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uma narrativa do mosteiro de Saint-Ghislain

No documento Culto e memória textual de S. Vicente (páginas 178-200)

Capítulo VII. TEXTOS DERIVADOS DA TRADIÇÃO MEDIEVAL SOBRE A TRASLADAÇÃO DE S VICENTE PARA

2. uma narrativa do mosteiro de Saint-Ghislain

A narrativa portuguesa da trasladação de S. Vicente para Lisboa teve ecos além-fronteiras. Testemunha-o um texto medieval de além-Pirinéus, pouco conhecido entre nós, que se conservou por muito tempo no mosteiro de Saint-Ghislain, situado na região belga do Hainaut. Esse texto intitula-se Relatio de translatione sancti Vincentii

martiris257. Apesar de o autor anunciar o propósito de narrar a história da “trasladação e

257

Na verdade, entre os inúmeros estudiosos portugueses que se detiveram sobre a memória textual da trasladação das relíquias de S. Vicente para Lisboa, creio que apenas Júlio de Castilho deu conhecimento da existência da narrativa do monge do Hainaut, traduzindo-a de forma livre na Lisboa Antiga. Bairros

segundo enterro de S. Vicente”, de acordo com o que ouviu contar a um arquidiácono da sé de Lisboa, basta lermos os primeiros parágrafos da Relatio para nos apercebermos das profundas diferenças que o separam dos MSVincentii. Mas antes de fazer uma

análise mais circunstanciada da narrativa flamenga, seguem-se algumas notas de natureza codicológica.

A Relatio, de autor anónimo, encontra-se num códice de formato pequeno (244x189mm), constituído por 116 fólios escritos no séc. XIV (à excepção dos três

últimos, que datam provavelmente do século seguinte); ocupa os fólios 100v a 104. O códice abre com a Suma de Paenitentia de Guillaume Durand e um fragmento da autoria de Anselmo de Cantuária. Seguem-se dezasseis textos hagiográficos, por esta ordem: as passiones de S. Eustácio e seus companheiros; dos apóstolos Pedro e Paulo; dos santos Cosme e Damião; de Dionísio; de Crispim e Crispiniano; de Fusciano, Victorico e Genciano; de Pantaleão; de Alexandre, Evêncio e Teodolo; de Gervásio e Protásio; de Gordiano e Epimáquio; a vita de S. Hilário; uma carta deste santo; um milagre do mesmo santo; o relato da trasladação de S. Vicente; a passio de S. Valério; e, por último, a vita de S. Waldetrude258. Não sabemos quem foi o responsável por esta compilação. Se alguma vez o volume transportou essa informação, ela deverá ter-se perdido com o desaparecimento da antiga encadernação. Hoje o códice apresenta uma encadernação moderna (provavelmente de finais do séc. XIX). Na folha de espelho do plano anterior encontra-se colado um pequeno quadrado de couro antigo (proveniente da antiga encadernação) com a cota do mosteiro de Saint-Ghislain GGGG. Por baixo, está

escrito a lápis “Verberyls Bruxelles” (grafia confusa do nome do livreiro Verbyst, de Bruxelas, um dos proprietários oitocentistas do códice) e “Ex monasterio S. Gislemi” (grafia pouco exacta do lugar de proveniência do códice).

Temos notícia de que em meados do séc. XVII um códice manuscrito, de capa de couro avermelhado, contendo, entre outros textos hagiográficos, a Relatio, se encontrava na biblioteca do colégio da Companhia de Jesus, em Douai, cidade então pertencente ao reino da Flandres. Tratar-se-ia do códice medieval de Saint-Ghislain,

Biblioteca Real da Bélgica, mas de uma cópia deste, datada do séc. XVII, que foi editada nas Analecta

Bollandiana. Entre os autores espanhóis, António LINAGE CONDE, num estudo em que reviu o conteúdo de diferentes relatos de trasladações de S. Vicente, também dedicou algumas linhas à narrativa de Saint- Ghislain (San Vicente Martir lazo peninsular del Mediterraneo al Atlantico, pp. 6-8).

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Podemos ler uma descrição do conteúdo do códice no Catalogus codicum hagiographicorum

para ali deslocado por empréstimo, ou de uma cópia dele? Em 1652, os jesuítas do colégio fizeram uma cópia do relato sobre a trasladação de S. Vicente, que apresenta insignificantes variações relativamente ao manuscrito do séc. XIV. Em 1882, os hagiógrafos bolandistas publicariam a referida cópia no primeiro tomo das Analecta

Bollandiana, reproduzindo na nota introdutória a inscrição que encontraram no fólio

exterior do apógrafo seiscentista: “Infrascripti testamur hanc relationem de Translatione S. Vincentii martyris, desumptam esse ex libro manuscripto in folio, tecto corio rufo, varia sanctorum acta continente, qui in bibliotheca collegii Duacensis Societatis Jesu asservatur. Duaci, hac die 10 junii 1652”259

. Seguem-se a esta nota os nomes dos padres jesuítas que testemunharam da fidelidade da cópia de 1652 em relação ao seu modelo. No final do séc. XVIII, o códice medieval passou pelas mãos do cónego da catedral de Tournai, Paul-Antoine Wins, que o adquiriu juntamente com outros aos monges de Saint-Ghislain, quando estes se viram obrigados a fugir dos exércitos franceses, no ano de 1794. Wins amputou-o de alguns textos, com os quais formou um novo volume260. No primeiro quartel do séc. XIX, o cónego venderia o códice, assim alterado na sua estrutura, a Verbyst, conhecido livreiro de Bruxelas, a quem o adquiriu mais tarde o bibliófilo inglês Thomas Phillipps, que foi o seu último proprietário particular. Em 1888, o códice passou, através de compra (tal como outros manuscritos com a mesma proveniência), da colecção Phillipps para o fundo de manuscritos da Biblioteca Real da Bélgica261. O segundo tomo do Catalogus codicum hagiographicorum Bibliothecae

259

Cf. Acta S. Vincentii martyris archidiaconi caesaraugustani qui passus est Valentiae in Hispania et

Relatio Translationis ejusdem, p. 260. A edição da cópia ocupa as páginas 270-278. Os editores

bolandistas não registaram qualquer informação sobre a localização do manuscrito seiscentista. A hipótese de que este se encontrasse nalguma das colecções da Biblioteca Municipal de Douai levou-me a contactar esta instituição, no entanto, as buscas aí efectuadas revelaram-se infrutíferas, como me comunicaram os serviços da Biblioteca, aos quais agradeço as diligências efectuadas.

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Dom Pierre Baudry, monge beneditino de Saint-Ghislain, entre os anos 1738/39-1752, elaborou um inventário pormenorizado dos livros da biblioteca do mosteiro, pelo qual ficamos a saber quais foram os materiais retirados do códice GGGG. Este inventário foi publicado por A. PONCELET nos Annales de

l’abbaye de St.-Ghislain par Dom Pierre Baudry et Dom Augustin Durot, Livres X, XI et XII, 1897.

Veja-se especialmente a p. 397. Foi provavelmente Wins que juntou ao códice referido a Suma de

Paenitentia de Guillaume Durand e o fragmento de Anselmo de Cantuária, que constituem actualmente os

seus 40 fólios iniciais. Com efeito, antes de tal operação, segundo o inventário de Pierre Baudry, estes textos formavam um volume autónomo, com a cota GGG.

261

Sobre a dispersão dos manuscritos de Saint-Ghislain, veja-se TONDREAU, “La dispersion des

manuscrits de l’abbaye de Saint-Ghislain”, pp. 27-29; PIERARD, “Des manuscrits de l’abbaye de Saint-

Ghislain à la Bibliothèque Publique de Mons”, p. 13 e segs. Sobre os manuscritos de Saint-Ghislain na colecção Phillipps, veja-se The Phillipps Manuscripts. Catalogus Librorum manuscriptorum in

Regiae Bruxellensis, datado de 1889, identificou-o com a cota da antiga colecção de que era proveniente, “D. Phillipps signatus nº 372”, e editou em apêndice, pela primeira e única vez até hoje, o texto da Relatio262. Em 1905, o Catalogue des manuscrits de la

Bibliothèque Royale de Belgique registou o códice com nova cota: II. 981263.

Este é muito provavelmente uma compilação de cópias de textos mais antigos, de diferentes autores, pelo que o original do relato da trasladação de S. Vicente deverá ser anterior ao séc. XIV. Infelizmente o texto não nos fornece mais informações explícitas sobre a época em que o autor viveu do que sobre a sua identidade. Por outro lado, a forma relativamente sumária como no prólogo é descrita a fonte oral portuguesa consultada também não permite situar no tempo, com segurança, a redacção da Relatio. Resta, assim, procurar no interior da narrativa indícios que, por cruzamento com dados externos, ajudem a esboçar as identidades tanto do autor como do seu interlocutor ulissiponense, e permitam, consequentemente, uma aproximação ao tempo em que o texto foi escrito. Comecemos, nesta medida, por observar o prólogo. Aqui, o autor de Saint-Ghislain anuncia que na terceira parte do seu texto reproduzirá a história que ele próprio ouviu contar “ex ore uiri uenerabilis et tam religione diuina quam carnis prosapia reuerendi Fernaldi” (“da boca do reverendo Fernando, homem venerável tanto pela divina religião como pela linhagem carnal”, fól. 100v), que à época morava em Lisboa e fora arquidiácono da respectiva sé: “qui tunc in eadem morabatur patria et eiusdem episcopii in qua beatus martir translatus est archidiachonus fuerat” (“o qual então morava naquela pátria e fora arquidiácono do episcopado para o qual o beato mártir foi trasladado”, fól. 100v). Deduz-se destes elementos que o autor esteve durante um certo período da sua vida em Lisboa, onde terá estabelecido contacto com os cónegos da sé, em particular com o arquidiácono Fernando. O uso do advérbio “tunc” e o do pretérito imperfeito “morabatur” fazem pressupor que entre a estadia naquela cidade e a escrita da Relatio passaram vários anos, provavelmente os suficientes para muitos pormenores da história da trasladação que se contava em Lisboa terem sido

Biblioteca Real da Bélgica, veja-se HENRY, “Les manuscrits de Sir Thomas Phillipps à la Bibliothèque

Royale Albert Ier ”.

262

Catalogus codicum hagiographicorum…, II, pp. 466-471. No apêndice IV apresento uma proposta de

reediçãodo manuscrito medieval da Relatio, que revê nalguns pontos a leitura do Catalogus. É através dela que cito a narrativa flamenga.

263Catalogue des manuscrits…

esquecidos e substituídos por traços narrativos que fazem lembrar passos da familiar

Inuentio siue translatio beati Vincentii leuitae et martyris, escrita pelo monge Aimoin

de Saint-Germain-des-Prés. Mas quem terá sido o arquidiácono Fernando, cuja autoridade o transformou no interlocutor ideal para satisfazer a curiosidade de quem pretendia levar para a sua terra um relato provavelmente aí desconhecido sobre o mártir Vicente? Será hoje possível encontrar os vestígios da sua historicidade? Na verdade, o desaparecimento da documentação antiga da sé de Lisboa restringe em muito a possibilidade de se chegar a uma conclusão clara.

Valerá, contudo, a pena começar por considerar o testemunho de duas fontes do séc. XVII, a História Eclesiástica da Igreja de Lisboa de D. Rodrigo da Cunha e o Agiológio Lusitano de Jorge Cardoso, que deixaram memória de um eclesiástico da sé, de nome Fernando, que viveu num tempo compatível com o da provável data de redacção do original da Relatio. Trata-se do chantre Fernando Peres, que viveu entre as últimas décadas do séc. XII e a primeira metade do séc. XIII, e exerceu a actividade de mestre de coro durante alguns anos do episcopado de D. Soeiro Viegas (1210-1232). Rodrigo da Cunha traçou-lhe um retrato elogioso: “tinha além da nobreza do sangue, letras & prudencia, com que de todos se fazia amar, & estimar”264

. Apresentou-o também como autor de uma carta em que sentenciava sobre uma contenda que opôs o bispo de Lisboa ao clero de Santarém, e como co-autor de outra “sobre as causas, que corrião entre o bispo, & cabido” (ambas datadas de 1213). Tratava-se, portanto, de um homem letrado, chamado a resolver questões relativas ao direito eclesiástico. Já de idade avançada, tomou o hábito de S. Domingos, em Santarém265. Por seu lado, Jorge Cardoso também exaltou as qualidades humanas do chantre ulissiponense, falando dele como homem de “notoria fama de santidade”266

. Não se pode, pois, deixar de aproximar a caracterização elogiosa que ambos os autores do séc. XVII fizeram de Fernando Peres do retrato que o monge de Saint-Ghislain deixou do arquidiácono Fernando, em que lhe destacava as qualidades morais e a nobreza de linhagem. Do chantre chegaram-nos ainda outras notícias históricas. A

264

CUNHA, Historia Ecclesiastica da Igreja de Lisboa, Parte II, p. 156v.

265

Id., ibid., p. 110v.

266

documentação fala da sua ascendência aristocrática (era sobrinho do chanceler Julião Peres) e do desempenho de cargos de relevo intelectual, pelo menos entre os anos de 1196 e 1225. Foi notário da chancelaria de D. Sancho I; ocupou, durante alguns anos, o lugar de chantre na sé de Lisboa, tendo provavelmente sido mestre de S. António; passou depois a habitar na região de Coimbra, onde fez várias compras de bens imóveis e tratou da filiação do mosteiro de S. Paulo na Ordem de Cister; recolheu finalmente a Santarém, onde, despojado de todos os seus bens, vestiu o hábito de S. Domingos267, facto a que Frei Luís de Sousa se referiu emotivamente numa passagem da História de

S. Domingos268.

Mas talvez este conjunto de dados por si só não permita resolver o problema da identidade de Fernando. Por isso, tudo que seja possível apurar sobre a identidade do autor da Relatio deverá contribuir, pelo menos, para delimitar o tempo em que o “arquidiácono” português viveu. Ora, o facto de a Relatio provir do mosteiro de Saint-Ghislain e de aqui ter permanecido durante vários séculos leva a crer que tenha sido escrita por um monge deste mosteiro. É esta ligação que se pode deduzir do uso do determinante possessivo “nosso”, na seguinte frase: “quamuis in archiuo nostri monasterii scriptum sit in quodam miraculo de beato Vincentio […]” (“ainda que no

arquivo do nosso mosteiro, num certo milagre do beato Vicente, tenha sido escrito que

[…]”, fól. 103). Num outro passo, as palavras do autor sugerem que ele não seria natural do condado da Flandres. Na verdade, ao referir-se aos cruzados que ajudaram a conquistar Lisboa, acusa uma distância em relação aos morinos, habitantes do noroeste da Flandres:

anno Domini millesimo centesimo quadragesimo sexto cum Conradus imperator romanorum et Ludouicus iunior rex francorum exercitus suos per Hungariam, Trasciam et Greciam contra Sanguin, principem Damasci, […] morini, quos flamingos uocamus, naues reparantes congruas […] (fól. 101)

No ano 1146, como Conrado, imperador dos romanos, e Luís, jovem rei dos franceses, conduzissem os seus exércitos pela Hungria, Trácia e Grécia, contra Saguin, príncipe de Damasco […] os morinos, que chamamos flamengos, preparando os barcos necessários […]

Talvez, pois, as suas origens estivessem um pouco mais a sul, no condado do Hainaut, onde se situava o mosteiro de Saint-Ghislain, ou eventualmente numa região limítrofe. O segundo aspecto essencial da ficha identitária do autor é o que se refere à época em

267

Cf. SANTOS, “Fernando Peres ex-chantre da Sé de Lisboa”, pp. 243-249. 268

que viveu. Tendo em mente este aspecto, quem lê a narrativa de Saint-Ghislain repara no registo relativamente abundante de dados relativos à história portuguesa, que enquadram a memória da trasladação de S. Vicente para Lisboa: é apontada a data aproximada deste acontecimento (“circa annum incarnationis Dominice millesimo centesimo sexagesimo”), é evocado o nome do monarca português reinante ao tempo (“regnante in occidentali Hispania Aldefonso rege portugalensi”), bem como o do papa que lhe concedeu o título régio (“temporibus Alexandri pape tertii”) e são ainda relembrados o contributo dos cruzados da Europa do norte na conquista de Lisboa e o patrocínio régio no embelezamento do túmulo de S. Vicente (cf. fóls. 101, 101v e 103v). O leitor repara igualmente que na última parte da Relatio se encontra uma referência à princesa Matilde, tanto mais relevante quanto no contexto em que surge não encontra par na tradição textual portuguesa sobre a trasladação das relíquias de S. Vicente para Lisboa. O autor conta que, depois de selado o túmulo de S. Vicente com grilhões de ferro, para que estas protecções contra os assaltantes não provocassem desagrado a quem para elas olhava, Afonso Henriques e a sua filha Matilde pediram que fossem recobertas com um cinzelado em prata, ouro e pedras preciosas (fól. 103v

). Segundo D. Rodrigo da Cunha conta na História Eclesiástica da Igreja de Lisboa (Parte II, p. 96v

), aquela cobertura ornamental ainda podia ser observada em meados do séc. XVII. Mas, à semelhança do que se lê na generalidade dos textos sobre a trasladação, também naquela obra seiscentista a responsabilidade pelo enobrecimento do túmulo do mártir é atribuída exclusivamente a Afonso Henriques. O monge de Saint-Ghislain parece, assim, ser o único a referir-se à interferência de D. Matilde no processo da trasladação. Cabe, nesta sequência, perguntar se todo este conjunto de elementos relativos à história do reino de Portugal do séc. XII não significará mais do que simples zelo documental, isto é, se não acusará uma proximidade vivencial em relação aos acontecimentos em causa, balizada nas primeiras décadas do séc. XIII. Constituirá a referência à princesa Matilde, que depois de 1184 foi condessa da Flandres, um particular elemento de reforço desta hipótese? Poderá a evocação do seu nome, na ligação ao reconto de uma memória histórico-hagiográfica da sua terra de origem, constituir um acto de homenagem ao seu papel de governante? Afinal Matilde, e depois dela o seu sobrinho Fernando, lutaram diligentemente para defender os direitos da Flandres, quer vigiando a poderosa suzerania da França, quer evitando comprometoras alianças no quadro das

sempre iminentes guerras entre o rei de França e o de Inglaterra269. O facto de a Relatio ter sido provavelmente usada como leitura piedosa, como denuncia a divisão em dezoito “lectiones”, e de portanto ter sido instrumento de prática cultual, poderá de algum modo reflectir uma conjuntura sociopolítica em que Portugal alcançara algum destaque?

Foi justamente entre a segunda metade do séc. XII e a primeira do séc. XIII que uma série de circunstâncias de carácter político, bélico e religioso aproximaram os distantes territórios da Europa do norte (nomeadamente a Flandres e os territórios vizinhos) do reino de Portugal. Esta ligação facilmente justificaria que o eco de uma das principais memórias hagiográficas portuguesas do séc. XII tivesse chegado por aquele tempo ao condado do Hainaut (condado que durante a Idade Média esteve quase sempre politicamente ligado ao da Flandres). Vejamos um pouco mais detalhadamente os factos a que acabo de aludir. Entre 1184 e 1233 uma princesa e um príncipe da família real portuguesa reinaram na Flandres: D. Matilde, filha de Afonso Henriques, casou com Filipe da Alsácia, conde daquele domínio, e D. Fernando, filho de D. Sancho I, casou com a princesa Jeanne, filha de Baudouin IX, conde da Flandres e do Hainaut. Estes casamentos reforçaram certamente a visibilidade que o pequeno reino do noroeste peninsular já ganhara com a conquista de Lisboa, amplamente noticiada em múltiplos textos. Sabe-se também que no período coincidente com o da governação dos referidos príncipes portugueses várias vezes os cruzados da Europa do norte, incluindo os da Flandres e terras limítrofes, prestaram auxílio aos portugueses na conquista de terras antes dominadas pelos mouros (Lisboa, Silves, Alcácer do Sal). E não faltaram também religiosos que vieram daquelas paragens com a intenção de alargar a influência das casas monásticas a que pertenciam ao reino de Portugal. Terá o monge de Saint- Ghislain, autor da Relatio de translatione sancti Vincentii martiris, participado nalgum destes movimentos, tendo, assim, entrado em contacto com o “arquidiácono Fernando”? Ou terá, por hipótese, estado ligado à delegação flamenga que se deslocou a Portugal para negociar o casamento da princesa Matilde com Filipe da Alsácia?

Creio que ainda mais um argumento poderá contribuir para situar a vida do monge de Saint-Ghislain entre as últimas décadas do séc. XII e as primeiras do séc. XIII.

269

Cf. GODIN, Princes et princesses de la famille royale de Portugal ayant par leurs alliances régné sur

la Flandre (Rapports entre la Flandre et le Portugal de 1094 à 1682), pp. 1-21; CORDEIRO, A Condessa

Esse argumento extrai-se do seguinte parágrafo da narrativa, em que se evoca a invasão muçulmana da Península:

Predicta ciuitas Hispanie nobilissima Valentia temporibus uisigotarum et sueuorum regum longo tempore a christianis est possessa. Sed peccatis exigentibus christianorum, sarracheni qui in Affrica habitant mare transeuntes, Hispaniam sue ditione subegerunt. Partem uero Hispanie occidentalem christiani usque hodie possident, non suo merito sed beati Iacobi apostoli, qui eam sui corporis illustrauit, ut credimus, patrocinio. Valentia autem cum basilica, in qua sanctus Vicentius quieuit, in sorte sarracenorum uenit. Sic nulla reuerentia Christi martiri exhibebatur, quia nullus ibi christianus inueniebatur. (fól. 101)

No documento Culto e memória textual de S. Vicente (páginas 178-200)