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Da garimpagem à edição crítica

8. Doença psíquica (1892)

Que mal nos fez a vida,285ó serenos filósofos, para encherdes do mais negro Pessimismo, como de uma treva soturna286 e dolorosa e de um rio de sangue eternamente caudaloso?!

Para ti, Shopenhauer, a existência é a materialidade;287 o alimento, para ti, é apenas a necessidade de prevalecer na luta à força para a função dos órgãos nervosos, a bem de que se propague a espécie; – enquanto que para outros, ó sombrios monges do Pensamento, o alimento é a lascívia, a luxúria 288da carne,289 que fazia, desde os romanos a carne290 viçosa

e rica.

Basta, para ti, que o estômago metodicamente funcione na normalidade cronométrica291 de um relógio, a fim de que tenhas a positiva segurança de que subsiste aos vermes e a seca dissecação dos fenômenos da natureza.

No entanto, para outros, o sentimento palatal educado, gozando o requinte,292 das iguarias faustosas, de incomparáveis “gourmandices”, as vaporosas luminosidades, de dourados vinhos,

*no. 82496 - FCRB M c/ass, s/loc e c/num. OC. P. 723-724. ** Novidades, RJ, 26/03/1892.

285 QUE MAL NOS FEZ A VIDA,... OC. 286 ... treva noturna[soturna] e... OC.

287 ... a materialidade, o alimento... (pont.) OC. 288 ... é a lascívia, a lascívia [luxúria] da carne... OC. 289 ... a Carne viçosa... OC.

apenas bastam para que os sonhos sejam felizes e o sorriso seja alegre.

Para esses, os alimentos, como no Oriente o fumo, têm insubstituíveis encantos, voluptuosas graças de viver, que atilam,293 acendem a imaginação, fazem abrir e flamejar

por todos os pontos, do mundo, infinitamente os mais inauditos sóis do espírito.

Neles, a vida é um294 fluido, um alado perfume, de úmidas bocas purpúreas de rosa, de níveos colos cor de camélia, de veludosos seios macios como a alva plumagem fresca de um pássaro real; um amoroso ansiar de etéreos olhos de estrelas atravessando em visão, claros e pesados de luz, com o brilho aceso e ardente de preciosas e raras pedrarias, a quase extinta noite remota das recordações.

Para ti, Shopenhauer, os seres orgânicos não têm senão o caráter essencial da concorrência295 vital e representam no mundo funcionalmente, o mesmo valor dos

elementos inorgânicos, químicos e físicos da terra.

Assim, a pedra, o fogo, o ar, a água, são tantas forças complexas da vida como o homem – ou labore pelo psiquismo, num século de livros, sob o complicado aparelho da ciência, ou simplesmente, ame, seja fator da evolução humana,

293 ... que atilam [afilam], acendem... OC. 294 Neles , (a vida) é um fluido... OC

dando a forma do Amor, ao princípio genesíaco da sexualidade296.

Por isso, ó egrégio, magnificente filósofo alemão, eu, que no entanto sinto e percebo a sua radiante297 e clara verdade, que brilha e fere como arestas agudas,298 de um cristal, -

verdade aceita pelos homens sob a nebulosa denominação de Pessimismo, - eu tenho tédio, profundo, supremo, e inesgotável tédio, vendo que a vida orgânica é toda ela adstrita à matéria, e que apenas, para ser feliz, nada mais é preciso do que ter a estrutura de um forte e belo animal premunido de garras, para o assalto de dentes para devorar e com a regular circulação299 do sangue para o equilíbrio,300 do coração e do cérebro.

Cruz e Sousa

9. Écloga (1891)

296... princípio genesíaco da sensualidade [sexualidade]... OC. 297 ... a sua [tua] radiante... OC.

298 ... arestas agudas de um ... (pont.) OC. 299 ... a regular circulação do... (pont.) OC. 300 ... o equilíbrio do coração... (pont.) OC.

À hora do sol,301 por estes tranqüilos sítios afastados, goza-se os montes vestidos de um polvilhamento de ouro; as perspectivas deliciosas na matinal e ruidosa expansão da luz; estes luxos bizarros e tons quentes de estio, onde parece que Sátiros lascivos vão trepando e saltando pelas escarpas calcárias e pelos socalcos pedregosos, entre o verde lustroso e denso da folhagem da mata e os encachoeirados, tormentosos rios.

Galharda natureza esta, de manhã, cheirosa e sadia, em que o jorro da vida vertiginosamente entra e circula pelos pulmões em ar e aroma, dando uma fremente e forte

* No. 82497- M s/ass, s/loc e c/num. OC p.690-692. ** O Tempo, Rio de Janeiro, ano I, no. 16, 5 jun/1891 e Rosa-Cruz, Rio de Janeiro, ano I, no. III, ago/1901.

sonoridade aos órgãos humanos, como vibrante clarim de batalha que nos soprasse metalicamente ao peito, enchendo-o de ecos, de alvoroço, de música e rumores.

Por aqui estende-se, amplia-se, alarga-se por aqui o céu verde das copadas ramagens das árvores – e nada mais idilial e bucólico, nada mais virgiliano e pastoril do que estes aspectos sagrados, quase bíblicos, onde a écloga rebenta de cada tufo perfumoso de rosas, de cada serpente elétrica de hera, de cada pâmpano báquico de vinha, de cada ramo salitroso de murta e de cada concha rosada

e branca nas finas e claras praias, além, onde o mar espumeja doce, parecendo trazer no fluxo e refluxo das suas ondas cantantes a olímpica e serena recordação da mocidade e da formosura da Grécia, ritmada em flóreas canções de Afroditas engrinaldadas de algas...

Montes e vales, vales e montes, faz bem percorrer aqui estes religiosos recantos, estes saudosos retiros, onde parece que o passado, que tudo o que está longe, que tudo o que está remoto, ilusões e eras, tudo aí se veio refugiar e vive um momento agora da nossa presença, da nossa alacridade, do nosso humor, que nós nababescamente derramamos por todas estas paisagens, entre estes pássaros que cantam e voam, purificando-se no Azul, como os palpitantes pássaros alados

do inquieto, do vertiginoso Espírito.

Encantaria ser pastor, para galgar esses penhascos solenes, para subir essas alcantiladas serras e ver borbotar d’elas a água fresca, em finos e prateados fofos vaporosos de espuma,

abundante, em turbilhões impulsivos porejando virgem das origens recônditas, como grande força represa, insubmissa e elementar da Natureza, rebentando e surgindo das profundas entranhas rijas da terra e dominando, enchendo, avassalando a amplidão do ar. Encantaria ser pastor,302 para ir, cedo, na luz, campos em fora, peludo e florestal como Pan, no vigoroso esplendor de sangue da força de um touro novo, por entre a exuberante luxúria vegetal, apascentar os mansos rebanhos alvos de arminho das nostálgicas ovelhas, que balassem, desoladamente,

n’uma compunção evangélica; e conduzi-las após ao redil,303 já tarde, na roxa melancolia

das tintas da noite – enquanto a lua, fluida e fria, nevasse as tenras culturas e subisse então infinitamente o céu – e enquanto, à distância, longe, no ermo, uma leve e flutuante fita de

302 Encantaria ser pastor para ir, cedo... (pont.) OC

303... após, ao redil... (pont.) OC.

voz se desenrolasse, esvoaçasse e perdesse ao longo e ao largo pelas quebradas na mais harmoniosa e apaixonada cantiga!

Ah! Roma antiga! Ah! Grécia! Ah! Paganismo! Quanto melhor não fora pecar na primitividade dos instintos e dos impulsos, alma espiritualizada no ideal abstrato, existência votada aos cultos soberanos da matéria e tendo para equilíbrio no requinte da calcinação do entendimento, o requinte da elaboração do sentir e do gozar – aberto em chamas no sangue,

aberto em chamas nos nervos, aberto em chamas na carne – até ao supremo aniquilamento final, no qual a morte era como uma nova espécie transcendental de concupiscência e lascívia mais requintada ainda, por isso que era original, desconhecida inteiramente para esses que a experimentavam.

Antes nascer e morrer n’um leito de rosas, amando e gozando rosas, coroado de rosas, como um romano ou como um grego, no mais virtual e mítico paganismo, do que ter-te a ti, vida consciente e disciplinar, como a tremenda esfinge de pedra, colossal e terrível, sufocando, esmagando a seiva, o ímpeto, uma corrente de desregramento animal que há no fundo de todo o organismo, no fundo de todo o temperamento.

E é por isso que dá um instintivo desejo de pastorear e que se sente uma emoção do mesmo modo instintiva, quando essas imaculadas existências campestres, rudes, mas angélicas e sãs na sua casta nudez de sentimentos, nos sulcam a alma como um clarão, a iluminam e a cobrem de esplendor, desdobrando-nos ante os olhos estupefatos, como

opulentas, riquíssimas lhamas rutilosas de diamantes, as magnificências reais do mais profundo e germinal Amor!

10. Formas e Coloridos