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Verter as performances invisiveis para um sistema de linguagem sem perder a singularidade da experiência, se transforma em um desafio, mais

87 DEWEY, John. op. cit., p. 383.

88 A Hipótese assim denominada, no entanto, começou a ser propagada pelo linguista e antropó- logo norte-americano Harry Hoijer (1904-1976), aluno de Sapir, em uma conferência de 1954. MACHADO, Isadora. A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF” - Línguas e Instrumentos Lin- guítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015.

que uma necessidade. Barry propõe várias soluções e o gráfico de Eddington seria uma síntese do processo, expresso com a elegância de uma bela equação, mas a redução a que chega leva quase a uma abstração, que se distancia das qualidades específicas dos instantes vividos nesta pesquisa. A possibilidade de conversão que mantenha alguma especificidade de cada acontecimento indivi- dual parece ser mais adequada ao desenvolvimento desta investigação. O de- safio foi de tentar encontrar uma maneira de atualizar a situação performática sem que ela se perdesse, identificar os aspectos mais relevantes de cada ins- tante, mantendo a perspectiva de que passariam pela percepção de outro. Em um certo sentido, a materialização poderia tentar ser um caminho para levar o público a reconstruir em sua memória pessoal a performance vivida.

Dewey afirma que “as palavras servem a seu objetivo poético na medida em que convocam e invocam para uma operação ativa as respostas que estão presentes sempre que experimentamos qualidades” [89]. Para tentar invo-

car estas qualidades, buscou-se por um formato de texto, como que um título descritivo e curto que desse conta da essência dos instantes. Sintetizando sem qualificar subjetivamente a experiência, poderia assim dar margem à reconstru- ção do leitor como agente. Deveria expressar a ação ainda ocorrendo e assim talvez acolher o leitor na experiência. Sem um formato ou regra pré estabele- cida, inicialmente buscou-se somente a redução às palavras mais significativas que descrevessem a memória registrada. Foram escritas juntas, a partir da ação de reviver cada uma e redigi-las no papel como fluxo de pensamento.

Foram escolhidas seis ações, e estas foram transcritas para um arquivo digital de texto e naquele momento receberam legendas indicando a cidade e a data em que ocorreram. Graficamente escolheu-se redigir em letras minúsculas, fonte padrão de texto em itálico sem serifa na cor cinza. Evitou-se marcação de início ou fim de frase, e foram colocadas entre parênteses, de for- ma a sugerir um recorte, uma aposição gramatical.

Estas situações permaneciam secretas, preservadas somente como lembranças acessadas a nível pessoal. Como memórias, por mais que de- talhadas e vivas, são fluidas, em constante reconstrução e, por esta natureza, são ricas como processo. São estímulos e sensações registrados de forma con-

FIGURA 27 PERFORMANCES INVISÍVEIS - Fernando Bakos, 2014 primeiro registro em texto para projeto de pesquisa

sistente, que revividos se atualizam e se reforçam. Percebe-se que aí já existiam dois elementos operando, a situação vivida como performance e a sua constru- ção como memória. Adiciona-se um terceiro ao levar as memórias para o texto. No momento em que são escritas, as experiências e memórias se fundem em linguagem, alcançando visibilidade, mesmo que parcial. Os escritos ganham status de desdobramento da ação original, a referenciando. Sem serem registros diretos da performance, como uma fotografia ou imagem em movi- mento seriam capazes de fazê-lo, captando diretamente os aspectos visuais e físicos do instante, não são também um relato que estabeleça um ponto de vista especifico, de quem age ou de quem observa.

Se reconhece, no entanto, a não neutralidade absoluta da reda- ção de um texto, em suas escolhas semânticas, sintáticas, visuais e gráficas, que já estabelecem denotações e conotações novas. Lidar com texto é invocar indi- retamente uma longa tradição humana da poesia. Talvez não tanto da poesia de métricas ocidentais, mas muito possivelmente suscite semelhanças de um Hai-

ku, tradicional poesia japonesa, ou mesmo de um Koan, uma frase de reflexão

do Zen Budismo.

Os Haiku se caracterizam por buscar a síntese de uma sutileza, re- velada pelo corte entre dois aspectos justapostos. Faz uma recombinação para a construção de sentidos novos, que não são nominados diretamente, mas suge- ridos. A própria construção da escrita em ideogramas proporciona formalmente esta possibilidade de corte e, tradicionalmente, segue uma estrutura bastante complexa de “sílabas” .

Breve composição poética, de origem japonesa (também chamada hokku, haikai ou haicai) que se funda nas relações profundas entre homem e natureza; e obecede à estrutura formal de 17 sílabas ou fonemas, distribuídos em 3 versos. O fundamento filosófico do haiku é do preceito budista de que tudo neste mundo é transitório e que o importante é saber- mo-nos feitos de mudanças contínuas como a natureza e as estações (primavera, verão, outono e inverno). [90]

90 COELHO, Nelly Novaes. HAIKU in E-Dicionário de Termos Literários. < http://edtl.fcsh.unl.pt/ encyclopedia/haiku/ > Acesso em: 05 de fevereiro de 2019

Contemporaneamente, autores japoneses e ocidentais subvertem esta estrutura em nome de uma liberdade pessoal e, muitas vezes, de forma a se adaptarem a outras línguas. Segue no entanto a premissa desta ligação com a revelação de aspectos sutis da vida e da natureza. É uma forma objetiva e precisa de apontar para estes instantes e experiências delicados. Algo, como aponta Pavis, que é próprio da poesia: “poesia é aquilo que de súbito faz senti- do e constitui beleza para um sujeito, sem que ele possa separá-los, nele e fora dele”. [91]

As transcrições das performances invisíveis não são tão estrutu- radas, nem se propõem a usar esta linguagem específica dos Haiku. Tem afini- dades quanto ao conceito e à essência de revelação de algo sutil, e de alguma forma vão desdobrar relações com esta colagem e corte que os configuram, mas as frases escritas são muito mais sínteses de impressões de uma memória intensa. Redigidas de forma automática, sem preocupação direta com a articu- lação de fórmulas que construíssem uma métrica, ritmo ou “rima” recorrente, são escritos de memória. Colocados no papel depois de uma elaboração parti- cular sobre o reviver daqueles instantes em suas complexidades de estímulos e sensações, podem ser entendidos , então, como frases de memória. Resulta que

frases-memória parece ser uma denominação pertinente para identificar a ação em que se fundamentam.

Retomando a observação de como resultaram escritas, as frases- -memória atualizam um contínuo da experiência original, carregam os gestos do performer agindo em situações e lugares específicos. Traduzem particulari- dades destes lugares comuns, quase banais, como um rompimento da ordem ou do cotidiano. Em sua maioria começam pelo verbo. Três delas em gerúndio, indicando uma ação suspensa, que não tem início ou fim. Parecem convidar o leitor para um permanente entre.

CRUZANDO, CAMINHANDO, MISTURANDO abrem para a participa- ção do leitor de forma mais generosa, enquanto SENTADO, DEITADO parecem estabilizar a ação. A última frase personaliza ainda mais a ação, quando começa por ME MISTURANDO. Diante desta primeira reflexão crítica sobre o material que se apresentava finalmente realizado como linguagem, a própria linguagem pas-

sou a sugerir caminhos que não eram nítidos enquanto pertenciam ao campo da memoria pessoal mais abstrata e sinestésica. As frases passaram a se mimetizar à memória e resultaram em uma depuração natural, que as transformou.

Na medida em que foram sendo verbalizadas pelo autor, nas di- nâmicas da pesquisa, discussões e apresentação do projeto, foram se alinhando naturalmente a assumirem uma estrutura em comum. Notou-se que conforme eram repetidas e revivificadas, tornavam-se mais sintéticas, aparando, no atrito do cotidiano, as pontas excedentes para tornarem-se mais fluidas. O texto é como seixos rolados em um rio que vão sendo esculpidos pela correnteza e pelo trajeto que percorrem. O resultado, a seguir, foi anotado em um arquivo digital, que se tornou repositório mais tarde de todas outras novas performances invi- síveis que ocorreram no percurso desta investigação.

CRUZANDO O ULTIMO OLHAR DE UMA SENHORA

são paulo - brasil - 2010

SENTANDO DESPIDO EM UMA SAUNA

porto alegre - brasil - 2010

MERGULHANDO OS OUVIDOS EM UM LAGO À NOITE

taquara - brasil - 2011

CAMINHANDO SOZINHO EM UMA CIDADE DESERTA

molinos - argentina - 2011

CIRCULANDO ENTRE OS CLIENTES NOTURNOS DE UMA FARMÁCIA

paris - frança - 2012

DEITANDO DE COSTAS SOBRE UM MURO

FIGURA 28 CONTRA-CAPA REVISTA VIEW Nº5, Marcel Duchamp, 1945

FIGURA 29

CAPA REVISTA VIEW Nº5, Marcel Duchamp, 1945

Já no primeiro registro, foram adicionadas às seis frases iniciais mais duas que não haviam sido colocadas em texto anteriormente.

OUVINDO O AMARELO INTENSO DAS FLORES SOB OS PÉS NA CALÇADA

porto alegre - brasil - 2013

OBSERVANDO O RELÓGIO PARADO EM UMA TORRE NA EXATA HORA QUE ELE MARCA

são paulo - brasil - 2014

Esse é o conjunto das oito primeiras frases-memória. As perfor- mances invisíveis ocorridas em 2015 já foram transcritas seguindo esta regra comum, iniciando por um verbo em gerúndio, sem os recursos de pontuação e dos parênteses usados inicialmente. As frases seguintes já foram filtradas por esta maneira com que as anteriores se alinharam. Na experiência dos instantes de performance que voltaram a ocorrer, as frases já compunham a gênese da memória, gerando um atrito vital entre linguagem e não-linguagem no próprio corpo do autor durante o acontecimento. E algumas performances invisíveis pa- reciam não conseguir se tornar frases-memória por algum motivo, talvez uma complexidade de elementos, uma diluição da ação ou uma radicalização da in- tangibilidade vivida.