, conforme sa- lienta Tatit (1997), não deixa de sugerir o primeiro modo de atuação do sujeito da enunciação na constituição do sentido.

Uma vez concebido esse estágio continuum de tensi- vidade-fórica, que liga sujeito protensivo e objeto atrativo, sua primeira categorização ocorre no nível missivo. Nesse nível, as oscilações tensivo-fóricas se apresentam na ten- são entre a contenção do fluxo com a valorização das sa- liências (limites e demarcações), quando são privilegiados os valores remissivos, resultantes da parada, e a distensão/ expansão do fluxo, com predomínio dos valores emissivos, resultantes da parada da parada. No nível missivo, as arti- culações de sentido devem ser compreendidas como uma sintaxe rítmica que gera as descontinuidades e as continui- dades subjacentes a todo discurso, independentemente da linguagem de sua manifestação.

Esse modo de conceber o percurso gerativo apresenta a vantagem de instituir, na etapa profunda de geração do senti- do, categorias que valem tanto para a expressão quanto para o conteúdo, respeitando assim o princípio hjelmsleviano de isomorfismo dos dois planos da linguagem. Ele permite ainda a construção de categorias de análise aplicáveis a diferentes linguagens, o que favorece a homogeneização do tratamento analítico no que tange aos gêneros de composição sincrética, como a canção.

Essa possibilidade de tratamento de objetos sincréticos, em virtude do caráter temporalizante do conceito de foria, com suas oscilações tensivas, anima Tatit a elaborar uma se- miótica da canção, pois ele vê cada canção como um projeto

entoativo de um sujeito enunciante, o cancionista,61 cuja tarefa

é operar a seleção e a sintagmatização dos valores linguísticos e melódicos para a construção de uma peça cancional, a partir das diretrizes do modelo cancional brasileiro erigido ao longo do século XX.

No âmbito desse projeto teórico, a concepção temporal dos níveis fórico e missivo assume grande importância, por conta de o componente musical só poder ser apreendido em seu próprio curso, isto é, como um discurso em ato, em termos de continuidades e descontinuidades do fluxo temporal.

Embora Tatit não se filie explicitamente à corrente dos que falam de discurso em ato, cremos que, subjacente à sua proposta de análise da canção, como se poderá constatar mais adiante, pulsa esse conceito, e a construção do sentido de uma canção, sobretudo o sentido melódico, só se perfaz por meio do acompanhamento dos acidentes locais, da repercussão ex- tensa desses acidentes na totalidade da peça e da imbricação entre o componente melódico e o verbal. O conceito de discur-

so em ato aplica-se, assim, perfeitamente ao modo de exame

da canção patrocinado por Tatit, principalmente porque nele o discurso cancional é analisado em termos de densidade de presença, dentro de um campo discursivo, dos três modelos de integração entre melodia e letra (seção 3.2.6, mais adiante). Para Tatit, a análise de uma canção visa a evidenciar a significação subjacente aos efeitos de sentido gerados na sua escuta. Desse ponto de vista, o analista deve acompanhar a 61 Cancionista não é só o compositor de uma canção. Nessa categoria, incluem-se

também o arranjador e o intérprete. No entanto, estamos concordes com Tatit (1996), que aponta a integração dos componentes melódico e verbal como o ponto “nevrálgico” da canção. No caso do “Pessoal do Ceará”, isso é mais patente ainda, uma vez que o compositor da canção é, muitas vezes, seu próprio intérprete.

canção no seu próprio desenvolvimento, flagrando os aciden- tes locais e sua repercussão na totalidade do texto, com o obje- tivo de explicitar o conjunto de procedimentos adotados pelo enunciador na elaboração da peça cancional.

A nosso ver, é precisamente essa concepção dinâmica de discurso em ato que constitui o mote para Tatit (1994) construir seu método de análise da canção. Recorrendo aos conceitos saussurianos de sílaba e ritmo silábico, que haviam sido ampliados e aplicados por Hjelmslev também ao plano do conteúdo, e generalizados por Zilberberg para aplicação em todos os domínios semióticos, Tatit (1994) busca desen- volver uma teoria original para o tratamento desse objeto sincrético, teoria em cuja base de significação encontram-se as postulações rítmicas desenvolvidas por Zilberberg.

Assim como Saussure (1993) descrevia a sílaba como uma sequência sonora que envolve aberturas e fechamentos, originando fronteiras de sílaba e pontos vocálicos, numa di- nâmica em que uma operação pede a outra e vice-versa, Zil- berberg concebe, na esteira de Hjelmslev, o mesmo movimento rítmico marcando o conteúdo. Os valores missivos se alternam no texto de modo tal que “a intervenção remissiva, referen- te aos limites, convoca forçosamente um fazer emissivo, referente à extensão gradativa, para retomar a continuidade ameaçada”. E, de modo inverso, “o excesso das forças emissivas sempre resultará em parada, em imposição de limites compro- metidos com os valores remissivos” (TATIT, 1997, p. 19).

Para conceber essa sintaxe temporal própria aos dois planos da linguagem, Zilberberg (apud TATIT, 1997) decom- põe o tempo em quatro dimensões que operam simultanea- mente: cronológica, rítmica, mnésica e cinemática. Os dois primeiros atuam na ordem intensa, isto é, entre elementos que

mantêm relações de vizinhança, enquanto o terceiro e o quarto se expandem pela cadeia sintagmática, regulando as relações à distância, por isso são de ordem extensa.62

O tempo cronológico atua estabelecendo a sucessão cro- nológica dos fatos, criando a apreensão de um antes e de um depois, num fluxo ininterrupto em que o presente se faz pas- sado. O tempo rítmico atua imprimindo a lei e instituindo a identidade (igualdade) e alteridade (desigualdade) dos valores,

[...] neutralizando o sucessivo e magnetizando os contras- tes temporais. É o tempo das alternâncias e da conserva- ção do processo que substitui a fluência do cronológico pela consistência rítmica (TATIT, 1997, p. 152).

O tempo mnésico é responsável pela memória e pela ex- pectativa. Uma vez aplicado sobre o tempo cronológico, o tempo mnésico neutraliza a sucessão ininterrupta e permite a recupe- ração do passado. Quando, por outro lado, incide sobre o tempo rítmico, a célula rítmica se expande por todo o texto e cria a espera. Como desdobramento da sobredeterminação do tempo cronológico e do tempo rítmico pelo tempo mnésico, “o antes e o depois cronológicos transformam-se em passado e futuro an- corados em simultaneidade no presente” (TATIT, 1997, p. 152). Isso equivale a dizer que o tempo mnésico expande pela cadeia discursiva as leis rítmicas, criando memória e expectativa, con- trolando, assim, a evolução descontínua do tempo cronológico. 62 A oposição intensa/extensa é tomada de empréstimo à glossemática e

adaptada por Tatit (1994) para servir ao estudo da canção, cuja coerência do texto melódico deve ser analisada em termos de tensão estabelecida entre os acidentes locais e o percurso da extensão geral da obra. Para os conceitos de intenso/extenso, consulte-se Greimas e Courtés (1986).

O tempo cinemático incide sobre a sequência inteira, “acelerando ou desacelerando seus valores substanciais, já que os valores relativos não se alteram” (TATIT, 1997, p. 153). No entanto, como adverte Tatit (1997), Zilberberg já considera a questão da velocidade antes mesmo de tratar do tempo cinemático. Ao falar da tensão entre continuidade e descontinuidade, efeitos resultantes da aplicação do tempo rítmico e mnésico sobre o tempo cronológico, Zilberberg já reconhece o papel decisivo da velocidade na constituição do sentido temporal para a semiótica discursiva.

A atuação dos tempos rítmico e mnésico sobre o tempo cronológico pressupõe a expansão de leis de repetição imediata, de interação a distância, de gradação contínua, enfim, de relações de identidade cuja função básica é deter o progresso do discurso, e, com isto, assegurar, ainda que parcialmente, a in- tegridade do sujeito. Ora, todos esses processos que evitam rupturas muito bruscas entre os elementos do discurso, mantendo seus laços de continuidade como um sujeito que não perde o valor do obje- to (ou, pelo menos, o valor do valor), constituem manobras da desaceleração que visam devolver ao sujeito a duração necessária ao seu convívio com o objeto (TATIT, 1997, p. 21).

Assim, se considerarmos, como sugere Wisnik (1989), o nascimento do som musical como uma decor- rência do sacrifício do ruído, de sua ritualização, de sua domesticação, pela estabilização da matéria sonora bruta, portanto, como um produto da contenção do fluxo tem- poral, isto é, de uma desaceleração básica, podemos admi- tir, como defende Tatit (1994), que a musicalização da fala

constitui também um primeiro processo de desaceleração, na medida em que, na canção, a matéria sonora da fala, interina e assimétrica, por natureza, recebe um tratamento estético que visa, em última instância, à sua conservação. Essa conservação, por sua vez, está diretamente ligada à necessidade de remotivação do signo, própria a toda lin- guagem de natureza estética. Ela visa a constituir o ma- terial sonoro como foco de atenção, desviando-se assim da fala, em que o material sonoro funciona basicamente como via de acesso ao conteúdo.

Esse processo pode ser compreendido na base dos modos de existência semiótica. Tudo se passa como se o material sonoro da fala se realizasse nas práticas linguís- ticas cotidianas apenas para conduzir o enunciatário ao plano do conteúdo de um dado texto. Uma vez alcançado o plano do conteúdo, o material sonoro da fala se virtuali- zaria, isto é, o foco forte se concentraria no conteúdo, que poderia ser, a partir de então, expresso por outras palavras. Na canção, por sua vez, ambos os planos da linguagem se mantêm atuantes, numa relação tensiva cujo sentido ge- rado depende da interação entre a linguagem musical e a linguagem verbal. Nesses termos, a desaceleração da qual fala Tatit corresponde a uma mudança no andamento que leva da expressão para o conteúdo, fazendo com que o su- jeito da enunciação se demore no apreender a expressão e as relações semissimbólicas dela com o conteúdo. Por essa razão é que Tatit dá relevo ao andamento como categoria fundamental para o exame da canção e propõe, com base nesse conceito, um modelo de descrição para ela, que ado- taremos e que passamos a apresentar.