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Croquis d’um excêntrico (1891)

Da garimpagem à edição crítica

6. Croquis d’um excêntrico (1891)

Diante do nome 266deste Excêntrico, d’um brilho feérico de fantasia, desenrolado aos meus olhos como tapeçaria Beauvais, lembro nitidamente o remoto Oriente: a Turquia, a Arábia, a Pérsia – todos os povos muçulmanos, que têm a frouxidão dos nervos, a elasticidade de membros de raças

*No. 82494 - FCRB – M s/ass, s/loc e c/num. OC p. 694.-695. ** O Tempo, ano I, no. 43, 02 jul/1891.

decadentes, em todas as suas especiais funções fisiológicas e manifestações psíquicas. Principalmente a Pérsia lembra-me a indolência, a morbidez orgânica deste Excêntrico – indolência que não constitui, no entanto, defeito fundamental, ausência de qualidades singulares de espírito, mas que antes representa uma maneira de ser na Vida – muda abstração na qual o pensamento é um grande pássaro alado267 viajando nas mais altas regiões inacessíveis à vontade da matéria.

Com o seu ar fidalgo, que lhe dá, através dos finos vidros claros do pince-nez, as linhas e a distinção correta e douta de um sadio e forte estudante da Universidade de Bonn ou de Oxford, o Excêntrico parece viver apenas n’uma flirtation de idéias, n’uma despreocupação de touriste e n’um diletantismo fatigado

de artista boulevardier a quem as asperezas e arestosidades do meio emprestaram já as fundas cores carregadas e pungentes do pessimismo – conquanto na transparência dessa despreocupação aparente, ele analise, perceba e sinta passar, como entre uma luz difusa, o corpo vivo dos positivos fenômenos naturais.

Na verdade, esse amargo pessimismo que os artistas anglo-saxônicos e eslavos beberam, como n’uma dorna onde se houvesse purificado n’um vinho negro a sentir e o dolorido pensar de várias gerações; esse pessimismo torturante por vezes nos livros de Schopenhauer e Harttmam, especialmente nessa transcendental Filosofia do Inconsciente, parece prendê-lo também ao ceticismo mórbido de Murger e Nerval e Chatterlon e de tantos outros artistas queimados pela

flamejante chama interna de um desejo nunca realizado.

Mas esse pessimismo, feito de germanismo e eslavismo, tênue, fluido, sutil, que entontece capciosamente, insensivelmente, como os glóbulos microscópicos do álcool que fica no fundo do copo de um russo envenenado pelo niilismo e pelo rum, esse pessimismo, se o Excêntrico possui,268 não lhe tira, de resto, a bizarra, a garrida forma do espírito leve, fino, a iriante graça de abelha.

É que ele, contudo, por entre a variabilidade do tempo, não perde as latentes atitudes nervosas do seu temperamento, acordando dessa persa269 indolência para gozar Arte, para sentir e para amar a Arte.

Num centro antagônico do desenvolvimento e fulgor do seu espírito estético, na aridez dos fatos, n’uma atmosfera onde um ar livre de ideal não

268 ... se o Excêntrico o possui , não lhe... OC.

circula no sangue, um sangue fremente, rico, não gorgoleja nas veias e as turgesce, o Excêntrico lembra um cactus, uma rara flor nascida no gelo, alva na vastidão das fulgurantes neves, dando, entretanto, uma encantadora poesia serena de pitoresco e originalidade a toda a amplidão do terreno.

Ou, então, para abrasileirar mais o símile comparativo, lembra também uma d’essas simples parasitas brancas, flores pensativas e melancólicas que rebentam d’entre pedras, florindo virginalmente para o azul, indiferentes à rigidez do granito...

O seu estado de morbidez intelectual, que parece, por humorismo sombrio, talvez, corresponder a um estado comatoso, é como a aparência de certos céus turvos, nebulosos, não obstante carregados do

ouro flamante270 do sol e do intenso azul, que de repente aparece em nesgas, como prenúncio de aurora, através,271 de fuscos, flocosos272 pedaços de nuvens que se vão lenta, demoradamente esgarçando... Depois, outras nuvens, mais pesadas, mais densas, correm, como cortina de brumas, sobre esse ouro de sol e esse azul, voltando então tudo às primitivas névoas eternas.

Alma êxul do Espaço, triste, às vezes, de certo, mas d’essa alta e excelsa tristeza e magoada nonchalance de velha águia real de cabeça pendida e parado vôo, como que adormecida, sonhando dolentemente a melancolia do Azul...

Assim é, assim será para sempre esse meditativo Excêntrico!

Névoa de emoções, debaixo da qual está o sol e o azul de uma idéia, que se descobrem,

270 .... ouro flamejante [flamante] do ... OC. 271 ... através de fuscos... (pont.) OC.

bem poucas vezes, para determinadas observações delicadas sentirem; cinza fria de afetos, debaixo da qual arde a radiante, rubra constelação de um anelar do espírito, cuja complexidade o entendimento comum dos homens não apreende nem percebe.

Natureza calma, contemplativa, que a placidez das montanhas e os aspectos quietos, remansosos do campo pacificaram, ele se apura e delicia na nobre convivência, na grandeza mental dos livros, onde a espiritualidade e o esmalte da forma pedem a atenção dos sentidos civilizados.

7. Decaído ( 1897)

Arrebatado n’um violento rodomoinho273, n’um verdadeiro ciclone de paixões, o que esperas, Tu, Sátiro tricórnio e bufo, que resfolegas e inchas de pantagruelismo e luxúria – tricórnio como trifloro, – com três hirtos cardos agudos?!

O gozo das mórbidas concupiscências tomou,274 para a tua idiossincrasia afetada do Infinito, aspectos soturnos e miríficos, efeitos mais do que genuinamente capros, mais do que virtual275 e genitalmente eróticos, d’uma

* No. 82495 - FCRB , M c/ass, s/loc e c/num. OC p. 730-732. ** Rosa-Cruz, Rio de Janeiro, anoI, no. IV, set/1901.

273 ARREBATADO NUM VIOLENTO RODOMOINHO, OC. 274... tomou para...(pont.) OC.

insânia ingênita e transcendental de lascívia; e isso de tal forma supersexual intensa, que és apenas um simples Sátiro tricórnio e bufo e não és mais Diabo magno e sulfúreo, nem radiantemente belo e horrível Arcanjo de maravilhosas asas colossais e flamipotentes276 de fundas envergaduras a ouro fosco e bronze, mas um Satanás suíno e gongórico, um Sileno senil tatuado das equimoses do Vício, tremendamente decaído nos abismos torvos...

Êxtase, indefinidos espasmos estéticos, que espiritualizavam outr’ora em eras primitivas277 os teus estranhos olhos d’águia, cheios de um fulgor de epopéias, operaram nesse maquiavélico, complicado organismo, evoluções, metamorfoses, profundas transfigurações; e a tua cabeça titânica, satânica, cortada, detalhada fundo nas auréolas negras das supremas Blasfêmias e dos

276... flamipotente[s], de ...(pont.) OC 277 ... eras primitivas, os....(pont.) OC

Anátemas, cantou e radiou vitória, triunfou milenariamente278 das outras frívolas, desfantasiadas cabeças.

Era a conquista real do Sonho, em que a tua cauda espiralante e magnética ia traçando caracteres simbólicos e feiticeiros e em que os teus cornos tetros e sibilinos, expressivamente assinalados como a coroa genial e hostil da Rebelião, davam o ritmo, com a cauda espiralante e magnética, das divinas sinfonias da Imaginação.

Porque, Tu, criador legendário das Ideogenias! velho Ideólogo imortal!, desde logo foste o Deus279 uno e trino, o Todo-Poderoso do Sonho, fascinando almas e almas, almas e almas e280 arrastando-as frementes281 aos teus lagos noturnos e chamejados, originalmente brotando da condensação de biliões de noites sem estrelas, porque já eram abstratamente282, esses chamejados

278 ... triunfou milenarmente [milenariamente] das... OC. 279 ... o deus [Deus] uno... OC

280.... almas e almas , (e) arrastando-as, frementes,... (pont.) OC. 281 ... arrastando-as, frementes,... (pont.) OC.

lagos noturnos, estrelados de Ideal.

E os teus cornos tetros e sibilinos, dominando amplidões, esgarçavam, rasgavam, defloravam os diáfanos véus nevoentos das Nuvens283 onde o segredo dos viços e germens ocultos, das virgindades brancas, das castidades tenras, das originalidades puras, dormia, mumiamente, sonos seculares e ignaros.

E esse segredo e mistério que dormiam perpétuos sonos, n’um dormir infinito de fenômenos, Tu, com a significativa mágica do Ideal, fizeste para sempre acordar e circular e mover e febricitar de vertigens e alucinações a terra.

E esse abençoado e prodigioso bem fecundou admiravelmente a terra, semeou constelações nos mares, tocou de auroras os temperamentos, floresceu de rosas, de madressilvas e lírios, as leves, as sutis espiritualidades humanas.

Uma seiva do Desconhecido errou e cintilou por toda a parte, inundou tudo; e as púrpuras palpitantes de um novo Idealismo se desdobraram como firmamentos ou majestosos mediterrâneos.

Mas hoje, que o teu mundanal e soberano domínio é bem raro já, que todo o esplendor das tuas flavas, flamejantes glórias é já remotamente e olvidadamente passado, não és mais o excelso, o preclaro Sátiro fixo, o Diabo prófugo e ágil, aventureiro e sábio, que noctivagou em gôndolas por Veneza, nos estrelados idílios; que cantou outr’ora baladas aos astros aristocráticos com o seu bandolim de luar e o seu perfil mais aristocrático ainda; que apaixonou e languesceu as monjas com as suas curiosas lendas enevoadas e rendilhadas; que foi o Gentil-Homem da Aventura e da Graça nas Cortes284 de Luiz Quinze; que

dourou e enflorou toda a Grécia e fecundou de Poesia e Arte o antigo Inferno mítico. Arrebatado n’um violento rodomoinho, n’um verdadeiro ciclone de paixões, és agora o Sátiro tricórnio e bufo, o membralhudo e velho histrião devasso, que resfolegas e inchas de pantagruelismo e luxúria.

Não és mais o delicado deus artista, que eu muita vez vi, através das brumas azuladas da fantasia, pelos contemplativos crepúsculos da Alemanha, cismando, envolto n’um resplendor de imponderáveis saudades e nostalgias, tocado dos supremos desdéns, sentado junto aos pórticos medievais com as alongadas, esguias pernas mefistofélicas fidalgamente cruzadas em x.

E te perpetuas agora, através da universal harmonia, no equilíbrio sempiterno, Belzebu obeso e bonzo, inchado de concupiscência e tédio, ignobilmente obsceno, grotesco e esfingético, sonâmbulo

de melancolias, tragicamente triste, atirado para um canto obscuro das Idades, como a truanesca e monstruosa figura orgíaca, báquica e pantagruélica do Vício!

Cruz e Sousa