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as transcrições de André de Resende

No documento Culto e memória textual de S. Vicente (páginas 68-75)

Capítulo II. A TRASLADAÇÃO DE S VICENTE PARA O ALGARVE, SEGUNDO A CRÓNICA DO MOURO RASIS

2. as transcrições de André de Resende

O interesse do humanista pelas antiguidades históricas de Portugal levou-o a dedicar particular atenção à memória hagiográfica antiga a que me tenho vindo a referir, conservada na Crónica de Rasis. Resende teve na sua posse a tradução

portuguesa desta crónica, ou uma cópia dela, transcrevendo a partir daí os excertos relativos ao reinado de ‘Abd al-Raḥmān I, em três das suas obras.

A primeira que os deu a conhecer foi, como anteriormente indiquei, o poema Vincentius, uma epopeia, escrita em latim, que gira em torno da figura do mártir hispânico. Nela se inspiraram o poeta italiano Girolamo Britonio, para a redacção de algumas passagens do poema de louvor à Lisboa do tempo de D. João III, Ulysbonae

regiae Lusitaniae urbis carmen (1546), e Camões, para a escrita de alguns versos de Os

Lusíadas (1572). À primeira vista poderá surpreender que matéria hagiográfica tenha

sido transformada em narrativa épica. Na verdade, o herói que o humanista se propõe exaltar não faz parte da galeria dos deuses, heróis ou homens ilustres, mas dos que pelo

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ESCOLANO, Decada …, Primera Parte, col. 273.

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martírio entregaram a sua vida a Deus. Trata-se de prestar homenagem, através de um estilo simples (“ore tenui”), a um mártir, cuja glória o humanista considera verdadeira, porque é inspirada pela piedade de Deus, ao contrário da grandeza dos heróis antigos, que é uma invenção dos homens, resultante de um exercício de vã grandiloquência pagã:

I, nunc, qui priscos celebras herôas, inani Carmine, Castilios quantumuis ebibe fonteis, Ite uetustatis per tot monumenta profanae Admiratores, Muti’ iactate cothurno

Grandiloquo flammas, adque aurea sidera uersu Regulus insigni, Musâque potente, uocetur. Nos tua Vincenti tenui licet ore canamus Gesta, Dei siquem pietâsque, fidesque mouebit, Quae maiora fero, quae uere heroica narro, Semper honore tuo per secula longa manebunt.

Liber Prior, [7-7v]

Vai, agora, tu que celebras os antigos através de versos heróicos num vão poema, bebe o mais possível das águas de Castália. Ide por entre tantos monumentos da antiguidade profana, admiradores, proclamai o esplendor de Múcio, com grandiloquente coturno, e Régulo e o poderoso Musa sejam chamados para a áurea constelação, com sublime verso. Nós, Vicente, cantemos, com estilo simples, os teus feitos, e a piedade de Deus e a fé manifestar-se-ão. Apresento estes como os maiores feitos, estes são os feitos heróicos que narro. Ficarão registados para sempre, pelos séculos fora, em tua honra.

A ideologia cristã que enforma o poema transforma-o, pois, numa obra de fé, inspirada, não por Musas, mas pela Piedade do autor. Naturalmente que a escolha de S. Vicente (e não de outro santo) para protagonista do canto épico tem a ver com o facto de parte da história do mártir se confundir com a história antiga de Portugal. Elogiar o mártir equivalia a elogiar o país que o escolhera para patrono da sua cidade mais importante. Nesta medida, pode considerar-se a epopeia de Resende como um acto de patriótico cristianismo. Odette Sauvage realçou justamente esta faceta como sendo a mais marcante do texto: “Dans ce poème, dans le commentaire qui l’accompagne, on pressent la passion qui animera exclusivement Resende dans la première partie de sa vie et qui est déjà si vivante en lui: sa passion de collectionneur de documents sur l’histoire de son pays […]. C’est cet aspect de la personnalité de Resende qui me paraît le plus intéressant dans ce poème […]. Mais le poème paraîtrait bien souvent conventionnel et, faute de génie, il mériterait peu de sortir de l’oubli où il est tombé, s’il ne s’éclairait de l’intérêt que Resende porte à sa patrie”104

. Interesse que talvez não deva desligar-se da conjuntura de mudança e de incerteza que caracterizou o Portugal

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SAUVAGE, “Resende, plus humaniste que chrétien? A propos de son poème sur Saint-Vincent, patron

de quinhentos, e de que autores como, por exemplo, Sá de Miranda e Camões deixaram testemunho, em versos onde sobressaem sentimentos de cepticismo e de melancolia. Num tempo marcado pelas rupturas com os costumes do passado, Resende recuperou uma das mais antigas referências ideológicas do reino, procurando revitalizá-la literariamente.

Estruturalmente, o Vincentius secciona-se em duas partes: o “Liber Prior”, composto pela introdução, que enuncia os objectivos do poema, e pela narração das cenas do martírio; e o “Liber Posterior”, constituído pela evocação das duas trasladações de S. Vicente. Todos estes assuntos foram objecto de anotações no final da obra, destinadas a facilitar a sua leitura. Destaco as notas referentes à primeira trasladação, transcritas da CMRasis, que mostram o empenho do autor em procurar

fundamento histórico para esta parte da sua narração. A primeira destas notas, com o número 4 na lista em que figura, refere-se à destruição provocada pelo “Barbarus Abderamen”, quando invadiu a Espanha. As primeiras linhas (sobre o ataque deste chefe mouro a mouros e cristãos), quando comparadas com as que lhe correspondem na transcrição do mesmo passo inserida na CBQuevedo e na História da Antiguidade da Cidade de Évora, são mais breves no reconto da história, uma vez que apenas falam da

investida de ‘Abd al-Raḥmān contra as comunidades cristãs:

Vincentivs

Hic adflixit Christianos qui in Hispanijs, in tantum, ut nulla fuerit ciuitas, nullum castellum in Hispania uniuersa, quod ei potuerit resistere. (ed. cit., p. 32)

História da Antiguidade…

& tomou todos hos logares que hos mouros tinham, nõ lhes tomãdo poren has fazendas, soomente o senhorio, & desque

se appoderou sobre hos

Mouros, moueo de Seuilha a fazer gherra a hos Christãos, & tomou Beja, & Sanctaren, & Lisbõa: & todo ho Algarue (ed. cit., cap. XII)

Ad Kebedium

Hic Abderamen urbes omnes et oppida quae Saraceni habebant in Hispania in suam potestatem redegit. Bellum quoque intulit Christianis, ac Hispali profectus expugnauit Bexam, Eboram, Sanctirenam, Olisiponem totumque Algarbium. Adflixit mirum in modum Hispaniae Christianos. Nec fuit ciuitas aut oppidum munitum quod se tueri aduersus potentiam eius posset (ed. cit., pp. 80 e 82).

Trad: Este Abderramão tomou em seu poder todas as cidades e povoações que os Sarracenos possuíam na Hispânia. Moveu também guerra contra os cristãos. E, depois de partir de Sevilha, ocupou Beja, Évora, Santarém, Lisboa e

todo o Algarve. Mas foi contra os cristãos da Hispânia que ele mais se encarniçou. E não houve cidade nem povoação fortificada capaz de se proteger contra o seu poderio (pp. 81 e 83)

Se combinássemos os três textos (e este é o único passo da narrativa em que é possível fazê-lo, pois na História da Antiguidade da Cidade de Évora o que se segue é um episódio relativo ao filho de ‘Abd al-Raḥmān I), o resultado seria um texto muito próximo do da CGE1344, o que significa que para este pequeno trecho em análise (e apenas para este) as redacções medievais da Crónica Geral, nomeadamente a de 1344, estão textualmente mais próximas da tradução medieval portuguesa da crónica de al- Rāzī do que está qualquer uma das transcrições de Resende. As restantes linhas da mesma nota 4 do Vincentius (sobre a fuga dos cristãos para as Astúrias) foram literalmente repetidas apenas na Carta, numa redacção praticamente sempre equivalente à da CGE1344. Nelas o humanista fala da destruição provocada por ‘Abd al- Raḥmān entre os sarracenos (“Hic Abderamen urbes omnes et oppida quae Saraceni habebant in Hispania in suam potestatem redegit”, AdKebedium, p. 80), das cidades conquistadas aos cristãos (“expugnauit Bexam, Eboram, Sanctirenam, Olisiponem totumque Algarbium”), das igrejas destruídas (“Hic omnes Hispaniae ecclesias quas adhuc integras inuenit destruxit”), que datavam de tempos antigos (“tam a Graecorum quam a Romanorum temporibus”). Trata-se, com efeito, da sequência também reproduzida pela CGE1344, como vimos atrás, com uma única diferença: a crónica medieval (nas suas duas redacções) fala da destruição das igrejas “do tempo dos Godos”, e não do tempo “dos Gregos”, como Resende transcreve. A cópia de Morales, que, como vimos, coincide com a de Resende no registo de uma variante importante, ausente das duas redacções da CGE1344, não acompanha neste ponto a lição do humanista português, transmitindo o mesmo texto que a Crónica Geral (fala, portanto, apenas, de igrejas do tempo dos godos). Não é de excluir a possibilidade de o humanista ter cometido um erro de leitura ou de ter feito um acrescento, ainda que, a fazer fé no seu confessado esforço de literalidade, seja também de considerar a hipótese, mais remota, de tal variante (“a Graecorum […] temporibus”) provir da cópia da Crónica de Rasis consultada (a tradução de Gil Peres? Ou um testemunho mais tardio

dela derivado?). No que diz respeito à nota registada com o número 8, sobre a fuga dos valencianos para o Algarve, Resende explicita que se trata de uma transcrição literal

(“Haec ad verbum transtulimus”). Em termos da história narrada, esta nota apresenta-se como um prolongamento da anterior. O seu texto coincide praticamente sempre com o que o humanista também transcreveu na carta a Quevedo, excepto nas primeiras linhas. Nestas lê-se que “Abderamen ab Hispali cum exercitu mouit ut expugnatum iret Valẽtiam” (p. 34). Com efeito, nem na Carta nem em qualquer das redacções da CGE1344 se encontra este passo. A oração final que o remata (“ut expugnatum […]”),

restringindo toda a acção militar do chefe mouro na Espanha a um propósito único, parece denunciá-la como acrescento interpretativo do humanista, interessado em dar ênfase à conquista da cidade que venerou o herói do seu poema. Assinale-se que a edição já várias vezes citada da Crónica de Rasis (de Catalán e Andrés), embora

reproduzindo tal frase, coloca a respectiva oração final entre parênteses, parecendo, portanto, concordar com tal hipótese.

Ora, o texto destas duas notas do Vincentius (que como o de outras notas contribuiu para acentuar o lado histórico do poema) corresponde no seu conjunto à segunda das duas transcrições da CMRasis inseridas na CBQuevedo. Já no que diz

respeito à primeira transcrição, bastante mais curta, esta fala do pai de ‘Abd al-Raḥmān I, a partir do testemunho prestado por uma fonte árabe citada e identificada com o nome “Abdemelique”. Como se viu anteriormente, também a Crónica Geral conserva este passo, embora com as diferenças já assinaladas (apenas a primeira redacção cita a fonte árabe referida). Mas o seu prolongamento, tal como a crónica medieval o apresenta (infância de ‘Abd al-Raḥmān e predição do seu futuro grandioso), Resende considerou- o digno de pouco crédito, e por isso eliminou-o. O autor mostrou semelhante desconfiança em relação ao cronista hispano-árabe, quando comentou o conteúdo da primeira e segunda partes da CMRasis:

Is igitur Rases de montibus, fluminibus, et urbibus Hispaniae, de priscis Hispanorum regibus ante Romanos, de Romanis ac Gothis nonnulla commode, per multa inepte – quo pacto ethnici scriptores ac poetae de rebus sacris diuinae scripturae, quasi per somnium, locuti sunt, omnia fabulis, inuoluentes. (AdKebedium, ed. cit., p. 80)

Voltando a Rasis: quando ele escreve sobre os montes, os rios e as cidades da Hispânia, sobre os antigos reis dos Hispanos anteriores à dominação romana, sobre os Romanos e os Godos, alguns dos assuntos são tratados com acerto, mas a maior parte deles são-no de uma forma desastrada – ao jeito dos escritores e poetas pagãos que escreveram sobre temas sagrados da divina escritura: meio a sonhar e mergulhando tudo no reino da lenda. (p. 81)

Apenas usou, portanto, quer no Vincentius quer na Carta a terceira parte daquela crónica, na qual se narrava a história da Espanha muçulmana, por lhe ter reconhecido valor histórico:

Vt tamen ad Saracenorum regum compertiora sibi tempora deuenit, non contemnendus scriptor iudicandus est. (p. 80) 105

Mas quando Rasis chega à época dos reis sarracenos, mais próxima da sua, então revela- se, e assim devemos considerá-lo, um escritor a não desprezar. (p. 81)

Vejamos, por fim, o contexto em que aproveitou a narração de al-Rāzī na

CBQuevedo. Numa das partes desta longa missiva Resende procura dar resposta à

questão posta pelo sacerdote de Toledo, seu destinatário, sobre a controvérsia entre portugueses e franceses acerca do lugar de sepultura do corpo de S. Vicente, apresentando primeiro a versão de cada uma das partes (portugueses/sé de Lisboa; franceses/Castres) e examinando depois o conteúdo de ambas as tradições em disputa. Começa, assim, por resumir muito brevemente a francesa, concluindo tratar-se de uma história de “monachilia furta” (p. 74). Relembra de seguida que a portuguesa se baseia nos “regni publicos annales” e na “Alphonsi Henrici primi Lusitanorum regis historiam”:

non modo hanc quae Lusitana lingua

circumfertur, a Duarte Galuano, uiro nobili et eruditionis uariae, non tam compositam quam in epitomen redactam, sed antiquam, ab ipsius regis temporibus Latine (ut illa ferebant tempora) scriptam, quae a Sanctae Crucis Conimbrigensis, ubi idem rex sepultus est, canonicis reuerenter adseruatur (p. 74)

não apenas a que circula em língua portuguesa e da autoria de Duarte Galvão, homem de reconhecida e ampla cultura – obra essa que é mais uma síntese do que uma composição original – mas também uma antiga, da época do referido rei e escrita em latim (como era próprio dos tempos de então), e preciosamente guardada pelos cónegos de Santa Cruz de Coimbra, onde o citado rei está sepultado. (p. 75)

Apresenta, de seguida, um longo sumário do que nestas fontes encontrou sobre as duas trasladações do mártir hispânico: Valência/Algarve e Algarve/Lisboa. Contrapõe, deste modo, “o furto de um monge” aos “anais de um reino”. E no sentido de reforçar a óbvia conclusão que pretende que o seu interlocutor tire de tal comparação, acrescenta como argumento final, comprovativo da legitimidade da tradição portuguesa, o citado testemunho histórico de al-Rāzī, que, sendo mouro, pouco interessado estaria em

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O autor exprime o mesmo descrédito nas partes referidas da CMRasis, num passo da História da

Antiguidade …: “Este liuro de Rasis quomo ho auctor era pouco sabedor das historias & cousas Latinas,

cõfunde muitas vezes has verdadeiras historias a voltas de fabulas. Com todo quando vẽe aas cousas mais propinquas aho tempo dos Mouros: mais ordẽe & verdade leua” (ed. cit., cap. XI).

favorecer qualquer uma das pretensões cristãs (lusitana ou francesa) à posse das famosas relíquias. É, pois, neste contexto de exaltação das tradições portuguesas, resultante de indisfarçável patriotismo, que, tal como acontecera no Vincentius, André de Resende encaixa na Carta as transcrições da CMRasis.

Face ao exposto, verifica-se que, na verdade, o significativo número de obras que conservam a narrativa da trasladação registada por al-Rāzī determina que esta narrativa ocupe um espaço importante no contexto da transmissão textual vicentina. A sua autenticidade, como texto antigo, ajuda, por outro lado, a circunscrever a fase mais antiga da história do culto de S.Vicente em Portugal.

No documento Culto e memória textual de S. Vicente (páginas 68-75)