• Nenhum resultado encontrado

um testemunho cristão sobre o culto de S Vicente no Algarve do século

No documento Culto e memória textual de S. Vicente (páginas 32-37)

No que diz respeito aos testemunhos portugueses sobre o culto de S. Vicente no promontório algarvio, o mais antigo que se conhece encontra-se nos

MSVincentii, relato do último quartel do séc. XII sobre a trasladação das relíquias deste

mártir, do Algarve para Lisboa. O seu autor, Mestre Estêvão, chantre da sé de Lisboa, fala de dois religiosos moçárabes, que, antes de terem sido presos por Afonso Henriques numa batalha com mouros e de terem passado a residir em Lisboa (provavelmente já depois da conquista desta cidade), tinham vivido no promontório algarvio. Deduz-se que isso tenha acontecido durante a primeira metade do séc. XII, num período em que as invasões berberes ainda não tinham trazido a ruína e o abandono ao promontório, descritos no relato medieval.

eodem tempore rex prefatus quam plurimos christianos, qui muhsaraues quasi misti arabes nuncupantur, ab infidelium seruitute terre restituit christiane. Inter quos duo fratres uiri religiosi etatis prouecte habitus monachilis, qui in loco prefato et seruitio beatissimi martiris suas etates concorditer egerant, aduecti sunt. 49

nessa ocasião tal rei resgatou da servidão dos infiéis para terra cristã grande número de cristãos a quem se dá o nome de moçárabes, ou seja, misturados com os árabes. Entre eles, vieram dois irmãos, homens de religião, de idade provecta e hábito monástico, os quais haviam passado em comum os anos da sua vida ao serviço do mártir santíssimo. (p. 101)

49

ESTÊVÃO, MSVincentii, ed. de NASCIMENTO e GOMES, p. 98. Todas as citações deste relato (texto latino e tradução) serão feitas a partir desta edição.

Uma fonte contemporânea dos Miracula, a Vita Theotonii, escrita por um discípulo do biografado (o primeiro prior do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra), também fala de um aprisionamento de moçárabes do sul, ocorrido pela mesma altura50, havendo, portanto, fortes probabilidades de ambas as narrativas se referirem ao mesmo episódio histórico. Se assim fosse, ficaríamos mais perto da confirmação de que nas primeiras décadas do séc. XII a “igreja dos corvos de S. Vicente” continuava a ser um lugar de culto, que talvez ainda reflectisse a imagem quedela deixou al-Idrīsī. Mas esta situação poderá ter-se modificado antes do último quartel daquele século. De certo passo do relato do chantre ulissiponense retira-se a ideia de que à data da trasladação das relíquias do mártir para Lisboa, ou seja, em 1173, já nada restava da igreja do promontório. A expedição enviada a este local para recolher o corpo do santo só a muito custo cumpriu os seus objectivos:

Vbi uigiliis et orationibus insistentes circa loca

presignata terram aperiunt corpusque

preoptatum post multum laborem per diuinam reuelationem inueniunt (p. 100)

Entregam-se a vigílias de oração, desbravam a terra em torno dos locais previamente assinalados e, depois de muito trabalho, por revelação divina, encontram o corpo tão procurado. (p. 101)

Pode admitir-se que na segunda metade do séc. XII, devido às invasões almóadas, a igreja tivesse sido alvo de destruição, motivo pelo qual os homens enviados por Afonso Henriques ao Algarve tiveram tanta dificuldade em encontrar o que procuravam. Mas, por outro lado, para o narrador Estêvão seria mais desejável contar a história de uma trasladação de relíquias abandonadas em lugar inóspito que assim saíssem dignificadas pela persistência da busca que a elas conduzira, do que relatar as circunstâncias em que as relíquias houvessem sido retiradas do local onde ainda eram veneradas por cristãos. Neste último caso, seria difícil iludir a suspeita de roubo, mesmo com agumentos de piedade. Sem descartar, pois, a possibilidade de o texto de Estêvão reflectir (mais do que se possa pensar e certamente comprovar) aspectos da realidade factual, o que se afigura desde logo evidente é que o objectivo principal do chantre foi construir uma memória hagiográfica que homenageasse o mártir Vicente e a sua vontade de interferir no devir histórico; tarefa literária para que a história (verdadeira ou com a aparência de o ser) foi convocada como instrumento de referência, subsidiário.

50

O que não parece oferecer dúvida é que Mestre Estêvão conhecia a história registada por al-Rāzī relativa à antiguidade do culto de S. Vicente no Algarve, assim como conhecia também as duas maneiras, a cristã e a árabe, por que no seu tempo era designado o cabo do sudoeste algarvio:

Verum quoniam sub rege Ruderico fere per

totam Hispaniam sarracenis irruentibus

christianitas interiret, quidam uiri religiosi tuciora loca querentes in loco remotissimo uersus occidente, qui latine dicitur ad capud sancti Vincentii de coruo, arabice uero elkenicietal corabh, id est, ecclesia corui, prefati martiris ossa sacratissima condiderunt cellulasque quantas ille locus angustus et mare porrectus excipere posset extruxerunt. (p. 98)

Todavia, uma vez que no reinado de Rodrigo, com a invasão dos sarracenos, o cristianismo quase desapareceu por toda a Hispânia, alguns homens de religião procuraram lugares com alguma segurança num sítio muito afastado para ocidente designado em latim por Cabo de S. Vicente do Corvo e em árabe por elkenicietal corabh, ou seja, igreja do corvo, e aí depositaram os ossos sacratíssimos desse mártir, ao mesmo tempo que levantavam algumas construções, tantas quantas a estreiteza desse lugar projectado sobre o mar podia consentir. (p. 99)

A designação cristã “Cabo de S. Vicente do Corvo” recupera de forma aproximada a fórmula utilizada pelo autor moçárabe da Historia Pseudo-Isidoriana (“igreja dos corvos de S. Vicente”), o que quer dizer que entre os cristãos moçárabes se tradicionalizara uma expressão toponímica que ligava o nome do mártir ao da ave que a tradição hagiográfica tornara seu atributo principal. A forma precisa como o Cabo é identificado (“em latim por Cabo de S. Vicente do Corvo e em árabe por elkenicietal corabh, ou seja, igreja do corvo”) pressupõe a consulta de fontes bem informadas. É muito provável que o autor tenha tido contacto com os moçárabes do sudoeste algarvio, trazidos para o território cristão por Afonso Henriques. Aqueles, melhor do que ninguém, conheceriam o lugar em que como religiosos haviam venerado o mártir, bem como a forma de o nomear, quer em português, quer em árabe, língua com que conviviam quotidianamente. Deverá, pois, ter sido entre a comunidade moçárabe, antiga guardiã das relíquias do mártir, que nasceu a designação “Cabo de S. Vicente do Corvo”, que conheceu variantes como a registada na crónica moçárabe do séc. XI (“igreja dos corvos de S. Vicente”). Não restarão, portanto, dúvidas de que o promontório algarvio foi identificado pelo nome do mártir hispânico, não apenas a partir de meados do séc. XII, quando Afonso Henriques o mandou trasladar para Lisboa, como afirmaram Dozy e De Goeje, seguindo a opinião do historiador

setecentista espanhol Enrique Flórez51, mas muito antes dessa época. Como as palavras de Mestre Estêvão acima citadas mostram, a par da designação moçárabe do cabo algarvio existia a designação árabe, “igreja do corvo”, que também identificava o lugar. Sendo esta bem conhecida dos moçárabes anteriormente referidos, tudo leva a crer que tenham sido estes os seus principais divulgadores entre os cristãos da reconquista, até porque a transcrição fonética que o chantre lisbonense faz do topónimo árabe, a acreditarmos que reproduz fielmente o que ouviu, denuncia um informante-falante cuja língua de origem não seria essa, ainda que provavelmente bastante familiarizado com ela. De facto, o artigo el que encontramos no início da transcrição (“elkenicietal corabh”) está impropriamente colocado. Um falante nativo de árabe diria “kanisat al- ghurab”52. Esta expressão toponímica, simplificada em relação à cristã, que lhe acrescentava o nome do santo, parece ter sido corrente entre os muçulmanos, como o testemunham várias fontes árabes.

No que diz ainda respeito ao topónimo moçárabe, a expressão “do Corvo” (“Cabo de S. Vicente do Corvo”) implicaria em primeiro lugar uma leitura hagiográfica. Tratava-se do designativo tradicional de S. Vicente, uma extensão metonímica deste nome, difundida a partir da passio do mártir, onde se contava como este, depois de morto pelo governador romano Daciano, foi lançado às feras e protegido por um corvo vigilante, que não mais o abandonou. A memória do protagonismo desta ave na história do martírio deveria ser bem conhecida dos habitantes do promontório algarvio, como faz supor al-Idrīsī quando diz que os religiosos da igreja de S. Vicente contavam “coisas maravilhosas” a propósito dos corvos que sobre ela pousavam; “coisas” que eram encaradas pelos muçulmanos como fantasias merecedoras de pouco crédito: “mais on douterait de la véracité de celui qui voudrait les répéter” (ed. cit., p. 218). No entanto, a expressão “do Corvo”, no referido topónimo, não podia também

51

DOZY e DE GOEJE, “Introduction”, op. cit., nota 2, p. 218: “Le cap dont il s’agit ne porte le nom de saint

Vincent que depuis le milieu du 12e siècle, lorsqu’Alphonse Ier, roi du Portugal, fit transporter le corps de ce saint à Lisbonne; auparavant il s’appelait Promontorio del Algarbe”. Os autores remetem depois para a

España Sagrada de Flórez. Aqui pode ler-se o seguinte: “Demás de esto mandó el Rey, que el

Promontorio del Algarbe, donde havia estado el cuerpo del invencible Martyr, se llamasse de San Vicente, como hasta hoy le llamamos” (VIII, p. 189). Trata-se, na verdade, de uma interpretação livre de um trecho dos MSVincentii. Este texto não fala do rebaptismo régio do cabo, nem sequer o sugere; não o poderia de resto fazer, uma vez que o seu autor sabia que tal topónimo existia desde tempos anteriores ao reinado de D. Afonso Henriques.

52

deixar de relacionar-se com o facto de aquela ave ser frequentemente avistada sobre a igreja, como apontavam as fontes árabes. Esse facto ambiental parece assim ter-se combinado com o tópico hagiográfico, dando origem a um topónimo que resume essa coincidência. Al-Idrīsī registou a seguinte observação sobre os corvos: “Sur le faîte de l’édifice sont dix corbeaux; jamais personne ne les a vus manquer, jamais personne n’a pu constater leur absence” (p. 218). E o já citado Abū Ḥāmid, falando de um corvo apenas (cf. p. 30), sugeriu uma relação de causalidade entre esta ave e o nome da igreja cristã: “Refieren asimismo los sacerdotes que ellos no dejan de ver á este cuervo y que no saben dónde come ni dónde bebe. Y es conocida esta iglesia por la Iglesia del Cuervo (Canisat-algorab)”53. A locução adjectiva “do corvo” teria pois também um significado literal, ambiental. A forma como, não só Ibn al-Wardī, mas também al- Idrīsī, se referem aos corvos da igreja do promontório mostra que o significado maravilhoso que lhes fora atribuído pela tradição cristã foi conhecido pelos muçulmanos que frequentavam o local. Tal facto terá afectado o sentido do topónimo que usavam para identificar o lugar de culto dos cristãos, a “igreja do corvo”. Esta forma abreviada guardaria, com efeito, pelo menos para alguns muçulmanos, a mesma duplicidade de sentido que os cristãos lhe reconheceriam.

Outros autores árabes que viveram depois do séc. XII, como por exemplo Abu’l-Fidā (1273-1331) e al-Ḥimyarī (†1494), também identificaram o limite ocidental do al-Andalus com a “igreja do corvo”, reproduzindo assim a designação toponímica encontrada nas fontes mais antigas54. No entanto, nenhum deles se referiu às características cultuais do lugar. Os testemunhos cristãos posteriores à reconquista do Algarve são a este propósito mais esclarecedores. Entre eles, os documentos da chancelaria real e os apontamentos dispersos na prosa de diferentes géneros fornecem algumas informações sobre a evolução e transformação do culto de S. Vicente no cabo algarvio (lugar que esteve dependente da jurisdição diocesana de Silves). São estas fontes cristãs que passo agora a analisar.

53

IBNAL-WARDĪ, op. cit., p. 815.

54

La Péninsule Ibérique au Moyen-Age d’après le Kitāb al-Rawḍ al-mi ‘ṭār fī habar al-aḳṭār d’ Ibn

No documento Culto e memória textual de S. Vicente (páginas 32-37)