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No fim o começo de tudo: a (re)construção de um artista

De Faróis a Últimos Sonetos: eterna embriaguez

3.1 No fim o começo de tudo: a (re)construção de um artista

Paulo Leminski define a vida de Cruz e Sousa através do oxímoro, pois esta é a figura da ironia que, através de palavras contraditórias, procura dizer algo, desdizendo-o. Ou seja, Cruz carregou no próprio nome a dor que o guiou durante a vida e após a morte: a dor de ser negro, pobre, desterrense e simbolista. Podemos acrescentar o fato de Cruz não ter sido criado como um negro, um escravo, e ainda, o fato de ser inteligente e persistente, em uma época onde lugar de negro, para a sociedade em geral, era na senzala, analfabeto e ignorante. Para Celestino Sachet,92 Cruz precisou desvendar a cruz de ser João e estar Cruz

e Sousa. Portanto, o escritor João da Cruz e Sousa precisou construir-se e reconstruir-se como homem e como artista. Esse processo de difícil alcance só lhe foi possível no plano imaterial, espiritual, pois não houve espaço, nem tempo para Cruz fazer-se notar como “ser humano”, nem valer-se como artista. Esse é o motivo de sua dor, negra dor, que transmuta, dor da alma, eixo temático de seus textos em verso e em prosa. Sendo assim, na prosa de Cruz encontramos o prazer pela dor. Este masoquismo, portanto, refere-se ao plano

92 SACHET, Celestino. “A Cruz de Ser João e de Estar Cruz e Sousa”. In SOARES, Iaponan e MUZART,

Zahidé Lupinacci (organizadores). Cruz e Sousa: No Centenário de Broquéis e Missal. Florianópokis: Editora da UFSC, 1994, p. 87.

imaterial, a busca pela transcendentalização e sublimação. O desencanto com a vida levará Cruz ao encantamento pela morte, outro tema constante, principalmente em Evocações. João da Cruz e Sousa nasceu em Desterro, a 24 de novembro de 1861. Era negro, filho do casal Carolina e Guilherme, negros libertos. A mãe trabalhava de doméstica na casa de Marechal Guilherme de Sousa. O pai era operário. Como Marechal e sua esposa Dona Clarinda de Sousa não tiveram filhos, afeiçoaram-se ao menino, que recebeu carinhos e mimos especiais. E assim foi, segundo Leminski, criado como branco. E foi em casa mesmo que o pequeno João foi alfabetizado e, aos oito anos, já lia seus versos ao casal. Em 1870, depois da morte do Marechal, Cruz e Sousa foi matriculado no Ateneu Provincial. Quando terminou o curso de Humanidades, começou a ensinar as primeiras letras e escrever para os jornais da época.

Em 1893, o poeta entrou para a Companhia de Teatro Moreira de Vasconcelos, da qual

fazia parte a atriz Julieta dos Santos. Era satirizado pelos críticos, que o chamavam de “ilustre literato das cocadas e das laranjas d’umbigo”. Nas excursões que realizou como ponto da Companhia Teatral Moreira de Vasconcelos, tomava parte ativa na campanha abolicionista.

Pode-se afirmar que a publicação de Missal e de Broquéis está para a morte, assim como a de Faróis, Últimos Sonetos e Evocações, para a vida. A trágica vida e morte de Cruz e Sousa garantiram-lhe um espaço na literatura canonizada brasileira, fato nada incomum em se tratando de reconhecimento, pois grandes nomes da arte tornaram-se ilustres e “bons” após a morte. Com Cruz não foi diferente, mas sua expectativa era das melhores, afinal, para ele, a vida florescia depois da morte.93

93 “Junto da Morte é que floresce a Vida!/ Andamos rindo junto à sepultura./ A boca aberta, escancarada,

Essa relação morte/vida é muito clara em seus textos, principalmente, nos últimos, em que a dor, uma constante, é o caminho que, acredita o poeta, o guiará à transcendentalização.

A primeira página do periódico O Debate94, do Rio de Janeiro, notifica a morte de Cruz e Sousa e sua chegada à Central. O jornalista não poupa adjetivos que enaltecem Cruz: “maravilhoso poeta”, “extraordinário artista”. Ou seja, a imprensa que crucificou Cruz nas suas primeiras publicações é a mesma que “chora” sua morte.

No periódico O Debate95 lê-se:

Deliberou-se ainda levar a efeito a publicação das Evocações, para a qual já estavam há muito trabalhando os amigos do poeta, assim como a dos outros dois livro, Faróis e Últimos Sonetos, que constituem o espólio literário de Cruz e Sousa.

Para isso resolveu-se recorrer ao público, em vez de empreender-se esse serviço sob uma forma toda particular, como até então estava deliberado.

Na reunião de hoje se assentará definitivamente o processo que se deve adotar para tal fim.

Depois da publicação e crítica feroz aos livros Missal e Broquéis, restaram a Cruz e Sousa poucas páginas em jornais, insuficientes para a sobrevivência do artista no Rio de Janeiro, uma cidade diferente e extremamente “cruel” com os artistas novos.

A redação de Faróis, Últimos Sonetos e Evocações coincide com a morte do pai e a loucura da esposa, Gavita, dois temas determinantes destes três livros, publicados postumamente.

Além da dicotomia morte/vida, a dicotomia vida/obra são eixos temáticos presentes que se chocam com os imagéticos: sonho/dor e arte/loucura.

Completa; introdução e organização de Zahidé Lupinacci Muzart. 12a. ed. Florianópolis: FCC: RBB, 1993, p.

154.

94 Rio de Janeiro, 21 de mar. 1898. 95 Idem.

Sendo assim, como um artista de fim de século, “decadente”, Cruz vê, na fuga da realidade, na torre de marfim, no hermetismo, única saída para sua produção artística. Tal característica foi motivo para que alguns críticos analisassem a obra do poeta unicamente a partir do aspecto biográfico, afirmando que cruz e Sousa não se preocupava com a questão abolicionista, pois era negro, mas agia como branco. Tal observação anula toda a preocupação com a espiritualidade presente na obra de Cruz. Afinal, a literatura tem gênero ou raça? Se um escritor negro precisa se prender a questões relacionadas à negritude, então um escritor branco jamais poderia ter escrito sobre os negros.

O que é marcante, em Cruz, é uma literatura voltada para a espiritualidade. A correspondência de sentidos, presente em seus melhores textos, pode ser repassada para a vida do poeta como uma correspondência entre matéria e espírito, ocupando, assim, contínuos estados de alma, pois, segundo Feidelson Jr: “Enquanto o romântico deseja abandonar a Terra para encontrar Deus, o simbolista deseja encontrar a unidade do material e do espiritual aqui na Terra, de mundo artificialmente dividido”.96

Ao analisar alguns aspectos de Evocações, Donald Schuler97 afirma que o “eu-lírico”,

nesse livro, é um novo herói épico que, ao invés de vencer sobre a terra, busca desprender- se dela e aventurar-se às estrelas. Podemos afirmar que esse é um sonho do autor presente já em seu primeiro livro em prosa, Missal , que vai crescendo ao longo de todo o seu trabalho. Evocações, com certeza, foge totalmente aos padrões pré-estabelecidos pelos literatos da “moda”, antecipando, de certa forma, o movimento de 22: “Se vivesse mais o

96 FIEDELSON JR., Chareles. Symbolism and American literature. 7 ed. Chicago: University of Chicago

Press, 1969. p. 56. Apud GOMES, Álvaro Cardoso. A estética simbolista. Textos doutrinários. 2a ed. São

Paulo: Atual, 1994, p. 17.

97 SCHULER, Donald. A prosa de Cruz e Sousa. Travessia (Revista do Curso de Pós-Graduação em Letras),

poeta talvez houvesse apressado o advento do Modernismo...”98 São textos ricos em metáforas, sinestesias, aliterações e, principalmente, musicalidade.

O livro começa com “Iniciado”, texto metalinguístico que caracteriza quem fala: um

sofredor. É a dor, a via sacra da dor que fará o artista transcender.

Vem para a Dor, que tu a elevas, purificas, porque tu não és mais que a corporificação do próprio Sonho, que vagueia, que oscila na luxúria da luz, através da Esperança e da Saudade – grandes lâmpadas de luas de unção piedosa, cuja velada claridade tranqüila dá ao teu semblante a expressão imaterial, incoercível, etérea da Imortalidade.99

É um texto de pura religiosidade em que convivem o pessimismo e o otimismo e dessa

aparente oposição constrói-se o ser. A dor simboliza a luz que o guiará. Está presente a dor de um poeta louco e iluminado.

Se não tens Dor, vaga pelos desertos, corre pelos areais da Ilusão e pede às vermelhas campanhas abertas da vida e clama e grita: quem me dá uma Dor, uma Dor para me iluminar! Que eu seja o transcendentalizado da Dor! 100

Como sabemos, dor não faltava a Cruz e Sousa. A dor do preconceito, de estar à margem, de não ser reconhecido, enfim, de não poder ser. Evocações é um chamado de recordações. Há um alguém que relembra. O artista é um alquimista, um iniciado na arte entre um Deus, amado, e um diabo, temido.

Se havia dúvidas quanto ao gênero de Missal, por possuir características poéticas, em

Evocações podemos dizer que este problema se intensifica. É um texto que se aproxima ainda mais da poesia, com o predomínio de substantivos e adjetivos. Enquanto em Missal predominam textos descritivos, em Evocações há filosofia. O artista é, antes de tudo, um ser pensante. Há alguém que questiona constantemente a arte, a morte, a loucura, a vida,

98 PIERRE, Arnaud. Correio da Manhã, 18/11/1961.

99 SOUSA, Cruz e. Evocações. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1986, p. 18. 100 id. ib. p. 17.

enfim. Ou seja, Evocações é um livro que inicia um novo gênero literário, avesso a todos até então existentes, e finaliza a produção de seu autor.

Em Evocações o artista apresenta-se como um iniciado na arte e na vida, mas finaliza o livro emparedado. O narrador é um peregrino em busca do sonho; é “um errante da dor”. A dor e a arte o levarão até a morte, portanto, sente-se atraído pelo mistério da vida, mas magnetizado pelo da morte. Enfim, o artista é um masoquista que deseja a dor.

E são diversas as dores desse artista, mas a dor mais intensa é a dor negra (“Dor negra”) – que de tão intensa deixa de ser dor, como se transmutasse do material para o imaterial. É tão venenosa e formidável, que só ela bastaria para fazer enegrecer o sol, ou seja, seria capaz de modificar a natureza:

Que as estrelas e as pedras horrivelmente mudas, impassíveis, já sem dúvida que por milênios se sensibilizaram diante da tua Dor inconcebível, Dor de tanto ser Dor perdeu já a visão, o entendimento de o ser, tomou de certo outra ignota sensação de Dor, como um cego ingênito que de tanto abismo ter de cego sente e vê na Dor uma outra compreensão da Dor e olha e palpa, tacteia um mundo de outra mais original, mais nova Dor.101

A dor está diretamente relacionada à sublimação, à espiritualidade. Os textos “Região Azul” e “Asas” intensificam essa temática. No primeiro, temos imagens sinestésicas da cor azul que, simbolicamente, significa a mais profunda, imaterial, fria e pura das cores. “Imaterial em si mesmo, o azul desmaterializa tudo aquilo que dele se impregna.”102 É o caminho do infinito onde o real se transforma em imaginário, ou seja, o caminho da divagação, quando escurece torna-se o caminho do sonho, associado ao vermelho e ao ocre

101 id. ib. p. 122-123.

102 CHEVALIER, Jean et GHEERBRANT, Alan. Diconário de Símbolos. 4a edição, Rio de Janeiro: José

amarelo, manifesta as hierogamias ou as rivalidades entre o céu e a terra; mundo e arremesso da alma liberada em direção a Deus.103

Em “Asas”, o artista procura definir esta palavra que, para ele representa “o desejo , o Sonho, o Pensamento, a Glória...”104 A forma da asa está relacionada à forma da arte simbolista, a arte da música: “As asas são, antes de mais nada, símbolo do alçar vôo.” 105Na tradição cristã, as asas simbolizam o espírito. Na bíblia, são símbolos constantes da espiritualidade, ou da espiritualização dos seres que a possuem, dizem respeito à divindade.106 Portanto, as asas exprimem uma elevação ao sublime, um impulso para transcender a condição humana.

De um lado, busca pela sublimação, de outro, as tentações do mundo terrestre que desviarão o artista do seu caminho. Em “Sonambulismo”, o narrador divaga, à noite, deslumbrando a lua e entre o bem e o mal, vê-se perdoado por Cristo e purificado. Ele, o narrador, é um “médium”, um sensitivo que, iluminado por Deus, encontra-o e recebe o alívio divino necessário. Todavia, este mesmo Cristo do bem, vira do mal e torna-se satânico. Neste texto, temos o contraponto entre a justiça terrena – injusta – e a divina. O artista busca o perdão divino, pois sabe que não alcançará o perdão terreno.

Perdemos, portanto, a distinção entre o Deus do bem e o Deus do mal, que se tornam um. “Satã era Lúcifer, o mais belo dos Anjos, Anjo da luz. Satã foi o símbolo da Revolta e da liberdade, a liberdade absoluta, sendo uma reivindicação de si mesmo contra Deus.”107

103 id. ib. p.138. 104 id. ib. p.138. 105 DS, op. cit. p. 90-91. 106 DS, op. cit. p. 90-91.

107 Travessia – Revista do Curso de Pós-Graduação em Letras. Edição organizada por Zahidé Lupinacci

Este satanismo em Cruz, freqüente também em Baudelaire, diz respeito ao mundo metafórico, criado pelo artista, que cria seu próprio mundo, pois o seu está “desgovernado” Segundo Simone Rufinoni, o satanismo em Cruz possui uma face mais abrangente, que é a do clamor às potências do mal e a das imagens negras articuladas à escvravidão.

O erotismo, em “Tenebrosa”, mostra-nos um artista sedento por amor. O desejo por uma mulher, o amor carnal:

Assim amar-te e assim querer-te – nua, lúbrica, nevrótica, como a magnética serpente de cem cabeças da luxúria – os olhos livorescidos, como prata embaciada; a fila rutila dos rijos dentes claros cerrada no deslumbramento, no esplendor animal do coito; os nervos e músculos contraídos e os formosos seios de cetinoso tecido elevados como dois pequenos cômoros negros, cheios de narcotismos letais, impundonorosamente nus – nus como todo o corpo! – excitantes, impetuosos, tensibilizados e turgescidos, na materna afirmação sexual do leite virgem da procriação da Espécie! E que a tua vulva veludosa, afinal! vermelha, acesa e fuzilante como forja em brasa, santuário sombrio das transfigurações, câmara mágica das metamorfoses, crisol original das genitais impurezas, fonte tenebrosa dos êxtases, dos tristes, espasmódicos suspiros e do Tormento delirante da Vida; que a tua vulva, afinal, vibrasse vitoriosamente o ar com as trompas marciais e triunfantes da apoteose soberana da Carne!108

Em “Adeus”, o poeta vê-se embriagado por um amor não correspondido, despede-se deste amor que ele abandona ao esquecimento: “Fujo arrebatadamente de ti, levando para desertos áridos, sáfaros, longínquos, às regiões do Esquecimento, lá, muito para lá da monstruosa Terra, o único talismã precioso que me deste – a Dor!”109

A mulher aparece, em Evocações, desde: virgem, dominadora, triunfal – de Seráfi4ca, a grávida, mãe de “Mater”.110 O narrador de “Sensibilidade”111 encanta-se com a velha Lúcia, com quem, apesar das rugas, identifica-se, pois ela é a personificação da dor. Para Marie

108 Sousa, op. cit. p. 107-108. 109 SOUSA, Cruz, op. cit. p. 102. 110 id. ib. p.40 e 41.

Helenne,112 Cruz privilegia a mulher morta, a velhice, a múmia. Há uma morbidez poética nos versos de “Caveira” ou “Visão da morte”, que se repetem em “Mater” e “Seráfica”. Todavia, as mulheres simbolizam para o artista apenas um elemento de sugestão estética.