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Capítulo III. SOBRE A ESCOLHA DO DIÁCONO DE SARAGOÇA PARA PATRONO DE LISBOA

3. culto no Algarve

Embora a emigração trans-pirenaica dos sécs. XI e XII possa ter contribuído para reforçar o interesse por S. Vicente, a razão da escolha do mártir para padroeiro de Lisboa não poderá deixar de ser procurada na conjuntura histórico-cultural da faixa mais ocidental da Península e nomeadamente nas tradições aí existentes. Mestre Estêvão fala claramente da influência exercida por moçárabes vindos do sul, quer na divulgação das antigas tradições vicentinas do Algarve, quer no resgate das relíquias aí veneradas. O persistente culto do mártir naquela área geográfica impôs-se por largo tempo à

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admiração não só dos cristãos das cidades e lugares do sul, mas igualmente das comunidades islâmicas. Como noutros tempos, também no de Afonso Henriques, a fama desse culto, decorrente da importância do santo venerado, atravessara os limites da região em que florescera. Mercadores, cativos de guerra e gente que por motivos variados fazia o trânsito entre as diferentes comunidades religiosas terá contribuído para que os ecos dessa fama alastrassem. Tratava-se, além do mais, de um culto com história, antiga, a remontar aos tempos da invasão árabe da Península, que havia sido perpetuado pelos herdeiros do cristianismo visigótico. Essa história que falava da trasladação de S. Vicente para o Algarve no tempo de ‘Abd al-Raḥmān I tradicionalizara-se desde há muito, proporcionando à comunidade que a divulgara períodos de prosperidade e garantindo-lhe um passado prestigiante que fazia toda a diferença.

Terá tido impacto nos cristãos portugueses que lideravam pela ideologia e pelas armas a reconquista do território a sul de Coimbra. Terá impressionado particularmente Afonso Henriques que, esperando uma ocasião politicamente favorável, mandou trasladar as relíquias do mártir para Lisboa. Assim o afirma Mestre Estêvão. O chantre fala do papel determinante que desempenharam dois religiosos moçárabes residentes em Lisboa na divulgação do lugar em que se situava a capela algarvia, onde eles próprios haviam venerado Vicente. Deduz-se que estes moçárabes, questionados por muitos acerca da sepultura do mártir, e nomeadamente por aqueles que imaginavam dar um aproveitamento religioso e também social e político ao que eles contavam, terão sido os principais agentes de transmissão da antiga história hagiográfica de origem moçárabe. Contudo, certamente muitos outros terão desempenhado igual papel ao longo das guerras da reconquista. O conhecido passo da Vida de D. Teotónio que fala de um grupo de moçárabes aprisionado por Afonso Henriques em terra de mouros (cf. p. 32) exemplifica bem uma situação de proximidade intercultural, frequente no reinado do primeiro rei português, resultando deste contacto entre os cristãos do norte e os cristãos do sul islâmico trocas e influências tanto mais consequentes quanto os cativos de guerra acabavam, em geral, por se integrar nas comunidades dos novos dominadores. Ora, sabendo D. Teotónio, como conta a sua Vida, que Afonso Henriques chegara a Coimbra com grande número de prisioneiros moçárabes, decidiu, contrariando os seus hábitos, sair do mosteiro de Santa Cruz para ir ao encontro do monarca e admoestá-lo por ter reduzido à condição de escravos muitos cristãos. Pediu-lhe em seguida que os libertasse

a todos, ao que o rei imediatamente acedeu. Encarregou-se depois D. Teotónio de lhes dar sustento e terra para morarem nas imediações do mosteiro:

Foi assim que, após terem sido libertados da escravidão, por seu empenho [de D. Teotónio], mais de mil homens, sem contar suas mulheres e crianças, a todos os que daquela gente quiseram ficar em Coimbra, o santo deu-lhes um lugar para morarem em torno do mosteiro e alimentou-os durante muitos anos com as provisões do mosteiro, pois estavam desprotegidos e não eram abrangidos pelos costumes da terra. (p. 177)

Estes e outros moçárabes tinham certamente memórias para recordar e histórias para contar. Sob o domínio muçulmano tinham continuado a venerar os santos e os símbolos do cristianismo, mantendo vivas as heranças religiosas do passado. Nada mais natural, portanto, que os monges de Santa Cruz, os cavaleiros da cidade, que iam travando lutas territoriais, os cónegos e as gentes de Coimbra tivessem acolhido com especial atenção e emoção os relatos tradicionais das devoções cristãs do sul. Tendo Afonso Henriques trocado a residência habitual dos condes portucalenses em Guimarães por Coimbra, por volta de 1131 ou 1132, e estabelecido desde então um contacto estreito com os religiosos e cavaleiros daquela cidade, é de crer que através deles tenha reforçado a curiosidade e o interesse em relação às notícias transmitidas pelos moçárabes. A amizade e confiança que ligaram Afonso Henriques a D. Teotónio poderá ter contribuído para que o rei aprofundasse junto do prior o conhecimento acerca da recomposição social provocada pela reconquista, pelo menos na região de Coimbra; conhecimento que D. Teotónio, um protector confesso dos moçárabes cativos de guerra, estava em condições de possuir.

Em torno de Afonso Henriques reuniram-se, pois, condições muito favoráveis ao contacto com os costumes do sul e com os valores histórico-religiosos que eles veiculavam. A cidade de Coimbra, onde o monarca fundara um dos principais mosteiros da Idade Média portuguesa e onde encontrara relevante apoio espiritual e guerreiro para a sua acção governativa, era aliás um antigo bastião do moçarabismo e porventura um dos melhores exemplos de tolerância e sincretismo cultural. Tanto o conde Sesnando, hábil conciliador de interesses políticos, como o bispo Paterno, que reorganizara a diocese de Coimbra e instituira uma comunidade de cónegos, haviam sido bons intérpretes dessa maneira de encarar a convivência dos dois povos. A estes juntaram-se outros nomes, de clérigos e leigos, de que a cidade certamente se orgulhava. No tempo de Afonso Henriques, os herdeiros da cultura moçárabe continuavam a

ocupar um lugar relevante na cidade. Encontravam-se entre os cónegos da sé, entre os monges de Santa Cruz e entre os cavaleiros que rodeavam o rei132. A simpatia da elite política pelos seus costumes, por oposição aos veiculados por Roma, cada vez mais defendidos desde o bispado de Gonçalo Pais (1109-1128), deixou ecos por exemplo nas crónicas antigas copiadas naquele mosteiro, nomeadamente no famoso episódio do bispo negro, transmitido pela 4ª CB. A mesma atitude de compreensão em relação aos valores moçárabes é bem visível na reacção de D. Teotónio atrás referida. Posto isto, acrescentaria que talvez os dois religiosos moçárabes que, segundo MSVicentii,

informaram os residentes da cidade de Lisboa acerca do local de sepultura de S. Vicente no Algarve tenham passado por Coimbra como cativos de guerra. É de resto o que se infere de um passo do relato de Mestre Estêvão, onde se afirma que esses “dois irmãos, homens de religião” fizeram parte de “um grande número de cristãos” resgatados por Afonso Henriques aos mouros, antes da conquista de Lisboa.

Se não há dúvida de que a oralidade foi um canal privilegiado de aproximação entre o norte cristão e o sul islâmico, que permitiu a divulgação de crenças e hábitos distintos, no que particularmente diz respeito à história da origem antiga do culto de S. Vicente no sudoeste peninsular é preciso ter em conta que esta se conservava numa memória literária árabe. Registara-a al-Rāzī, no séc. X, cerca de dois séculos antes de ela ter chegado aos ouvidos da elite governante do Portugal de meados do séc. XII. Embora não tenhamos quaisquer notícias sobre a presença da crónica do historiador cordovês em Portugal, antes do final do séc. XIII/ início do XIV, quando foi traduzida para português, é de crer que tal se tenha verificado. Poderá ter pertencido à livraria de alguma prestigiada individualidade ou instituição eclesiástica medieval, pois continha matéria suficientemente relevante sobre as origens, a história e as características das regiões mais ocidentais da Hispânia. Ou, como propõe A. Rei, embora referindo-se apenas à parte relativa à geografia da Espanha, cuja tradução portuguesa guarda vestígios do patrocínio dos senhores de Aboim-Portel, é possível que a crónica árabe se

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Os nomes de alguns cónegos da sé de Coimbra que aparecem no Livro das Kalendas são de origem moçárabe (Liber Anniversariorum Ecclesiae Cathedralis Colimbriensis (Livro das Kalendas), ed. de

DAVID e SOARES). Também têm a mesma origem vários nomes de monges do mosteiro de Santa Cruz registados no Livro Santo de Santa Cruz (ed. de VENTURA e FARIA) e alguns nomes de cavaleiros que aparecem na documentação medieval portuguesa. Sobre a identidade deste últimos, veja-se MATTOSO,

Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros. A Nobreza Medieval Portuguesa nos Séculos XI e XII, pp. 181-

encontrasse nalgum dos castelos algarvios governados por aqueles senhores, nomeadamente no de Silves, “a última grande urbe do extremo ocidente islâmico a cair em mãos dos cristãos, entre 1242 e 1249”133

. De uma maneira ou de outra, pode encarar- se a hipótese de o relato sobre a trasladação ter sido conhecido por alguns circuitos cultos do séc. XII, sobretudo por aqueles que mantinham ainda vivas as heranças moçárabes. Se Mestre Estêvão tiver, de facto, sido um moçárabe, como é convicção de José Mattoso, então aumenta a probabilidade de ter tido conhecimento dessa translatio a partir de um testemunho árabe.

Com efeito, apesar de nos terem chegado raras notícias acerca da presença de obras escritas em árabe em território português, sabemos que elas fizeram parte de alguns fundos bibliográficos antigos, e que terão sido consultadas por aqueles que possuíam competência linguística para as ler. Sabe-se que na antiga biblioteca da sé de Coimbra, cidade onde a cultura moçárabe assumiu uma importante expressão, houve obras em língua árabe. O bispo Paterno, à data da sua morte, em 1087, deixou à sé, além de A Cidade de Deus de S. Agostinho, um Librum Chronicarum que acompanhava as

Etimologias de S. Isidoro, um librum canonicum arabice scriptum e alios libros

Spalenses134. É natural que o livro de crónicas integrasse as (ou algumas das) obras

históricas do famoso bispo de Sevilha, ou seja, o Chronicon, a Historia de regibus

Gothorum, Vandalorum et Suevorum e o De viribus illustribus. Mas nada impede de

conjecturar que nesse códice se encontrasse qualquer outro trabalho histórico, até porque, como é sabido, na Idade Média circularam sob o nome do referido prelado hispânico obras que não saíram do seu punho. É o caso da anónima Historia Pseudo-

Isidoriana, que o códice parisience 6113, do séc. XIII, mostra ter sido conhecida através

do título Cronica Gothorum a sancto Isidoro. Sob a designação livros sevilhanos poderiam estar agrupadas algumas obras de S. Isidoro, como presume A. Jesus da Costa135, ou, como sugere A. Borges Coelho, obras de história, filosofia ou ciências136. Poderiam ainda, como penso, encontrar-se algumas obras árabes (escritas nesta língua ou traduzidas). Pena é que o registo do Livro das Calendas sobre as doações do bispo

133

Cf. REI, op. cit., pp. 80-82.

134

Cf. Liber Anniversariorum Ecclesiae Cathedralis Colimbriensis (Livro das Kalendas), ed. cit, p. 122.

135

COSTA, “A Biblioteca e o Tesouro da Sé de Coimbra”, p. 12. 136

Paterno não tenha inventariado discriminadamente tais livros. No século seguinte, em 1175, Mestre Martinho deixava à sé de Coimbra vários exemplares de livros de ciências. Embora apenas num caso (o do librum Constantini) seja possível falar com segurança de origem árabe, é provável que vários outros se integrassem nesta categoria. Pode também presumir-se que entre as doações de livros feitas pelo bispo moçárabe D. Julião, por Ermieiro e por Mestre Martinho à sé de Coimbra, no final do séc. XI, houvesse obras árabes137. É igualmente plausível que os bispos andaluzes atraídos pelo governador moçárabe Sesnando à cidade de Coimbra, reconquistada desde 1064 por Fernando Magno, tenham promovido a circulação de obras de autores islâmicos e moçárabes. Além do já referido bispo Julião (que deixou libros à sé onde exerceu a sua actividade eclesiástica), há notícia de mais dois bispos vindos do sul andaluz, Domingos e João, cujos nomes figuraram em diplomas coimbrãos. Também eles terão feito doações do mesmo tipo à sé de Coimbra. Não é, pois, de estranhar que numa cidade onde a cultura moçárabe se impusera de forma tão particular, as literaturas islâmica e moçárabe, nos seus diferentes géneros, tenham ocupado um lugar destacado, que hoje estamos impossibilitados de poder avaliar. E decerto que também noutros lugares da faixa mais ocidental da Península, sujeitos ao domínio islâmico, se terão produzido e conservado (em contextos religiosos ou outros) obras que perpetuavam saberes e memórias. Infelizmente, não nos chegou qualquer notícia delas. A reconquista territorial terá provocado uma parte da sua destruição138, havendo no entanto que admitir que algumas possam ter tido diferente sorte, vindo a integrar as bibliotecas portuguesas existentes ao tempo. Se os inventários de que hoje temos conhecimento não fossem em geral relativamente tardios e não tivessem sido elaborados de forma muitas vezes

137

Livro Preto. Cartulário da Sé de Coimbra, p. 78 (doação de Ermieiro), p. 609 (testamento do bispo D.

Julião) e p. 711 (testamento de Mestre Martinho).

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As guerras de reconquista poderão explicar a perda dos fundos bibliográficos das cidades islâmicas a sul de Coimbra, de que fariam parte obras de autores tão prestigiados como Ibn Bassām de Santarém, Ibn ‘Ammār de Silves, ou Ibn ‘Abdūn de Évora. SIDARUS aponta a forma rápida e “relativamente brutal” como se processou a reconquista portuguesa como o factor responsável pela perda das obras árabes que se encontravam em território português. Considera também que, pelo contrário, a forma mais compassada como decorreu o avanço dos cristãos para sul na vizinha Espanha terá gerado um “período transitório”, propício à manutenção dos traços de identidade cultural das comunidades islâmicas (Cf. “Manuscritos árabes em Portugal”, p. 124). Certamente que algumas características da reconquista portuguesa estarão na base das irremediáveis destruições provocadas em cidades relativamente pequenas, com valores patrimoniais incomparavelmente mais reduzidos que os das grandes cidades da Espanha, porém não poderemos imputar unicamente a esse período histórico a responsabilidade pelo desaparecimento da quase totalidade da herança cultural islâmica.

imprecisa e pouco descritiva, talvez tivéssemos alguma ideia da constituição dessas primitivas bibliotecas, e víssemos esclarecidas algumas das persistentes dúvidas respeitantes aos legados de letra e influência islâmica139.

Qualquer que tenha sido o percurso da crónica árabe de al-Rāzī, o certo é que no início do séc. XIV ainda se encontrava em Portugal um testemunho da mesma, que a tradução portuguesa feita por essa altura (e hoje também perdida) salvou do esquecimento e perda total. Este desaparecimento não poderá naturalmente deixar de relacionar-se com a infeliz prática de destruição de códices velhos140, encorajada pelo espírito anti-mourisco que persistiu em Portugal até finais do séc. XVIII, época em que finalmente renasceu um tímido interesse pela cultura e literatura árabes141. Os velhos alfarrábios escritos numa língua esquecida e relacionada com uma cultura fortemente hostilizada como a islâmica terão por certo ocupado lugar prioritário na cadeia de destruição e reciclagem de códices. Os acidentes naturais, os furtos, os empréstimos, ou a falta de segurança das bibliotecas medievais portuguesas podem mesmo ter sido menos destrutivos do que a indiferença face às memórias legadas pelo passado islâmico. Não serão, todavia, de excluir outras hipóteses explicativas da perda da crónica de al- Rāzī, tão diversificadas quanto poderá ter sido o número de mãos por que passou.

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Do património bibliográfico das catedrais e mosteiros medievais portugueses também terão feito parte traduções, executadas localmente, de obras árabes para latim. Com efeito, um episódio relatado na

CGE1344 mostra que, apesar do longo domínio muçulmano, Coimbra, ao contrário de outros lugares da

Espanha muçulmana, conservou homens cultos que conheciam bem a língua latina. Tal episódio, proveniente da CMRasis, narra que o alcaide Callabe contara certo dia a Homar como nas suas viagens pela Espanha passara por Mérida e aí encontrara, entre outras pedras mármore, uma muito clara com letras latinas. Pediu aos cristãos da referida cidade que as lessem, mas nenhum o conseguiu fazer, “tanto erã feytas per escuro latim”. Disseram então ao alcaide que só “hũu clerigo que avya em Coymbra” o poderia fazer. Este veio à presença do alcaide e decifrou o que estava escrito (II, pp. 62-63).

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O desaparecimento dos códices em língua árabe, bem como o dos mais antigos códices que transmitiam a cultura ocidental clássica e cristã foi consequência, não só de imponderáveis acidentes naturais, como também da incúria humana. Bastaria lermos o testemunho que deixou o autor do

Inventário da Sé de Braga, de 1589, no capítulo dedicado aos “Livros do thesouro que ha na see”, para

encontrarmos uma das mais lamentáveis razões para a falta de muitas obras antigas de origens diferentes: “Rouendo-se [revendo-se] os livros de que fazia menção o jnuentarjo uelho forão achados alguns que não

declarão que liuros são nem de que costume e porque ha muito tempo que não seruem nem seruirão seria bom fazer delles algua cousa porque pejam a casa e não seruem de nada” (Cf. COSTA, Fragmentos

Preciosos de Códices Medievais, pp. 7-8). Infelizmente foi prática corrente o desmantelamento de velhos

códices para deles se aproveitar o pergaminho para capas de manuscritos e encadernações de códices, ou simplesmente para se retirar lucro da venda do tão procurado material (Cf. ibid.). A propósito do desmembramento de códices no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, veja-se ainda CRUZ, Santa Cruz de

Coimbra na Cultura Portuguesa da Idade Média, p. 121.

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Se o registo de al-Rāzī sobre a trasladação de S. Vicente foi conhecido por alguns portugueses do séc. XII (especialmente moçárabes), essa realidade terá por certo contribuído para adensar a atmosfera de interesse em torno do mártir; mas provavelmente não ao ponto de provocar o efeito imediato que (segundo a Translatio

corporis S. Benedicti Abbatis et S. Scholasticae) a leitura de um passo de uma obra do

papa S. Gregório teve junto do abade do mosteiro de Fleury: com efeito, o referido abade, ao ler que S. Bento protetizara que o seu mosteiro de Monte Cassino havia de ser destruído, resolveu honrar o santo, mandando trasladar imediatamente os respectivos ossos sepultados sob escombros, bem como os da sua irmã Escolástica, para mosteiro francês que administrava. Ora, o reconto oral das narrativas relativas ao Cabo de S. Vicente provocou um efeito mais gradual naqueles que tomaram contacto com elas (de acordo com os Miracula). Estêvão terá conhecido essas narrativas através de fontes escritas, como o próprio afirma, sem, no entanto, as identificar: “Sicut igitur litteris et narratione maiorum certissime creditum est” (“Como está indubitavelmente confirmado pelos testemunhos escritos de nossos maiores”,p. 98 e p. 99). Seria a crónica de al-Rāzī uma delas? Lida na sua versão original, ou por meio de um testemunho indirecto?

No documento Culto e memória textual de S. Vicente (páginas 86-94)