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Kaprow, assim como outros contemporâneos, reconhece ali, em

Theater Piece #1, a matriz de algo novo na arte e que se diferencia do teatro e de outras manifestações cênicas conhecidas. A ele é atribuído o uso definitivo do termo happening para identificar algo que, em contraste, não teria trama, seria “sujo” e daria terreno fértil para a plateia “germinar”, materializado pela liberdade de um improviso em jazz.

Happenings são eventos que, simplesmente, acontecem. No entanto os melhores tem um decisivo impacto - como se sentíssemos “aqui está algo importante” - eles aparentam não chegar a lugar algum ou apontar para algo específico. Em contraste às artes do passado, eles não têm uma estru- tura de início, meio ou fim. Sua forma é aberta e fluida; nada óbvio é buscado e por consequência nada é ganho, exceto a certeza de um número de ocorrências a que estamos mais atentos que o normal. Eles existem para uma performance única, ou somente algumas poucas, e se vão para sempre conforme novas tomam seu lugar. [64]

Ele não aponta precisamente um contraste com a performance, talvez porque o termo em inglês tenha outras dimensões, de realização e desem- penho, que “borram” estas fronteiras. Outros teóricos também não fazem esta distinção clara. Goldberg trata como performance, em retrospecto, todos seus

63 “ In Zen Buddhism nothing is either good or bad. Or ugly or beautiful ... Art should not be di-

fferent [from] life but an action within life. Like all life, with it´s accidents and chances and variety and disorderand only momentary beauties“ (tradução livre do autor)

ibid., p. 126.

64 “ Happenings are events that, put sumply, happen. Though the best of them have a decided im-

pact - that is, we feel, “here is somethng important” - they appear to go nowhere and do not make any particular literaly point. In contrast to the arts of the past, they have no structured beginning, middle, or end. Their formis open-ended and fluid; nothing obvious is sought and therefore nothing is won, except the certainty of a number of occurrences to which we are more than normaly atten- tive. They exist for a single performance, or only a few, and are gone forever as new ones take their place. “ (tradução livre do autor)

predecessores desde os futuristas, nominando os trabalhos ligados a Kaprow e à cena de Nova Iorque dos anos 60, especificamente, como happenings. Taylor trata uma gama de ações, que vão do ritual ao ativismo, como performance, independendo do formato que tomam, e Pavis nem inclui no seu dicionário o verbete Happening.

Renato Cohen, em Performance como Linguagem, aponta que “A

performance está ontologicamente ligada a um movimento maior, uma maneira

de encarar a arte, a live art. A live art é a rate ao vivo e também a arte viva”. [65]

O mesmo enfoque é partilhado por Glusberg, que complementa “O nome live

art não vem só do fato de envolver participação. Esta forma de arte também foi

chamada de live porque tinha intenção de ser tirada da vida, da existência coti- diana” [66]. Para estabelecer uma distinção prática para o uso dos termos, Cohen

arrisca propor que “Pode-se dizer, de uma forma genérica, que performance está para os anos 70 assim como o happening esteve para os anos 60”. [67] Com-

plementa que estas datas têm por base as manifestações da arte na Europa e nos EUA, onde foram gestadas e desenvolvidas em maior escala. Ele chega inclu- sive a construir uma tabela em que distingue qualidades de ambos os termos de forma bastante pragmática para defender a proposta de uma passagem do

happening para a performance.

Se em 1989, ano da publicação de Performance como Linguagem, esta necessidade de distinção conceitual poderia ser pertinente, mais tarde, com a exploração das práticas de live art em novos contextos, estas definições começam a se diluir. No século XXI já é possível reconhecer aspectos do happe-

ning, da performance e do teatro interagindo de forma fluida nos trabalhos de

artistas, provocando muitas vezes uma dificuldade de classificação. Os próprios artistas acabam denominando suas propostas muito mais a partir do reconheci- mento de seu pertencimento a um campo ou outro do que devido ao resultado da sua ação.

A própria Marina Abramovic reconheceu esta dissolução de fronteiras nítidas de linguagem, quando tanto o teatro quanto a performance ampliaram seus recursos pela combinação gradual de aspectos comuns. Se a

65 COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo, SP: Perspectiva, 2002.. p. 38. 66 GLUSBERG, Jorge. op. cit., p. 32.

performance precisou reforçar sua distância inicial do teatro tradicional, que-

brando a “quarta parede” e levando aspectos ritualísticos da “vida real” para a cena, inicialmente também era importante reivindicar esta nova dimensão da ação gerada pela presença no instante. Abramovic por muitos anos dizia que na

performance o sangue é de verdade, enquanto no teatro é sangue falso. Havia

um ponto claro de separação entre a ação do performer, se colocando em obra, e um ator que interpretava um personagem diferente de si, seguindo um tex- to previamente redigido e dirigido por terceiros. Haveria uma singularidade da ação performática em relação à teatral que, aos poucos, foi se rompendo.

O nome “performances invisíveis”, dado às ações vivenciadas nesta pesquisa, é, em si, uma provocação sobre estes limites, marcando a flui- dez desta prática que ainda se revela ao próprio autor conforme segue aconte- cendo. O nome é muito mais um ponto de partida para questionar o processo do que uma definição absoluta. É uma experimentação que carrega dimensões re- conhecidas e não reconhecidas do processo. Seus desdobramentos reforçam a necessidade da constante disponibilidade à articulação dos filtros usados para reconhecê-la.

Estas experiências consistentemente voltam a acontecer, vividas em momentos, lugares e situações das mais distintas. Outras seis se revelam até o inicio de 2014, formando um grupo inicial de oito. Quatro delas ocorrem como a primeira, em viagem, possivelmente propiciadas pela situação de deslo- camento do cotidiano e todos estímulos que isso gera na consciência e percep- ção: mergulhando em um lago, caminhando em uma cidade deserta, entrando em uma farmácia e olhando a paisagem no topo de um prédio. A ocorrência das ações se dá aparentemente sem nenhuma relação direta entre si. Ao mesmo tempo, outras duas ocorrem em intervalos do dia-a-dia, entre atividades do co- tidiano: no final de semana no clube e em um dia de semana na saída de casa. Permanecem como memórias, experiências, vivência e neste momento como experimentação artística efetiva. Assumidas como prática, se transformam em um processo, mesmo que muito íntimo, pessoal e não compartilhado com ter- ceiros.

1.2 INFRA-AÇÕES

INFRA- (prefixo) indica ‘abaixo, embaixo, em posição inferior’ [68]

As performances invisíveis foram tomadas até certo momento como uma prática particular. Assumidas como um segredo pessoal, geravam uma satisfação como habitantes imateriais da memória, sem necessidade de transformarem-se em algo concreto, objetual. Estavam em uma situação paci- ficada, como procedimentos de experimentação por si. Se reconhece inclusive um receio de que, ao serem externadas, deixassem de ocorrer e perdessem sua potência sutil.

A primeira vez em que se deu o impasse diante da necessidade de registrar estas ações particulares para torná-las públicas foi na construção do portfólio vinculado à proposta desta pesquisa acadêmica. Naquele momento houve o confronto com a imposição de encontrar uma maneira de compartilhar

estas práticas pessoais e dar a conhecer como eram e como aconteciam. Alguns padrões já podiam ser identificados: não eram instantes necessariamente soli- tários, nem necessariamente de silêncio, não eram necessariamente de deslo- camento, mas eram ações de presença aguçada. Como tratar, então, a dimensão absolutamente imaterial desta presença? Como traduzir a experiência para ele- mentos compartilháveis?

A solução de transformar em objeto visível daria uma configura- ção para a experiência, “congelando” algo fluido em um forma definitiva. Talvez pudessem ser apresentadas em memorial descritivo, tratando o acontecimen- to como um depoimento ou como uma observação externa, mas isso sugeria ater-se demais aos componentes secundários da experiência. Qualquer tradu- ção parecia gerar uma outra dimensão, de recriação do acontecimento em novo trabalho. Uma foto, como alternativa, seria uma re-encenação, nem mesmo um registro, pois não poderia mais captar o instante do acontecimento. Uma tarefa que faz recordar Manoel de Barros (1916-2014) quando confessa a difícil tarefa de “fotografar o silêncio”. No poema O Fotógrafo, sai na madrugada e vê “o Si- lêncio pela rua carregando um bêbado”. Ele o fotografa, e em seguida acaba por fotografar também outros acontecimentos mínimos que vive no caminho, o per- fume, o perdão e a existência. A experiência, pelo poeta, vira poema. Portanto, a experiência que passa pelo performer deveria virar performance?

Ainda assim, as performances demandavam alguma forma de existir no portfólio par cumprir a proposta acadêmica. Talvez uma solução mais neutra fosse tentar sintetizar a experiência em um esquema, um gráfico com alguma imparcialidade de linguagem. Se possível, bastaria? Outros artistas já haviam visitado este território de ações que beiram a visibilidade, trabalhando o vazio, o nada ou a mínima existência. Como haviam solucionado este conflito?

Kaprow é um destes artistas que age na desmaterialização da arte, orientado pela reflexão em torno da noção de experiência de Dewey. Como investigador e professor, percebe a impossibilidade de conversão de algumas singularidades da experiência em linguagem. Ele questiona seu próprio pro- cesso e afirma que “ A prática de tal arte, que não é percebida como arte, não é tanto uma contradição quanto um paradoxo” [69].