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influência de além-Pirinéus

No documento Culto e memória textual de S. Vicente (páginas 83-86)

Capítulo III. SOBRE A ESCOLHA DO DIÁCONO DE SARAGOÇA PARA PATRONO DE LISBOA

2. influência de além-Pirinéus

Num estudo sobre os MSVincentii, Aires Nascimento e Saul A. Gomes

sugeriram uma eventual influência da cultura francesa na revivescência do culto do mártir em Portugal123. É, de facto, indubitável a importância que tal culto alcançou na França medieval, desde a época merovíngia, como comprova o vasto número de textos a ele relativos124 e o grande número de igrejas e mosteiros que lhe foram dedicados125. É

123

Cf. NASCIMENTO e GOMES, “S. Vicente de Lisboa e seus milagres medievais”, p. 77. 124

Tanto as Gesta Francorum como a Vita Droctovei Abbatis narravam como o rei merovíngio Childeberto, na sequência do cerco que pusera a Saragoça, em 541, pedira ao bispo da cidade as relíquias de S. Vicente, acabando por obter a estola que pertencera ao mártir. No regresso a Paris, o monarca franco fundou a basílica de S. Vicente (mais tarde, Saint-Germain-des-Prés), onde depositou a sagrada relíquia. Em meados do séc. IX (858), seria a vez de Usuardo, um monge desta mesma casa, tentar resgatar as relíquias do mártir hispânico. Fracassou, contudo, na sua intenção, como escreveu Aimoin, também monge de Saint-Germain-des-Prés, na narrativa intitulada De translatione SS. Martyrum Georgii

monachi, Aurelii et Nathaliae ex urbe Cordoba Parisios. De acordo com outra memória, igualmente

escrita por Aimoin, aproximadamente pela mesma altura (c. ano 869), o monge Audald, do mosteiro aquitano de Conques, também empreendeu uma aventurosa viagem a Valência em busca dos ossos de Vicente. O seu êxito ficaria, no entanto, adiado até à realização de uma segunda viagem do mesmo monge, desta feita ao serviço do mosteiro de Castres (Cf. LACGER, “S. Vincent de Saragosse”, pp. 336-

342; GARCÍA RODRÍGUEZ, El culto de los santos en la España romana y visigoda, pp. 261-267). Houve ainda outras viagens a Espanha tendo em vista o mesmo objectivo. É o caso da que realizou o bispo Barthélemy de Laon, a seguir à tomada de Saragoça, em 1118, e da que fez Herman de Laon a esta mesma cidade. Também no campo litúrgico se propagou desde cedo uma literatura diversificada para memória e louvor do santo. Destaca-se naturalmente o texto da passio, que o já referido Herman de Laon na sua viagem a Saragoça procurou copiar, segundo o próprio afirma em carta ao abade Anselmo de Saint-Vincent de Laon (Cf. GAIFFIER, “Relations religieuses de l’Espagne avec le Nord de la France.

também certo que entre os sécs. XI e XII penetraram no território português, em fases sucessivas, diferentes formas da cultura de além-Pirinéus, que deixaram marcas em vários planos da vida nacional. Associados ao espírito da reforma romano-cluniacense, cavaleiros e membros da alta aristocracia (como os condes D. Raimundo e D. Henrique de Borgonha) integraram a cruzada anti-islâmica, e monges vindos de importantes mosteiros franceses reformaram as antigas dioceses portuguesas, reorganizando as suas estruturas e introduzindo o rito romano, em substituição do moçárabe (S. Geraldo, em Braga; Maurício Burdino, em Coimbra, e depois em Braga; Hugo, no Porto). Chegariam também de terras francesas, mais precisamente do mosteiro de S. Ruf d’Avignon, as linhas mestras para a organização da mais importante comunidade monástica regrante da Idade Média portuguesa, a do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra126. Todos estes agentes da reforma e restruturação eclesiástica das dioceses portuguesas podem, na realidade, ter estimulado interesses cultuais pré-existentes. A geografia das influências culturais trans-pirenaicas no reino de Portugal poderá ainda englobar outras regiões, como, por exemplo, as da actual Bélgica, onde alguns santos hispânicos, entre os quais S. Vicente, suscitaram grande interesse127, facto que tem merecido rara atenção na

125

No que diz respeito aos lugares de culto de S. Vicente em França, são múltiplas as notícias acerca de mosteiros e igrejas que lhe foram dedicados. Gregório de Tours fala de várias igrejas fundadas no séc. VI com aquela invocação; nalgumas delas dizia-se haver relíquias. De entre todas estas igrejas, a mais importante foi sem dúvida a catedral de Paris, fundada por Childeberto. Foi nela que este rei merovíngio depositou a estola de S. Vicente trazida de Saragoça. Era nela que Usuardo tencionava colocar as relíquias que não chegou a encontrar em Espanha (Cf. LACGER, op. cit., pp. 330-332; GARCÍA RODRÍGUEZ,

op. cit., pp. 266-267). Segundo a tradição historiográfica francesa, também Brunehault, rainha de origem

espanhola, que governou a Austrásia e a Borgonha, na segunda metade do séc.VI, teve influência na promoção do culto de S. Vicente, santo que terá escolhido para patrono da antiga abadia de Saint-Vincent de Laon (Cf. WYARD, Histoire de l’abbaye de Saint-Vincent de Laon, pp. 60-62).

126

Cf. MATTOSO, “Monges e clérigos portadores da cultura francesa em Portugal (séculos XI e XII)”, pp.

365-387. A propósito da adopção do costumeiro de S. Ruf d’Avignon pelos monges crúzios, veja-se

NASCIMENTO, “Introdução”, in Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, pp. 31-40. 127

Assim mostra a viagem lendária de Rainer II, conde do Hainaut, à Espanha, em 986, onde, tendo ajudado os castelhanos a lutar contra os mouros, terá recebido em recompensa na cidade de Oviedo as relíquias de S. Leocádia (cf. Monuments pour servir à l’histoire des provinces de Namur, de Hainaut et

de Luxembourg, ed. de REIFFENBERG, pp. 305-306). Tanto o mosteiro de Saint-Amand (diocese de Tournai) como o de Saint-Ghislain (diocese de Cambrai) estabeleceram, no final do séc. XI e no séc. XII, relações com S. Salvador de Oviedo, como comprovam as cópias feitas, em cada um daqueles mosteiros, do manuscrito de Oviedo que contava em detalhe a viagem da “camara santa”, relicário colectivo transportado desde Jerusalém até àquela cidade ibérica (cf. LEFRANCQ, “Nouvelles d’Espagne dans les

diocèses de Cambrai et de Tournai au XIIe siècle”, esp. pp. 138-149). Pode acrescentar-se que na rica biblioteca de Saint-Ghislain, um dos mais importantes mosteiros do condado do Hainaut, existiram cópias de obras e de cartas de bispos hispânicos, textos sobre S. Leocádia e sobre S. Vicente (Annales de

bibliografia crítica portuguesa. Dali vieram cavaleiros e monges que participaram na reconquista de Lisboa, em resposta ao apelo da segunda cruzada. Ajudando à reconversão cristã da cidade, alguns deles integraram posteriormente o cabido da sé de Lisboa. Da Flandres chegou, pela mesma altura, Gualter, nomeado por Afonso Henriques primeiro prior do mosteiro de S. Vicente128. E de Inglaterra, onde o mártir hispânico Vicente era conhecido desde o tempo dos reis saxões, embarcara, em 1147, com um grupo de cruzados, Gilberto de Hastings (que viria a ser o primeiro bispo de Lisboa)129. É, pois, tentador pensar que os homens provenientes de variados territórios do ocidente europeu, onde a realidade peninsular despertava curiosidade e interesses de natureza variada, tenham contribuído para divulgar entre as elites portuguesas as memórias do envolvimento dos reis e condes de além-Pirinéus no culto do mártir Vicente. Poderão dessa forma ter exercido uma influência que hoje apenas se pode conjecturar.

No plano religioso, a liturgia foi, sem dúvida, o mais importante instrumento usado pela cultura franco-romana na implantação de novas formas de culto. Não admira, portanto, que de França tenham chegado várias cópias para isso necessárias130. No que particularmente se refere à liturgia dos santos, introduziram-se novas devoções. Exceptuando os santos que eram venerados na Península desde a época

manuscritos que durante séculos se conservou naquele mosteiro conta uma singular história sobre a trasladação das relíquias de S. Vicente para Lisboa, que adiante analisarei.

128

Indiculum …, ed. cit., p. 195.

129

De expugnatione Lyxbonensi, ed. cit., p. 143.

130

Desse conjunto, foi identificado um testemunho de origem aquitana, o Missal de Mateus, do séc. XII (ed. de BRAGANÇA). O pontifical de Braga, do séc. XII, poderá igualmente ser originário da França meridional (DAVID, “Le Pontifical de Braga”, in Études historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIIes.; BRAGANÇA, “Pontifical de Braga do séc. XII”). Conservam-se cópias do costumeiro de S. Rufo de Avinhão, em dois códices provenientes de Santa Cruz de Coimbra (Cód. 74, séc. XII; Cód. 53, séc. XIV/XV, Catálogo dos Códices da Livraria de Mão do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na

Biblioteca Pública Municipal do Porto, pp. 316-318 e pp. 250-253). O ritual de Santa Cruz de Coimbra,

do séc. XIII, também teve como modelo um manuscrito daquele mosteiro aquitano (BRAGANÇA, Ritual de

Santa Cruz de Coimbra). Existem vários outros manuscritos que acusam a influência francesa: o

pontifical de Braga do séc. XIII (id., “A adoração da Cruz na espiritualidade do Ocidente. “Ordines” inéditos da França meridional”); os breviários bracarenses dos séculos XIV e XV, entre os quais o breviário de Soeiro, que segue modelos aquitanos (ROCHA, L’office divin au Moyen Age dans l’église de

Braga. Originalité et dépendances d’une liturgie particulière au Moyen Age); o ritual da sé de Coimbra

(impressão de 1518) e o missal de Évora (impressão de 1509), que conservam formulários de inspiração francesa, além de o santoral conter santos particulares franceses, ausentes doutros santorais portugueses (BRAGANÇA, “Influência religiosa da França no Portugal medievo”). Existem também vários fragmentos

litúrgicos representantes da liturgia romana (DAVID, op. cit., pp. 554-561).

visigótica (S. Martinho de Tours, S. Comba de Sens, S. Gens d’Arles e S. Saturnino de Toulouse), os que, por via da franco-romanização das tradições hispânicas, passaram a fazer parte dos calendários portugueses131, parecem ter tido um culto litúrgico, sem, no entanto, aparecerem, se não muito pontualmente, como invocação de igrejas. Dos censuais atrás referidos, apenas o de Braga regista uma igreja dedicada a um santo gaulês, S. Antonino. Também não parece que a emigração francesa dos sécs. XI e XII tenha provocado qualquer incremento significativo do culto do mártir hispânico Vicente nas paróquias medievais portuguesas. Contudo, nos meios cultos é provável que entre as obras que por aquele tempo foram copiadas de modelos franceses se encontrassem alguns textos sobre S. Vicente (hipótese difícil de confirmar, dada a escassez de cópias antigas sobreviventes). Exceptuando a notícia do martirológio de Usuardo, conservado num códice alcobacense do séc. XII, as cópias mais importantes hoje conhecidas de textos franceses alusivos ao mártir são já do séc. XIV: trata-se do relato da trasladação para Castres (Alc. 448, fóls. 25-28) e de um hino atribuído a Hildebert de Tours (Alc. 245, fóls. 132v-134). Naturalmente que o universo das influências francesas não se confina a estes dois aspectos (expressões de culto popular e erudito de S. Vicente), de que a história deixou poucos vestígios. Haverá que ter em linha de conta, por exemplo, a extraordinária importância das relações interpessoais na transmissão de notícias, costumes e tradições, algumas particularmente relevantes, como as que associavam os reis e eclesiásticos franceses à trasladação de relíquias de S. Vicente.

No documento Culto e memória textual de S. Vicente (páginas 83-86)