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3.2 Semiótica da canção

3.2.7 Melodia e letra compatibilizadas

A importância da necessária compatibilidade entre me- lodia e letra, como recurso para criar um efeito de sentido

unificado, fica evidente neste comentário extraído de Wisnik (2003). Diz ele que, durante o Estado Novo, o Departamen- to de Imprensa e Propaganda incentivou sambistas a fazerem canções elogiando o trabalho para combater a malandragem. O esforço malogrou. A razão está no fato de que, embora as letras assumissem um ethos cívico, “essa intenção era contra- ditada pelo gesto rítmico, pelas pulsões sincopadas, que [...] opõem um desmentido corporal ao tom hínico e à propaganda trabalhista” (WISNIK, 2003, p. 206). Se admitimos essa neces- sária compatibilidade, então vamos ao como ela se processa.

Conforme foi dito, a tendência à figurativização cria um efeito enunciativo, um valor de realidade, que presentifica o momento da enunciação, como se a ex- periência relatada fosse um aqui-agora. A presença da fala repercute na letra da canção, e as marcas linguísticas disso são evidentes. Todos os recursos utilizados para pre- sentificar a relação eu/tu (enunciador/enunciatário) num aqui/agora, como vocativos, imperativos, demonstrativos etc., servem para criar o efeito enunciativo próprio a toda canção. Em produções desse tipo, a melodia aproxima-se da entoação linguística, criando o efeito de que, ali, rela- tam-se acontecimentos cujas circunstâncias são revividas a cada execução.74

No dizer de Tatit (1996), a tendência à tematização, tanto melódica quanto linguística, atende às necessidades gerais de manifestação de uma ideia e de sua celebração. Sobre isto, diz o autor:

74 Tatit (1997) exemplifica com as canções Conversa de botequim, Acorda amor,

A qualificação de uma personagem (a baiana, a mulata, o folião, o jovem ou o próprio narrador) ou de um ob- jeto (o samba, a dança, o país etc.) é uma das principais formas de manifestação da reiteração na letra. A exalta- ção, a enumeração das ações de alguém (‘‘O escurinho’’ ou ‘‘Pedro Pedreiro’’, p. ex.) ou a própria construção de um tema homogêneo (a rotina em Cotidiano ou Você não entende nada ou ainda a natureza em ‘‘Águas de março’’ ou ‘‘Refazenda’’, por ex.), funcionam muito bem como espelhamento das reincidências melódicas. Este tipo de compatibilidade simples já permite a identifica- ção de inúmeras canções quase didaticamente constru- ídas: ‘‘Falsa baiana’’, ‘‘O que é que a baiana tem’’, ‘‘Palco’’, ‘‘Garota de Ipanema’’, ‘‘Beleza pura’’ etc. Reiteração da melodia e reiteração da letra correspondem à tematiza- ção (TATIT, 1996, p. 23).

A tendência à passionalização reside no investimento na continuidade melódica, no alongamento das vogais, sintomas das tensões internas do cancionista, que, transferidas para a emissão prolongada das frequências e/ou para as amplas osci- lações tonais, configuram extensamente a canção, modalizan- do-a com os estados passionais do enunciador. Se a tematiza- ção se dá no nível somático, a passionalização desvia o foco para a dimensão psíquica. A propósito, mais uma vez deixe- mos a expressão com Tatit (1997):

A configuração de um estado passional de solidão, es- perança, frustração, ciúme, decepção, indiferença etc., ou seja, de um estado interior, afetivo, compatibiliza-se com as tensões decorrentes da ampliação de frequência e duração. Como se à tensão psíquica correspondesse uma tensão acústica e fisiológica de sustentação de uma

vogal pelo intérprete. O prolongamento das durações torna a canção necessariamente mais lenta e adequada à introspecção. Afinal, a valorização das vogais neutraliza parcialmente os estímulos somáticos produzidos pelos ataques das consoantes. O corpo pode permanecer em repouso, apenas com um leve compasso garantindo a continuidade musical. Todas as canções românticas possuem essas características próprias do processo de passionalização (TATIT, 1997, p. 103).

Dietrich (2004) organiza essas três tendências (sempre presentes na canção, variando apenas o grau de presença) num quadrado semiótico que permite visualizar o modo de articu- lação entre elas.

Segundo esse quadrado semiótico, tanto a tematização quanto a passionalização representam a presença da música na canção, com suas leis de tratamento sonoro. Atuam, portanto,

como forças que visam a perenizar o material sonoro da fala, imprimindo-lhe contornos melódicos que o tornem memo- rizável, pela contenção do fluxo temporal que o caracteriza. Ambas se conjuntam no eixo complexo que as subsumem: as leis musicais.

A fala, por sua vez, constitui o termo neutro, a subsun- ção dos contraditórios da passionalização e da tematização, a ausência do tratamento musical, uma espécie de “ponto zero” em que o plano da expressão não vale como substância sonora, mas, sim, como mera via de acesso ao conteúdo.

Uma observação importante se impõe aqui. Apesar de o quadro apresentar a tematização, a passionalização e a figu- rativização como termos de uma estrutura semântica, deve- mos compreendê-las como processos que atuam simultane- amente na canção, ou ainda como forças que exercem poder de atração, localizando cada canção, cada segmento de can- ção, e, por conseguinte, o próprio fazer cancional, em pontos específicos do diagrama. Isto porque não se deve conceber, por exemplo, a ação da passionalização sem a interferência das duas outras forças complementares a ela, e isto vale para qualquer uma das tendências. A exclusividade de um dos processos descaracterizaria a canção como tal, cuja existên- cia depende da tensão entre esses três modos de integração entre melodia e letra. A escolha e a dosagem dos recursos da tematização, da passionalização e da figurativização geram efeitos de sentido diversificados na canção. Por exemplo: o mero investimento em graus tonais imediatos ou em saltos tonais intervalares age na percepção da continuidade, fazen- do a composição oscilar entre os polos do contínuo e do des-

contínuo, respectivamente, criando efeitos de aceleração ou

Esses três modos de integração entre melodia e letra po- voam o universo da canção de consumo em dosagens variadas. Estando sempre copresentes, variam quanto ao modo de sua existência semiótica em discurso. Assim, a realização da temati- zação ou da passionalização não suprime a figurativização, sem- pre atual, uma vez que não se pode prescindir da fala para a exis- tência da canção. Por isso, as marcas da irregularidade modula- tória da fala não deixam de comparecer no texto cancional, caso contrário, perder-se-ia o seu necessário caráter enunciativo.

Esses três modos de compatibilização entre letra e melo- dia mantêm, como se vê, uma relação tensiva entre si, e a presen- ça dominante, recessiva ou residual delas em uma dada canção é obra das escolhas do cancionista, que visa a criar um dado efeito de sentido, controlando a apreensão do ouvinte pela disposição de tais modos de compatibilização no campo discursivo.

Se, por exemplo, a presença da tematização torna-se de- masiadamente forte (intensidade do foco no campo de presença discursivo), a passionalização se potencializa, como resposta ao

excesso de concentração patrocinado pela tematização, e vice-

versa. Em outras palavras, a predominância das formas involuti- vas (tematização e refrão) implica a intervenção das formas evo- lutivas de desdobramento do contorno melódico, expandindo o campo de tessitura explorado pela canção, e vice-versa.

No que tange à relação entre os regimes de concentração e de expansão melódica, especificamente, o esquema abaixo, fornecido por Tatit e Lopes (2008, p. 26), dá a ver não somente a oposição de base que os liga entre si, mas também a comple- mentaridade dos contrários, em virtude de a intensidade satu- rante da presença de um regime no campo discursivo reclamar a realização do outro, como parada, isto é, como contenção do

que um dado regime dura em demasia, estabelece-se uma pro- to-sintaxe de caráter tensivo, envolvendo as duas modalidades de investimento musical no trato com a fala, concentração e expansão, cuja decorrência imediata é criar o efeito de sentido de igualdade ou de desigualdade na substância sonora.

Pelo esquema, a predominância do regime da expan- são configura-se a partir de uma desaceleração de base e da restituição do percurso melódico. Nesses casos, as trans- posições e os saltos intervalares reforçam a tendência à ex- pansão ao explorar o campo de tessitura tonal, mas também instauram desigualdades, funcionando como elementos de aceleração e de imprevisibilidade no percurso melódico. A gradação e os graus imediatos, por sua vez, contribuem com a desaceleração de base, mas atuam complementarmente na geração de identidades, na medida em que criam previsi- bilidades dentro do contorno melódico da canção. A ação simultânea desses recursos, numa canção desacelerada, im- prime nela um sentido de evolução melódica e favorece, na letra, o tratamento de temas ligados à disjunção entre sujei- to e objeto ou entre sujeitos. Nesses casos, os temas melódi- cos progridem valorizando a condução vertical da melodia e percorrem o campo de tessitura buscando a identidade, que não encontram.

No regime da concentração, a opção de base é pela acele- ração. A tematização e o refrão imprimem na canção o efeito de identidade melódica, apontando para um centro de atração. Esse movimento centrípeto responde pelo efeito de involução que as canções tematizadas assumem. Tudo se passa como se, pela reite- ração dos mesmos motivos melódicos, a canção não evoluísse, e, como consequência natural dessa não evolução, surgisse um efei- to de desaceleração, uma vez que a reiteração melódica funciona como contenção do tempo cronológico operada pelo tempo rít- mico e mnésico. O desdobramento e as outras partes da canção instauram a desigualdade por constituírem a presença da alteri- dade melódica num movimento que se delineava centrípeto.

Cumpre-nos encerrar a descrição dos modos de convi- vência entre esses dois regimes, com o trecho extraído de Tatit e Lopes (2008), por conta do seu poder sumarizante.

[...] os recursos centrais do regime da concentração (te- matização e refrão) correspondem aos recursos comple- mentares do regime da expansão (graus imediatos e gra- dação) no que tange ao critério da identidade entre seus respectivos elementos. Do mesmo modo, os recursos centrais do regime da expansão (salto e transposição) mantêm correspondência com os recursos complemen- tares do regime da concentração (desdobramento e ou- tras partes) no que diz respeito ao critério da desigual- dade de seus respectivos elementos. Essas correspon- dências flexibilizam as fronteiras entre os dois modelos de tal forma que, muitas vezes, o que é complementar num dos regimes convoca as características do que é central no outro (TATIT; LOPES, 2008, p. 26).

Apelando, mais uma vez, para a ideia de discurso em ato, podemos dizer que os autores admitem, de uma maneira

geral, a coexistência dos dois regimes nas canções. Um e outro regime se fazem sempre presentes no campo discurso de uma canção, mas eles variam em termos de grau de presença. Na realidade, ambos mantêm uma relação tensiva entre si, de tal modo que a realização de um regime pressupõe a atualização do outro ou sua potencialização. Ou seja, o regime realizado em uma dada canção tem intensidade forte, está no centro do discurso, enquanto o outro ocupa o seu horizonte.

Essas duas forças contrárias atuam, como vimos, sobre o material sonoro da fala, imprimindo-lhe contornos me- lódicos e criando efeitos de igualdade e de desigualdade, de concentração e de expansão, enfim, de continuidade e de des-

continuidade. Desse modo, a canção, como projeto enunciati-

vo do cancionista, resulta das formas de convivência dos três modos de compatibilizar melodia e letra: a figurativização, a tematização e a passionalização. E o cancionista, por sua vez, define-se, na expressão de Tatit (1996), como um “malabaris- ta”, precisamente porque lida com possibilidades oscilatórias entre tensões temáticas e tensões passionais e com o processo de desativação dessas mesmas tensões, buscando o “equilíbrio” adequado para o seu projeto enunciativo, que visa, em última instância, a veicular o conteúdo expresso na letra da canção.

Do exposto, depreende-se a importância do cancionista, como aquele que é responsável pelo projeto enunciativo de uma canção, como enunciador geral que opera as seleções dos compo- nentes linguístico e melódico, com vistas a criar um efeito de sentido único, a partir das primeiras escolhas, fundadas nas oscilações tensi- vas, e, em seguida, pela conversão dessas oscilações tensivas no nível missivo e nos demais níveis do percurso de geração do sentido.

O cancionista é, pois, o sujeito da enunciação, o sujeito responsável pelo conjunto dos procedimentos adotados na ela-

boração de uma canção. E a ele não se pode chegar, senão por meio de seu próprio fazer cancional, pela identificação e avalia- ção das operações e das seleções realizadas por ele na confecção do discurso-enunciado. É a partir da análise das canções que se pode reconstruir a identidade do dizer, a dicção, para Tatit (1996), de um cancionista, como modo de dizer singularizante.

No próximo capítulo, vamos proceder à análise de al- gumas canções, melodia e letra, que podem apontar para a existência de um percurso identitário atribuível a um sujeito epistemológico “Pessoal do Ceará”. Dentre as canções selecio- nadas para análise, destacam-se A palo seco, em virtude da im- portância que lhe parece ter sido conferida pelos próprios cea- renses, e aquelas canções em que pontificam as configurações da imigração e da canção.

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Identidade do Percurso e

Percurso da Identidade