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A prosa primeira: tropos, fantasias e missais

2.1 Entre pontos e vírgulas

A publicação de Tropos e Fantasias, em 1885, de Cruz e Sousa e Virgílio Várzea, pela Tipografia da Regeneração, foi alvo de críticas, pois compunha uma prosa diferenciada, tematicamente naturalista, mas que já apresentava algumas características “desconhecidas” para a maioria dos leitores da época. “Pontos e vírgulas” é um dos textos que compõem este primeiro livro. Por um lado foi recebido, pelos críticos de Desterro, de forma bastante positiva. Era um “interessante livrinho”, de dois jovens de “espírito adiantado” 47. Os dois escritores também sofreram com críticas vorazes, que, segundo Abelardo F. Montenegro, eram “galhofas de Anacleto e Otacílio que zurziam a ‘dinâmica’, vulcânica e jaguárica Escola Evolutiva”.48 Anacleto publicou alguns triolés como:

Na gaiola do meu peito O pássaro da alegria Canta alegre, satisfeito Na gaiola do meu peito, Por isso tornei-me atreito À vulgar versologia... Na gaiola do meu peito O pássaro da alegria. Ó minha pomba arminosa! Ó pomba da simpatia!

47 Críticas feitas no Jornal do Comércio, de 14 de julho de 1885 e Regeneração, de 12 de junho do mesmo

ano. Apud MONTENEGRO, Abelardo F. Cruz e Sousa e o Movimento Simbolista no Brasil.Florianópolis: FCC edições, 1988, p. 37.

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Na tua face mimosa Ó minha pomba arminosa Existe a cor cetinosa Da rosa Alexandria! Ó minha pomba arminosa! Ó pomba da simpatia! E Otacílio respondeu a Anacleto:

Ó minha galinha sura Que mariscas no quintal, És branca, amarela e escura, Ó minha galinha sura A minha faca procura O teu pescoço ideal, Ó minha galinha sura Que mariscas no quintal Quero comer-te cozida, De molho pardo, ensopadas, Bem recheada e mexida Quero comer-te cozida; Pra viver tiro-te a vida, Minha galinha pintada; Quero comer-te cozida, De molho pardo ensopada!

Discordo de Lêdo Ivo quando, na introdução do livro, afirma que há ausência de Cruz e Sousa nos textos de Tropos e Fantasias, o primeiro e o único a ser publicado em Desterro. Para o crítico: “Nada nestes textos canhestros, anuncia ou antecipa o que ele haveria de ser.”49 Por que exigir do poeta, em sua obra inaugural, o mesmo estilo literário que o imortalizou como grande poeta? Afinal, outros escritores tiveram seus momentos de maturidade, publicando obras “pequenas” se comparadas `aquelas que os imortalizaram, como por exemplo, Machado de Assis.

Por este e outros motivos, os quais destacarei posteriormente, acredito ser Tropos e Fantasias obra de grande importância para compreender todo o caminho percorrido por

49 SOUSA, Cruz e; VÁRZEA, Virgílio. Tropos e fantasias (edição fac-similar). Introdução de Ledo Ivo. Rio

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Cruz e Sousa; assim como são importantes os poemas publicados pelo autor no jornal O Moleque50. Neste, Cruz e Sousa não se mostra como um poeta simbolista (ou raramente) com uma linguagem difícil e rebuscada, simbólica, mas com poesias simples sem muitas preocupações estéticas. Cruz e Sousa assume o posto de redator-chefe do jornal em maio de 1885, e utiliza pseudônimos51 a fim de não comprometer politicamente o semanário.

Tropos e Fantasias é composto por seis textos de Virgílio Várzea, e seis de Cruz e Sousa. Virgílio Várzea e Cruz e Sousa eram grandes amigos e trabalhavam juntos no jornal O Moleque; o primeiro como caricaturista; o segundo, como redator chefe.

Dizer que não há Cruz e Sousa nos textos de Tropos e Fantasias não é relevante. O fato é que o leitor precisa ter acesso ao prosador Cruz e Sousa como um todo, não se abandonando sua prosa primeira, já sabendo que todas as outras ficaram à margem. Este livro representa como foi a estréia de Cruz e Sousa como literato, sempre precisando da ajuda dos amigos fiéis que o acompanharam. Esta fidelidade é perceptível em suas cartas, tamanho o carinho com que ele se comunicava com os amigos.

O que falta nos demais livros em prosa de Cruz e Sousa há em Tropos e Fantasias: um poeta consciente de sua sociedade, um cidadão observador que questiona, acima de tudo, o que desmistifica aquele Cruz isolado em uma “torre de marfim”. São abordados temas que caracterizam uma sociedade corrompida em diferentes níveis: na religião, na família. De leitura simples, apesar do estilo cultista e conceptista, próprios do barroco.

50 Surgiu em novembro de 1884. Jornal de propriedade de um jovem ex-comerciante, português, Pedro Paiva,

que, entusiasmado com a vida na imprensa, comprou uma tipografia e litografia, fazendo-se impressor. Era um jornal pequeno, ilustrado litograficamente, publicado semanalmente. Foi a 1a publicação ilustrada que

apareceu na antiga Desterro.

51 Eram pseudônimos de Cruz e Sousa no jornal: Zé K., Zot, Zut, Zatm Trac, Troc, Coriolano Scevola. Trac e

Zé K. eram abolicionistas, fato que Cruz e Sousa, ele mesmo, assumiu apenas no último semanário, com o artigo “Abolicionismo”.

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Em “Alegros e surdinas”, 52 há a descrição da morte de uma criança, da natureza, da

primavera. Há, no texto, uma invasão da dor. Já aparecem algumas características da poesia inaugural e simbolista de Broquéis: a presença do branco, o uso de sinestesias e aliterações. Como em:

Cintila, cantava o verde florido dos prados e o azul refrigerante dos céus. Almas e almas vagavam, como silfos, como asas, como nuvens e nuvens, pelas zonas consoladoras e luminosas do idealismo.

Trinos e trenós, por tudo.

Uma analogia entre o piano, instrumento musical, e o coração: “o pulso do cérebro artístico” nos é apresentada por Cruz e Sousa em “Piano e Coração” . É um canto à musicalidade, expressa através da melodia do coração e a harmonia do piano:

Pela temperatura e o grau de sentimento de um, o músico estabelece a proporção do outro.

Um dirige, outro executa.

Um tem a fórmula, outro funciona. Um é o oxigênio, outro produz o raio.

Coração e cérebro aliam-se, homogeneízam-se. Assim o piano, eternamente assim.

O narrador nos fala da contrariedade do amor em “A Bolsa da Concubina”.53O amor faz gigantes e faz anões, ilumina os espíritos nervosos e doentios. Parece um sermão de Pe. Vieira. Há uma reflexão sobre os dois lados do amor: glória e abismo. O narrador conta a história de um casamento feliz entre uma mulher, bonita e bem prendada, com um homem pobre que tinha uma amante. O casamento transforma-se em um inferno: ela envelhece, ele se torna um alcoólatra e os dois perdem um filho.

52 SOUSA, Cruz e; VÁRZEA, Virgílio. Tropos e fantasias (edição fac-similar). Introdução de Ledo Ivo. Rio

de Janeiro/ Florianópolis: ministério da Cultura, FCRB/FCC.

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A ironia está presente em “O Padre”:54 um abutre de batina, para quem o narrador

deverá escrever um livro de versos que intitulará: O Abutre de Batina, que serão versos puros, alexandrinos, todos iguais, corretos, com os acentos indispensáveis, com aquele tic da sexta, - tipo elzevir, papel melado – e ofereço-to, dou-to. Prescindo dos meus direitos de autor e tu assinas!... O narrador mostra-se indignado com um padre que, como representante da igreja, deveria estar ao lado dos sofredores e não fazer da igreja “uma senzala, dos dogmas sacros leis de impiedade, da estola um vergalho, do missal um prostíbulo”.

Nesse texto, encontra-se a temática do riso, presente, posteriormente, em muitos de seus poemas em Broquéis e em Faróis e na prosa de Missal a Evocações.

A palavra que ri... de indignação; um riso convulso... de réprobo, funambulesco... de jogral.

Um riso que atravessa séculos como de Voltaire. Um riso aberto, franco, eloqüentemente sinistro. O riso das trevas, na noite do calvário.

O riso de um inferno... dantesco. Ouves, padre?

Compreendes, sacerdote!... Entendes. Apóstolo?...

Em “Pontos e Vírgulas”,55 o poeta implora pela piedade dos homens: ”O poeta vos pede pouco, muito pouco.” E finaliza com o texto “Sabiá-Rei,”56 em que conta a história de um pássaro que fugiu de uma gaiola aberta, em busca da liberdade da floresta, mas foi morto por um caçador. Para o narrador, o sabiá representa o filósofo da evolução natural, pois é a correspondência entre a beleza de sua cor e seu canto, podendo ser também a ave de luz. O vôo do pássaro o predispõe a servir de símbolo às relações entre o céu e a terra. De um modo mais geral, simboliza os estados espirituais, os anjos, os estados superiores do ser, além da amizade dos deuses para com os homens. Podemos, com certeza, associar o

54 Dedicado a João Lopes. id. ib. p. 451.

55 Dedicado a Artur Rocha. SOUSA, Obra Completa, op. cit. p. 453. 56 Dedicado a César Muniz. id. ib. p. 454.

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sabiá ao poeta, um homem de luz, que sofre, assim como as aves, com a ingratidão dos homens.57