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Vale, então, destacar a experiência inicial desta série de gestos que inauguram a reflexão aqui proposta. Como fundadora das experiências se- guintes, a primeira demanda uma contextualização, tratada aqui como um de-

poimento do próprio autor em primeira pessoa. Este aspecto anedótico sobre os “bastidores” da “cena” não será, no entanto, um elemento específico a se traduzir nas obras. É uma retomada importante para a reflexão sobre a maneira de operar e para reconhecer elementos recorrentes nas experiências seguintes. Segue aqui a narração que apresenta a primeira das situações de consciência do acionamento do estado de performance que direcionam o âmbito dessa pesquisa.

Em viagem à cidade de São Paulo, caminhando sozinho na rua, em um dia de semana, cumprindo um trajeto em um momento de trabalho, “desligado” de uma reflexão cons- ciente sobre práticas artísticas, houve um momento em que levantei o olhar da calçada e percebi uma senhora, aparen- tando bastante idade, sentada em um banco em frente a um prédio. Sentada à esquerda na direção oposta ao meu traje- to, olhava em minha direção subindo a rua. No momento em que a olhei, vi que me olhava. Esta reciprocidade inesperada com um desconhecido em um momento absolutamente co- tidiano causou uma percepção diferenciada que se revelou enquanto acontecia.

Não houve um pensamento imediato, pois a “dilatação” do tempo e do lugar criou um momento de suspensão que me levou a mergulhar em um estado de ação e contemplação simultâneos. Por mais estranho que possa parecer, me senti dentro de uma obra de arte, vivendo uma experiência artísti- ca. Reconheci sem “pensar” aquele átimo como performance. Houve uma consciência de ter vivido um instante performá- tico particular, idêntico a outros que já havia experimentado quando gerava uma ação artística na minha prática de per- formances.

Não sei dizer o motivo desta alteração de consciência de um estado “prosaico” para um estado “poético”, pois tudo em si era aparentemente comum, em um contexto banal, cotidia- no. O único elemento especial foi o cruzamento do olhar, a cumplicidade de partilhar aquele instante. Olhei o que me olhou, ou talvez meu olhar foi chamado pelo que já me olha- va. E assim como aconteceu em uma fração de tempo, se desfez imediatamente.

Ao se desativar, se transformou em um primeiro pensamen- to. Por algum motivo, visualizei a condição de que este era

ao mesmo tempo o primeiro, único e último olhar que cru- zava com aquela pessoa. Se tornou um registro de memória altamente consistente e ainda hoje presente. Consigo revivê- -lo em detalhes, experimentando-o em contínuo em quase todas suas dimensões.

Inicialmente poderia cogitar se tratar de um fato isolado, uma experiência específica. Ao mesmo tempo, o acontecimento instigou muitas per- guntas sobre sua própria natureza. Será que este olhar seria também um gesto? Então o que ocorreu? Em que medida houve ação ou reação? E principalmente, porque se produziu a percepção de uma dimensão artística neste acontecimen- to?

Não havia nenhuma relação direta com outras obras já experi- mentadas, fossem de cinema, vídeo, meios tradicionais, fotografia, teatro ou mesmo de performance. Não era, então, uma vivência que revivia outra anterior, esta vivência tinha um impacto inaugural.

A busca por respostas passou a ser elaborada mentalmente, sur- gindo insistentemente em diversos momentos de leitura, de conversa e de re- flexão pessoal. A busca por paralelos ou relações dominou o foco de trabalho, junto a um exercício pessoal de mapear todos os aspectos relevantes deste acontecimento. Talvez algo em específico fosse a fonte desta potencialização artística vivida naquele momento. A situação de estar em viagem, naquele local, ou da empatia com olhar, talvez fossem pistas. Mas gradualmente a resposta caminhou na direção oposta à especificidade. Todos aspectos pareceram ser ao mesmo tempo fundamentais e isoladamente incapazes de levar a um modo diferenciado se estar no lugar e no tempo.

Dois aspectos, no entanto, foram ficando mais evidentes, para além dos elementos concretos presentes. O primeiro é a vivência de um instan- te de clareza de consciência, de percepção aguçada dos elementos sensíveis e reflexão acelerada sobre o próprio processo enquanto ele acontece. Uma expe- riência de articulação de liberdade enquanto percepção “a fim de se revelar ou de se velar para o outro”, como um gesto performático. O segundo é o registro deste instante como memória intensa, que ao ser acionada revive quase que a mesma potência do momento de sua instauração.

Estes dois aspectos, então, são levados em consideração para o processo: o instante dilatado e aguçado com toda a reflexão rápida que se pro- cessa, como aquele vivenciado ao realizar uma performance, e a qualidade de seu registro como memória.

Intuindo estes aspectos, não havia certeza se aconteceriam nova- mente, mas estava estabelecida uma possível matriz de processo. Este instante vivido como performance efetivamente voltou a acontecer. Não na recorrência das mesmas condições do primeiro, ao contrário, em uma configuração quase que totalmente oposta. Não mais em uma viagem, não mais publicamente, não mais com um “interlocutor”, não mais em movimento, mas repetindo os dois aspectos mais sutis intuídos. Um instante performático de presença e consis- tência manifestado em um contexto absolutamente diferente. Ao se repetir, foi se configurando mais claramente. A vivência acompanhada de reflexão leva a reconhecer que a partir daquele momento havia subsídios de experiência para passar a reconhecer como performances outros instantes carregados desta po- tência.

O segundo evento merece ser relatado, pois a partir dele se con- solida uma percepção mais específica que leva a reconhecer o desvelamento de um efetivo conjunto de trabalhos. Passados meses do encontro de olhares na viagem a São Paulo, a mesma sensação de habitar um espaço/tempo per- formático volta a ocorrer em uma situação absolutamente oposta. Se no pri- meiro evento se estava fora do contexto cotidiano, em outro território, talvez justamente esta exceção, a do olhar do viajante, poderia agregar um elemento específico favorável ao acionamento ocorrido. Ou o fator da presença de outro, da reciprocidade com um semelhante poderia ser a chave desta entrada em uma dimensão poética do instante. Entretanto a próxima manifestação deste “estado de performance” ocorre sem nenhum destes fatores.

Enquanto a primeira experiência ocorre no espaço público, cheio de estímulos, diante de outros tantos olhares e em uma caminhada de ação ob- jetiva, o segundo instante ocorre isolado, parado e em um espaço absolutamen- te privado. Acontece em um momento sentado sozinho em uma “sauna seca”, relaxando, em silêncio. Enquanto o primeiro é um instante de muitos estímulos, vibrante, público, de interação no ambiente, este é quase o oposto completo.

Fechado em uma sala isolada do mundo exterior, desprovido de proteção no corpo, o som é somente uma quase imper- ceptível vibração do equipamento ligado, a luz é reduzida, os elemento visuais são poucos (quando abro os olhos), o chei- ro característico de madeira, a textura dela no corpo. Úni- ca presença contundente é o calor onde se concentra toda atenção no início. Em seguida, quando ele se torna presente e estável, deixa inclusive de gerar desconforto. A respiração se torna consciente na interação com o ar do espaço, sua temperatura, e neste momento o pensamento divaga.

Tudo se passa com certa naturalidade até que a mesma consciência vivenciada naquele cruzamento de olhar toma conta da minha percepção. Os dois instantes se conectam e tenho a mesma vivência de estar diante, ou melhor, dentro de uma experiência artística.

O que aparentemente não tem nenhuma relação direta, ain- da assim consegue construir aquela mesma potência experi- mentada anteriormente.

Passada esta dilatação do tempo e espaço, em seguida tor- na-se memória concreta, e vejo a dimensão pessoal e invisí- vel que ambas têm em comum, uma vez que não são “teste- munhadas” ou vividas por outro além de mim.