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Por sua natureza tão contraditória em relação à experiência inau- gural, este segundo instante põe definitivamente “em cheque” uma série de aspectos “actuais” que poderiam sustentar o acontecimento em uma instância poética. Ao mesmo tempo que estas vivências e reflexões começam a tomar forma, entre março e maio de 2010 o MoMA apresentava a exposição The Artist

is Present, de Marina Abramovic (1946). Referência seminal da arte da perfor- mance, diante do desafio de recriar e atualizar seu repertório de ações em um

museu, a artista decide colocar em prática um novo trabalho onde sua presença fosse efetiva, como um contraponto às “encenações” de suas antigas ações e a apresentação dos registros das performances originais. A artista de origem sérvia conquista uma retrospectiva no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque,

FIGURA 6 THE ARTIST IS PRESENT ~ Marina Abramovic, 2010

fonte: < https://www.moma.org/learn/moma_learning/marina-abramovic-marina-abramovic- the-artist-is-present-2010/ >

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THE ARTIST IS PRESENT ~ Marina Abramovic, 2010

dando notoriedade à sua trajetória de mais de três décadas como performer, mas sua repercussão foi intensificada especialmente devido à nova ação que deu nome à mostra. Nela, a artista permanece sentada imóvel diariamente, ao longo de três meses durante o horário de abertura do museu, recebendo pesso- as que se sentam à sua frente e a fitam diretamente nos olhos.

A performance é em essência este cruzamento de olhares, com o tempo determinado pelo participante e com o compromisso da artista de estar simplesmente presente diante dele durante este período. Para isso ela define algumas configurações, delimitando uma área em uma sala aberta ao público, onde instala uma mesa de madeira clara com duas cadeiras em lados opostos. Uma das cadeiras é ocupada pela artista, que veste um grande vestido mono- cromático que varia diariamente entre vermelho, preto e branco, e a outra fica disponível para o participante ocupar.

A ação é essencialmente a potência daquele instante de conexão de inter-faces, cruzamento de olhares que geram uma projeção de energia úni- ca a cada interação. E o reconhecimento da essencialidade da ação se revela no processo de execução da performance, quando após um período, a artista pede para retirar a mesa que a separa do outro, pois reconhece que é um elemento dispensável, inicialmente usado como forma de segurança à intensidade da ex- periência mais completa.

É uma performance acionada diretamente pelo olhar, na cumpli- cidade e empatia com o olhar do outro. Talvez outras ações de performance tenham recorrido a este elemento direto de conexão, mas na simplicidade e potência que adquire, e ocorrendo em um momento tão próximo com o instan- te inaugural desta pesquisa, torna-se referência direta para reflexão sobre a mesma. The artist is present se produz ainda pela superação dos elementos do ambiente em que acontece, na imobilidade e na rarefação do gesto, e se funda na presença no tempo. De maneira muito consistente, sintetiza questões impor- tantes já elaboradas no repertório da artista. Há um radicalismo na duração, na redução de elementos concretos, no silêncio, mas também na supermidiatiza- ção por fotos, vídeos, transmissão digital em tempo real e, assim, pela superex- posição conseguida. É uma obra síntese do tempo em que ocorre, e como tal consegue convergir elementos tangenciados (de forma ainda intuitiva) nas ex- periências descritas aqui. A realização de um trabalho que explicita elementos

essenciais da linguagem da performance parece oferecer uma validação inicial ao processo embrionário desta pesquisa e oferecer caminhos para reverberar novas reflexões do performer-investigador e fornecer subsídios para prosseguir na experimentação poiética aberta pelas duas vivências iniciais.

Assume-se o pertencimento do autor neste campo específico: ambas vivências são, em sua singularidade, possíveis performances despidas ao mínimo. Resta tentar nominar esta singularidade. A questão está no grau de sua evidência, no improvável reconhecimento da ação enquanto experiência artís- tica por outro que não o próprio artista que a vivencia. Há uma “cegueira” ex- terna ao processo enquanto ele se manifesta. Em certo grau, carrega um código próprio que se revela somente ao participante, como na solução de um enigma que abre dimensões de conhecimento e experiência somente a quem se dispõe a decifrá-lo.

Neste sentido, carrega uma invisibilidade, pois está presente mas não atrai o olhar desatento. Se revela pela inter-ação, como aponta o artista multimídia catalão Antoni Muntadas (1942) com o aforismo “Atenção: percep- ção requer envolvimento”. Ele sublinha ainda que “às vezes, tratar de mostrar o invisível também é função do artista. Ou aquilo que não se vê, que está oculto, o que é difícil de penetrar”. Portanto, talvez se esteja diante de performances invisíveis. Performance em reconhecimento à experiência do “artista enquanto obra” e invisível pela singularidade do gesto que se vela para o outro.

Além desta necessidade inicial de nominar, para dar existência inicial, não foram estabelecidos outros parâmetros que delimitem formatos ou duração. Ao contrário, se assume como um contínuo de experiências possíveis em que não são dadas regras, quer seja prazo de encerramento ou limite de quantidade. É um processo em aberto, disponível para as variabilidades e es- pecificidades de cada uma destas ações “a acontecerem”. De certa maneira, se estabelece um método no reconhecimento desta abertura. Muntadas já se posi- ciona neste sentido: “Eu reivindico a ideia do projeto, a metodologia do projeto. Acredito que exista um processo de trabalho que, na maioria das vezes, é lento e toma tempo”. Para ele, se trata de um sistema projetual com etapas que de- vem ser assumidas e desenvolvidas pelo criador a partir do próprio desenrolar do processo, e em que ele reconhece se apropriar de campos de criação mais estruturados, como o cinema, a arquitetura ou o design.

FIGURA 8 ATENÇÃO: PERCEPÇÃO REQUER ENVOLVIMENTO ~ Antoni Muntadas, 2002 FIGURA 9 MIRAR, VER, PERCIBIR ~ Antoni Muntadas, 2009

FIGURA 10

METRICA - Elida Tessler, 2017 FIGURA 11

GALÁXIAS ~ Elida Tessler, 2017

fonte: < https://www.artsy.net/artwork/elida-tessler-metrica > fonte: < https://www.artsy.net/artwork/elida-tessler-galaxias >

Eu a aproprio [a metodologia] a partir da produção artística, e acredito que estas etapas irão desenvolver uma situação que é uma forma pessoal de trabalhar. Reivindico que o tra- balho é feito fora do estúdio, e que o estúdio é onde você está, e que o contexto é importante. A partir daí, como dizia, interessa-me falar sobre fenômenos contemporâneos, sobre o que nos rodeia. E esta situação que nos rodeia deve ter o filtro de uma visão onde um projeto pode ser criado. [39]

A artista brasileira Elida Tessler (1961) que, de forma muito parti- cular, elabora um corpo de obras fortemente fundado em pequenas percepções do cotidiano, assume como método que a permite iniciar um trabalho, o uso de um sistema pessoal de escolhas que impulsiona o processo. Ela pratica o cruzamento de ação e reflexão, acessando uma entrada pelo meio, pelo aconte- cimento.

Desde há muito tempo, sem precisar de nenhuma data ou evento específico, eu tenho uma observação do cotidiano bastante aguda. Devo a isso bastante parte do que eu faço. Me alimento disso, tomo qualquer gesto banal, cotidiano, elemento do acaso, como matéria prima para o meu traba- lho. Desde o momento em que eu percebi que isso me satis- faz, eu tentei aprofundar como método de criação este tipo de evento. [40]

A artista ainda acrescenta sua disposição em dar atenção cons- tante a pequenos momentos do cotidiano e em poder destacar principalmente os gestos que ocorrem neles: “prestar atenção no gesto da manicure, no tempo da manicure, na forma como ela segura o pincel”. No exemplo citado ela aponta um gesto do outro, mas inclui gestos do próprio artista como possibilidade de destaque. Estes eventos solicitam alguma atenção e chamam a iniciar um per- curso, para ela, quando percebe neles uma certa repetição. Esta é uma regra que vai se tornando mais explícita e se transforma em processo no decorrer da

39 MUNTADAS Antoni. Meu estilo de Arte. in Fronteiras do Pensamento. Publicado em 18 de fev de 2013. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=3Px6C05mHuk > . Acesso em: 16 de janeiro de 2019

40 TESSLER, Elida. Elida Tessler e a beleza do cotidiano. in O Beijo. Publicado em 7 de jun de 2017. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=gUGKqDLPmus >. Acesso em: 16 de janeiro de 2019

conformação do trabalho. Elida refere que “para mim existem dois elementos associados, que é justamente o percurso e todos elementos múltiplos e sin- gulares que possam acontecer durante o percurso, e uma certa repetição, por mais incrível que pareça.” O que indica que o evento aqui é em grande parte um momento delineado por um gesto que carrega um grau de repetição.

Há o evento, ele é vivenciado, e sobre ele a artista aciona este filtro que o revela. “A minha forma de trabalhar é muito mais intuitiva … o que eu percebo é a minha responsabilidade em lidar com os desvios, de estabelecer regras para mim mesma, mas dar lugar a transgressão. E ninguém precisa saber, eu não preciso declarar” [41]. Esta estratégia é um exercício de liberdade sobre

a própria rigidez de processo. Há o compromisso com uma regra até o ponto que seja pertinente à obra, e nem todos aspectos das articulações que a geram precisam estar manifestadas na construção final do trabalho. Elementos menos visíveis, ou mesmo somente sugeridos de forma muito indireta, acrescentam inclusive qualidades e aberturas poéticas à obra, que Tessler reconhecidamente aprecia.

É possível identificar um paralelo direto com esta construção de metodologia pessoal, mas a ação reflexiva da pesquisa busca compreender ain- da mais profundamente as especificidades dos instantes vivenciados, testando e validando seus limites. O olhar da primeira experiência poderia ser realmente caracterizado como um gesto? Este gesto poderia estar manifestado também na ação passiva da segunda? Não contando com um observador externo, será que estes gestos ainda são performances? Uma vez que o gesto não é exteriorizado, seria ainda uma ação performática ou estaríamos aí diante de um limite concei- tual?

Considerando que Flusser caracterizaria gesto como “intenção de liberdade que age sobre o corpo ou sobre outros corpos” [42], este gesto parece

ainda estar manifestado nas performances invisíveis. Gesto, sob este ponto de vista, não seria necessariamente definido por uma ação física de qualidades explícitas, exteriores ao corpo que o manifesta. Gesto poderia então ser defini- do pela “intenção de liberdade”, ou vontade de que está impregnada a ação do

41 ibid.

artista, correspondente a esta ação de ‘filtragem da percepção’ que Muntadas delineia na sua metodologia de projeto criativo, também caracterizada por Tes- sler na sua prática.